sexta-feira, 6 de maio de 2016

A figura poética da prostituta

Estudo investiga o significado da personagem no modernismo brasileiro.

  
Uma das marcas significativas do modernismo brasileiro foi a busca pela natureza da identidade nacional, assunto que orientou uma vasta tradição de estudos acadêmicos em literatura. Contudo, ao investigar o papel da prostituta na produção literária do período, Eliane Robert Moraes, professora de literatura brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), propôs uma reflexão menos atenta às questões nacionais, na tentativa de privilegiar recortes universais. No projeto “Figurações literárias da prostituta no modernismo brasileiro”, desenvolvido entre 2012 e 2015, a pesquisadora verificou que a personagem não só se faz presente nos trabalhos de quase todos os autores da época como também aparece como elemento estruturante dos próprios textos. No modernismo brasileiro, assim como no europeu, essa protagonista se impõe como o lugar do sexo por excelência e como um espaço vazio no qual se pode alocar toda sorte de fantasias, por mais estranhas e improváveis que sejam.
No Brasil, é forte a tradição de crítica literária que interpreta a obra à luz da realidade social do país. De acordo com Eliane, essa perspectiva nem sempre favorece o estudioso da escrita erótica, pois ele trabalha com o imaginário e não com o real. Ao longo da pesquisa, ela constatou que as representações da prostituta não são “documentos sociais”, mas interpretações da realidade atravessadas pelas fantasias de seus criadores. Assim, a figura representada se afasta das mulheres de “carne e osso” para se tornar uma posição simbólica, um receptáculo de fabulações que, no mundo real, nem sempre podem se realizar. “A personagem da meretriz não representa a si mesma, mas sim o desejo”, sustenta Eliane. Um bom exemplo disso está no poema “A puta”, de Carlos Drummond de Andrade, que começa assim: “Quero conhecer a puta./ A puta da cidade. A única./ A fornecedora./ Na rua de Baixo/ Onde é proibido passar./ Onde o ar é vidro ardendo/ E labaredas torram a língua/ De quem disser: Eu quero/ A puta/ Quero a puta quero a puta”.

Eliane explica que o poema articula uma tópica geográfica e outra sexual, de modo a criar um espaço particular para o surgimento do desejo – dinâmica que também observa em outros versos da época. Mas o acesso a esses domínios “baixos” – como a “rua de Baixo onde é proibido passar” – só acontece por intermédio da prostituta. Ela é a “guardiã do limiar”, diz Eliane, citando a expressão com que o filósofo alemão Walter Benjamin qualifica a prostituta, por ser figura sagrada e profana ao mesmo tempo. “É ela que guarda a passagem entre a cidade diurna e a noturna, entre o alto e o baixo”, reitera. A pesquisadora recorda que essa mesma posição limiar aparece nas gravuras do lituano-brasileiro Lasar Segall sobre o Mangue, zona portuária e de prostituição do Rio de Janeiro, que sempre apresentam as mulheres nas margens das portas e das janelas dos bordéis, se oferecendo aos marinheiros de passagem pela cidade.

O impraticável
Durante seu estudo, apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Eliane confirmou que o tema do meretrício é recorrente na poesia modernista do país, como já havia notado na pesquisa para a sua Antologia da poesia erótica brasileira, lançada no ano passado. Manuel Bandeira escreveu um dos mais conhecidos versos em “Vou-me embora pra Pasárgada” (onde “tem prostituta bonita para a gente namorar”); Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Vinicius de Moraes também dedicaram poemas às profissionais do sexo.


Lasar Segall, Casa do Mangue, 1929, xilogravura sobre papel, 31,5 x 42 cm

Eliane diz que, apesar dessa recorrência, a crítica tem olhado pouco para esse aspecto, algo que ela atribui a diferentes fatores. Um deles é a censura – ou autocensura – de autores e editores, que muitas vezes resultou na publicação póstuma de livros de cunho erótico, como O amor natural (1992), de Carlos Drummond de Andrade, ou de poemas como “A morte da puta”, de Murilo Mendes, descoberto recentemente pelo pesquisador Leandro Garcia, na correspondência entre o poeta católico e o crítico Alceu Amoroso Lima, também católico. “O erotismo é um campo que assusta, talvez porque remeta à nossa origem e à própria ‘origem do mundo’”, sustenta Eliane, fazendo referência ao quadro L’Origine du monde (1866), do francês Gustave Courbet, que mostra o sexo de uma mulher.

