Assim como a personagem, a
socióloga fixou prazo para deixar a Guaicurus
O maiô não é dourado como aquele
que Hilda Furacão usava à beira da piscina do Minas Tênis Clube antes de se
tornara prostituta mais famosa da capital mineira no livro de Roberto Drummond.
A peça de cor branca e transparência valoriza mais a pele morena de Tatiana
Vieira, de 27 anos. Ela solta os cabelos cacheados, tira a calça jeans, põe
brincos dourados, sobe nas sandálias de salto fino e, aos poucos, vai deixando
do lado de fora do quarto da Rua Guaicurus a aparência da sociólogaeprofessora
da rede estadual de educação. Na zona boêmia de BH, a jovem é apenas Tati.
Em suas próprias palavras, Tati é
mulher “com jeito de garota”. Seios pequenos, corpo mignon, 1,50m de altura,
coxas grossas. A sensualidade esconde a intelectual formada em sociologia pela
Universidade Federal do Pará (UFPA) e com mestrado não concluído na mesma
instituição. Com o grande parte das mulheres que trabalham ali, Tati não é
mineira. Nasceu no Pará e cresceu em família de classe média, mãe filósofa e
pai técnico de pavimentação de estradas. “Eu era uma patricinha”, comenta.
Depois de crise de estresse no
mestrado, aceitou o convite de uma amiga e, em 2013, mudou-se para BH para
espairecer. A temporada mineira trouxe novas experiências profissionais.
Primeiro, o telemarketing, depois, aulas de sociologia em escolas públicas. E,
no meio disso, a prostituição. “Briguei com a minha amiga e fui morar sozinha.
Teve um dia que o dinheiro não dava. Fiz anúncio em site de encontros casuais
e, em uma semana, fiz R$ 1 mil”, lembra. A descoberta da Guaicurus ocorreu este
ano, como opção mais segura em relação à prostituição pela internet.
A mãe e os quatro irmãos
continuam no Norte do país. Opai, seu melhor amigo, faleceu em fevereiro. A
morte dele mexeu com a garota. E, diferentemente da Hilda Furacão das páginas
do escritor Roberto Drummond, Tati não quer mais ser um mistério. Pelas lentes
do Estado de Minas, ela mostra o rosto pela primeira vez, se despe do medo da
rejeição e assume para a família e a sociedade a atuação profissional no
mercado do sexo.
“Estou usando meu corpo como meu
instrumento de trabalho. Assim como uso meu intelecto na atividade acadêmica. O
que tenho é um foco: pegar o dinheiro e investir na minha carreira”, afirma. A
feminista, que não via com bons olhos o sexo pago, desvestiu-se também dos
preconceitos. “Há muitas mulheres guerreiras aqui, que têm filho, casa e não
querem ser sustentadas por marido”, diz Tati, que preza por sua independência,
acima de tudo. “Não é glamour nem vitimização da mulher. Para mim, é trabalho”,
ressalta.
LIBERAL. Apesar do jeito aparentemente contido, ela sempre gostou
de transar e nunca foi de reprimir desejos. Nem por isso topa tudo. A
camisinha, inclusive, é artigo obrigatório e, preocupada, faz exames periódicos
contra Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis. “Já barrei homens, mas
não dá para escolher muito”, diz a jovem, que concilia a Guaicurus com as aulas
numa escola estadual e a especialização no ensino da língua inglesa. “O salário
de R$ 1,4 mil de professora não dá para pagar aluguel, as contas e a
especialização”, reforça. Sem falar na musculação e ioga para manter a forma.
Embora bem resolvida com as escolhas da vida, Tati não nega uma certa
frustração. “É muita batalha do meu pai, da minha mãe, são muitas horas de
estudo para eu não conseguir por meus méritos uma vida digna dentro da
profissão de socióloga”, diz. Mas ela nunca deixa a pesquisadora de lado. “Você
tem o livro Hilda Furacão para me emprestar?”, pergunta Tati à repórter do EM.
Ela está assistindo a
documentários e lendo livros para desvendar sua profissão. Um trabalho que tem
prazo de validade: cinco anos. Coincidência ou não, Hilda também estabeleceu
que se prostituiria por cinco anos e nem mais um dia. Para Tati, é o tempo
suficiente para juntar mais dinheiro. Dali em diante, não alimenta sonho de
casamento ou filhos. Também não pensa em voltar para o Pará, onde vive um rapaz
que faz seu coração bater forte. “Quero escrever, quero publicar, quero deixar
um legado para a sociedade. Quero ajudar a construir uma sociedade não
preconceituosa. E isso tem que começar por nós.” (Flávia Ayer).
Perfil da zona boêmia
“A prostituição também reproduz
hierarquias sociais. Na zona boêmia, hotéis mais caros, com melhor
infraestrutura, são ocupados por mulheres jovens, de pele mais clara e dentro
dos padrões estéticos socialmente valorizados, e têm maior frequência de
estudantes universitárias. Mesmo assim, há neles diversidade de perfis
socioeconômicos, ‘raciais’, educacionais e geracionais. Nos hotéis mais
baratos, essa diversidade se acentua, com maior quantidade de mulheres acima de
40 anos, negras e com sobrepeso. Como aponta Wendy Chapkins (1997), diferenças
de classe e status não apenas dividem os lugares ocupados pelas trabalhadoras
no comércio do sexo, como criam distintas experiências, inclusive em relação ao
valor e respeito com que são tratadas.”
Trecho de artigo escrito pela socióloga e prostituta Tatiana Vieira e
pela antropóloga Marina França
Fonte: Estado de Minas
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