terça-feira, 12 de abril de 2016

A realidade dentro da ficção

O mito que viveu no glamour dos anos 1950 morreu na solidão de um asilo
Um boato festivo, colorido, maravilhoso...”, dizia Roberto Drummond, quando questionado sobre a existência, ou não, da mulher que mexeu com o imaginário nacional. Mestre em mesclar realidade e ficção em seus romances, o escritor dizia que a personagem existiu, mas foi mitificada e mistificada. Na obra, ela se despede da história em uma conversa com Drummond em Buenos Aires, longe da vida agitada da Guaicurus. 

E recomenda: “Por que você não diz aos seus leitores que, tal como contou no seu romance, eu, Hilda Furacão, nunca existi e sou apenas um 1º de abril que você quis passar nos seus leitores?”. O escritor não acha a ideia de todo mal.
Durante muitos anos, a dúvida e os mistérios dessa obra repercutiram na imaginação popular. Hilda virou lenda, mito, boato e inspiração para mulheres na Guaicurus. E, até hoje, algumas profissionais que chegam ou estão ali há tempos dizem saber um “pouquinho (ou muito) dessa história”. Do livro nasceu a minissérie de TV adaptada por Glória Perez, em 1998, e também deu origem a musical no teatro, em 1997. Até que, em julho de 2014, ainda sem pistas do quanto Drummond usou de ficção ou de realidade, o Estado de Minas encontrou a verdadeira Hilda. Aos 83 anos, a mulher conversou com a reportagem em um asilo em Buenos Aires, sem glamour ou luxo, nem resquícios da vida na zona boêmia de BH. Aliás, a Rua Guaicurus não existia mais na memória dela. “O meu apelido, de Furacão, é antigo, porque eu era brigona. Se mexessem comigo, estourava, discutia, queria bater. Sou assim desde pequena”, disse, na época, com exclusividade, ao repórter Ivan Drummond, do EM.
Hilda Maia Valentim, assim batizada, morreu no fim de 2014. Já estava debilitada e confusa mentalmente, e faleceu sozinha no asilo mantido pela Prefeitura de Buenos Aires. Em seu enterro, compareceram apenas três pessoas. Um destino, sem dúvida, inimaginável pelos leitores de Drummond. E é aí que a ficção e a realidade entraram em conflito novamente.
A Hilda Furacão descrita pelo escritor chegava à zona boêmia de BH em 1º de abril de 1959 e se hospedou no quatro 304 do Maravilhoso Hotel. Na obra, a mulher, de beleza estonteante, era figura frequente na piscina do tradicional Minas Tênis Clube. “Ela era bela, inesquecível moça”, escreveu Drummond, que revela o nome completo da musa; Hilda Gualtieri von Echveger, filha de mãe italiana e pai alemão. No Minas Tênis, usava o maiô dourado, o que permitiu ao escritor chamá-la, carinhosamente, de a Garota do Maiô Dourado.
Encarregado de descobrir o porquê de a menina da Zona Sul ter largado a boa-vida, Drummond relata em sua obra que até um poderoso banqueiro fez de tudo para se casar com Hilda, mas ela recusou e, alguns dias depois, foi para a zona boêmia. Para a nova moradora da Guaicurus havia filas, os homens a veneravam e até mesmo um frei foi contaminado pelo que Drummond denominou de Mal de Hilda. Um amor que, correspondido pela protagonista, ficou na imaginação. A garota do maiô dourado abandona a vida na Guaicurus, em 1º de abril de 1964, e, no livro, se reencontra com Drummond, tempos depois, em Buenos Aires, e sugere ao autor fazer da sua história uma brincadeira do Dia da Mentira.
A verdadeira Hilda, de fato, deu vida à literatura sem ter vivido o que a imaginação do escritor mineiro eternizou. A Furacão existiu, mas não era rica, nem sequer chegou perto do Minas Tênis Clube. Aliás, morreu sem saber onde era o clube. Hilda foi mulher de Paulo Valentim, um dos grandes ídolos do clube argentino Boca Juniors, que a conheceu na zona boêmia, nos anos 1950. Ele jogava no Atlético e era frequentador dos bares da região. Um dia foi ao quarto de Hilda, passou a procurá-la sempre, e se apaixonou.
MATRIMÔNIO Como bebia muito e era briguento, Paulo Valentim passou a ser um problema para a diretoria atleticana. O fato acelerou a venda do jogador para o Botafogo, em 1957. Foi para o Rio, mas a cabeça continuou em Hilda Furacão. Dizem que, ao fim de um jogo, ele pegava um ônibus para se encontrar com a amada. Tanto foi que decidiu se casar e a levou para a cidade natal dele, Barra do Piraí (RJ). Hilda dizia que, antes de se casar com Valentim, chegou a trabalhar em casa de famílias como empregada doméstica.
Ele jogou com Garrincha, Didi e Zagallo, no Botafogo. Foi para a Seleção Brasileira e esteve ao lado de Pelé. Depois, foram para Argentina, onde defendeu o Boca Juniors. O casal tinha uma vida de luxo. Mas, com a bebida e o vício no jogo de cartas, Valetim ficou na miséria. E o casal acabou morando de aluguel ou de favor. Em 9 de julho de 1984, Valentim morreu em consequência da bebida. Hilda teve um filho com ele, Ulisses, que morreu em 2013, por causa de diabetes.
Hilda passou a viver com a nora, Teresa Ignes Rodríguez. Um dia, Ignes chegou em casa e encontrou a sogra desmaiada. Tinha batido com a cabeça no chão. Depois de medicada, logo em seguida levou outro tombo, com outro corte na cabeça. Levada para o hospital em Buenos Aires, ela foi tratada e, como não podia ficar, foi para o asilo, onde morreu entre as lembranças e a solidão. (Luciane Evans)

Fonte: Estado de Minas

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