Estudo investiga o significado da
personagem no modernismo brasileiro.
Uma das marcas significativas do
modernismo brasileiro foi a busca pela natureza da identidade nacional, assunto
que orientou uma vasta tradição de estudos acadêmicos em literatura. Contudo,
ao investigar o papel da prostituta na produção literária do período, Eliane
Robert Moraes, professora de literatura brasileira do Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), propôs uma reflexão menos atenta às
questões nacionais, na tentativa de privilegiar recortes universais. No projeto
“Figurações literárias da prostituta no modernismo brasileiro”, desenvolvido
entre 2012 e 2015, a pesquisadora verificou que a personagem não só se faz
presente nos trabalhos de quase todos os autores da época como também aparece
como elemento estruturante dos próprios textos. No modernismo brasileiro, assim
como no europeu, essa protagonista se impõe como o lugar do sexo por excelência
e como um espaço vazio no qual se pode alocar toda sorte de fantasias, por mais
estranhas e improváveis que sejam.
No Brasil, é forte a tradição de
crítica literária que interpreta a obra à luz da realidade social do país. De
acordo com Eliane, essa perspectiva nem sempre favorece o estudioso da escrita
erótica, pois ele trabalha com o imaginário e não com o real. Ao longo da
pesquisa, ela constatou que as representações da prostituta não são “documentos
sociais”, mas interpretações da realidade atravessadas pelas fantasias de seus
criadores. Assim, a figura representada se afasta das mulheres de “carne e
osso” para se tornar uma posição simbólica, um receptáculo de fabulações que,
no mundo real, nem sempre podem se realizar. “A personagem da meretriz não
representa a si mesma, mas sim o desejo”, sustenta Eliane. Um bom exemplo disso
está no poema “A puta”, de Carlos Drummond de Andrade, que começa assim: “Quero
conhecer a puta./ A puta da cidade. A única./ A fornecedora./ Na rua de Baixo/
Onde é proibido passar./ Onde o ar é vidro ardendo/ E labaredas torram a
língua/ De quem disser: Eu quero/ A puta/ Quero a puta quero a puta”.
Eliane explica que o poema
articula uma tópica geográfica e outra sexual, de modo a criar um espaço
particular para o surgimento do desejo – dinâmica que também observa em outros
versos da época. Mas o acesso a esses domínios “baixos” – como a “rua de Baixo
onde é proibido passar” – só acontece por intermédio da prostituta. Ela é a
“guardiã do limiar”, diz Eliane, citando a expressão com que o filósofo alemão
Walter Benjamin qualifica a prostituta, por ser figura sagrada e profana ao
mesmo tempo. “É ela que guarda a passagem entre a cidade diurna e a noturna,
entre o alto e o baixo”, reitera. A pesquisadora recorda que essa mesma posição
limiar aparece nas gravuras do lituano-brasileiro Lasar Segall sobre o Mangue,
zona portuária e de prostituição do Rio de Janeiro, que sempre apresentam as
mulheres nas margens das portas e das janelas dos bordéis, se oferecendo aos
marinheiros de passagem pela cidade.
O impraticável
Durante seu estudo, apoiado pelo
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Eliane
confirmou que o tema do meretrício é recorrente na poesia modernista do país,
como já havia notado na pesquisa para a sua Antologia da poesia erótica
brasileira, lançada no ano passado. Manuel Bandeira escreveu um dos mais
conhecidos versos em “Vou-me embora pra Pasárgada” (onde “tem prostituta bonita
para a gente namorar”); Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Vinicius de
Moraes também dedicaram poemas às profissionais do sexo.
Lasar Segall, Casa do Mangue,
1929, xilogravura sobre papel, 31,5 x 42 cm
Eliane diz que, apesar dessa
recorrência, a crítica tem olhado pouco para esse aspecto, algo que ela atribui
a diferentes fatores. Um deles é a censura – ou autocensura – de autores e
editores, que muitas vezes resultou na publicação póstuma de livros de cunho
erótico, como O amor natural (1992), de Carlos Drummond de Andrade, ou de
poemas como “A morte da puta”, de Murilo Mendes, descoberto recentemente pelo
pesquisador Leandro Garcia, na correspondência entre o poeta católico e o
crítico Alceu Amoroso Lima, também católico. “O erotismo é um campo que
assusta, talvez porque remeta à nossa origem e à própria ‘origem do mundo’”,
sustenta Eliane, fazendo referência ao quadro L’Origine du monde (1866), do francês
Gustave Courbet, que mostra o sexo de uma mulher.