Para ela, a literatura pode trabalhar com o inconfessável, com “nosso fundo escuro”, sem que isso signifique que os escritores aprovem práticas ilegais. “Conceber o inconcebível não é praticar o impraticável”, diz. Eliane considera a discussão ética fundamental e necessária para guiar a conduta, mas não a imaginação. Para ela, o valor ético não deve impedir (como não impediu) o direito de a romancista e poeta Hilda Hilst escrever, em O caderno rosa de Lori Lamby (1990), as memórias sexuais de uma menina de 8 anos que se prostitui – e gosta disso. O que, em nenhum momento, sanciona o crime de pedofilia. “Não podemos sobrepor esse julgamento à literatura, como aconteceu, nos anos 1990, com o livro de Hilda Hilst”, argumenta. “A literatura deve ser concebida como um espaço de liberdade, no qual podemos elaborar nossos fantasmas e as interdições que nos limitam no plano real.”

Eliane destaca que autores anteriores ao modernismo já se valiam da figura da prostituta para construir suas narrativas. Ela cita o romance Lucíola (1862), de José de Alencar, que pode ser lido à luz das relações de poder durante o Império. A cortesã brasileira tem singularidades incontornáveis, pois, diferentemente da Dama das Camélias francesa, Lucíola vive numa sociedade de valores escravocratas. Mesmo assim, a visada histórica deve cruzar com a interpretação das fantasias sexuais que o livro põe em cena. “E essas leituras devem ser combinadas, já que nem uma nem outra podem esgotar o assunto”, defende a professora.

Mangue
Embora “Figurações literárias da prostituta” tenha sido um projeto solo, Eliane contou com interlocutores não oficiais, entre eles Alcir Pécora, professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Até recentemente, as pesquisas nas universidades paulistas se centraram em autores do cânone modernista; o trabalho com o erotismo literário levou luz a autores posteriores como o poeta Roberto Piva e Hilda Hilst, que não apresentam vínculos diretos com as tendências desse movimento e tratam abertamente da sexualidade”, diz ele. Como o núcleo original de interesse de Eliane se relaciona à literatura libertina francesa, Pécora avalia que a pesquisadora produz reflexões incomuns, o que traz um arejamento para os estudos literários no Brasil.

Mulher do Mangue sentada, 1942, xilogravura sobre papel, 20,5 x 10,5 cm

Para Camille Dumoulié, professor de literatura comparada da Universidade Paris Ouest Nanterre e um dos principais interlocutores de Eliane em diferentes frentes de trabalho, a colaboração mais significativa da pesquisa foi mostrar como a literatura brasileira, em sua evocação da prostituta, tem relações de fundo com a literatura francesa. Outro aspecto importante foi evidenciar as especificidades pouco conhecidas da representação da prostituta no Brasil, o que ajuda a rever as matrizes francesas.

Ainda como resultado do projeto sobre as figurações da prostituta, Eliane apresentou palestras em países europeus e nos Estados Unidos e, em 2014, atuou como professora convidada na Universidade Paris Ouest Nanterre. A pesquisa também se desdobrou em outro projeto, atualmente em curso, chamado “Mangue: poética e erótica”, que articula relações sobre o tema nas artes plásticas e na literatura ao longo do século XX. Como eixo central, a investigação persegue as particularidades do imaginário da baixa prostituição no contexto brasileiro. Segundo Eliane, a exemplo do que ocorria no Mangue dos anos 1920-30, na França da belle époque, do pintor Toulouse-Lautrec, as prostitutas e os artistas partilhavam os mesmos ambientes.

Porém há uma diferença fundamental na iconografia desses lugares e de suas personagens. Enquanto a francesa é sempre muito branca e marcada pelas olheiras, ou seja, uma mulher da noite, fechada nos cabarés e que não vê a luz do dia, nas imagens do Mangue as prostitutas são negras e mulatas, com outro tipo de integração com a rua. “É um projeto desafiador, que me colocará diante das desigualdades do país. Meu interesse desta vez é conhecer as relações entre o baixo corporal e o baixo social”, diz.


Fonte: www.revistapesquisa.fapesp.br

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