Para ela, a literatura pode
trabalhar com o inconfessável, com “nosso fundo escuro”, sem que isso
signifique que os escritores aprovem práticas ilegais. “Conceber o inconcebível
não é praticar o impraticável”, diz. Eliane considera a discussão ética
fundamental e necessária para guiar a conduta, mas não a imaginação. Para ela,
o valor ético não deve impedir (como não impediu) o direito de a romancista e
poeta Hilda Hilst escrever, em O caderno rosa de Lori Lamby (1990), as memórias
sexuais de uma menina de 8 anos que se prostitui – e gosta disso. O que, em
nenhum momento, sanciona o crime de pedofilia. “Não podemos sobrepor esse
julgamento à literatura, como aconteceu, nos anos 1990, com o livro de Hilda
Hilst”, argumenta. “A literatura deve ser concebida como um espaço de
liberdade, no qual podemos elaborar nossos fantasmas e as interdições que nos
limitam no plano real.”
Eliane destaca que autores
anteriores ao modernismo já se valiam da figura da prostituta para construir
suas narrativas. Ela cita o romance Lucíola (1862), de José de Alencar, que
pode ser lido à luz das relações de poder durante o Império. A cortesã
brasileira tem singularidades incontornáveis, pois, diferentemente da Dama das
Camélias francesa, Lucíola vive numa sociedade de valores escravocratas. Mesmo
assim, a visada histórica deve cruzar com a interpretação das fantasias sexuais
que o livro põe em cena. “E essas leituras devem ser combinadas, já que nem uma
nem outra podem esgotar o assunto”, defende a professora.
Mangue
Embora “Figurações literárias da
prostituta” tenha sido um projeto solo, Eliane contou com interlocutores não
oficiais, entre eles Alcir Pécora, professor de teoria literária na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Até recentemente, as pesquisas
nas universidades paulistas se centraram em autores do cânone modernista; o
trabalho com o erotismo literário levou luz a autores posteriores como o poeta
Roberto Piva e Hilda Hilst, que não apresentam vínculos diretos com as
tendências desse movimento e tratam abertamente da sexualidade”, diz ele. Como
o núcleo original de interesse de Eliane se relaciona à literatura libertina
francesa, Pécora avalia que a pesquisadora produz reflexões incomuns, o que
traz um arejamento para os estudos literários no Brasil.
Mulher do Mangue sentada, 1942,
xilogravura sobre papel, 20,5 x 10,5 cm
Para Camille Dumoulié, professor
de literatura comparada da Universidade Paris Ouest Nanterre e um dos
principais interlocutores de Eliane em diferentes frentes de trabalho, a
colaboração mais significativa da pesquisa foi mostrar como a literatura
brasileira, em sua evocação da prostituta, tem relações de fundo com a
literatura francesa. Outro aspecto importante foi evidenciar as especificidades
pouco conhecidas da representação da prostituta no Brasil, o que ajuda a rever
as matrizes francesas.
Ainda como resultado do projeto
sobre as figurações da prostituta, Eliane apresentou palestras em países
europeus e nos Estados Unidos e, em 2014, atuou como professora convidada na
Universidade Paris Ouest Nanterre. A pesquisa também se desdobrou em outro
projeto, atualmente em curso, chamado “Mangue: poética e erótica”, que articula
relações sobre o tema nas artes plásticas e na literatura ao longo do século
XX. Como eixo central, a investigação persegue as particularidades do
imaginário da baixa prostituição no contexto brasileiro. Segundo Eliane, a
exemplo do que ocorria no Mangue dos anos 1920-30, na França da belle époque,
do pintor Toulouse-Lautrec, as prostitutas e os artistas partilhavam os mesmos
ambientes.
Porém há uma diferença
fundamental na iconografia desses lugares e de suas personagens. Enquanto a
francesa é sempre muito branca e marcada pelas olheiras, ou seja, uma mulher da
noite, fechada nos cabarés e que não vê a luz do dia, nas imagens do Mangue as
prostitutas são negras e mulatas, com outro tipo de integração com a rua. “É um
projeto desafiador, que me colocará diante das desigualdades do país. Meu
interesse desta vez é conhecer as relações entre o baixo corporal e o baixo
social”, diz.
Fonte: www.revistapesquisa.fapesp.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário