segunda-feira, 11 de abril de 2016

‘‘A grande pérola da prostituta é acolher e escutar’’


Deitada em lençóis brancos da grife M. Martan e encostada nos seis travesseiros, Sarug Dagir está toda nua. Com uma mão, envolve uma almofada roxa em frente ao colo. Com a outra, segura a apostila que reúne a obra Inibição, sintoma e angústia, de Sigmund Freud (1856-1939), criador da psicanálise. Como o movimento está fraco, ela adianta a leitura dos textos do doutorado. Sarug, com seu 1,80m e 38 anos, não cabe em definições simplistas. Transexual, psicóloga, mestre em literatura, doutoranda, casada, professora universitária e “puta”, como gosta de ser chamada nas imediações da Rua Guaicurus.

Era nosso segundo encontro para esta reportagem e, assim que me viu, Sarug pediu que eu entrasse e fechasse a porta do quarto que aluga no Hotel São Paulo. Enquanto conversava, pôs um vestido comportado comprado em loja de madame. “Em sua origem, a puta é a sacerdotisa dos templos sagrados. Tento buscar esses elementos com o lençol sempre branco, as flores, o abajur, faço um resgate da sacralização da prostituta”, argumenta. Em frente à cama, uma mesinha rodeada por duas cadeiras, balas para os clientes e um armário de madeira de demolição.


Ali ela acolhe os deserdados do mundo, assim como a personagem de Drummond. “A grande pérola da prostituta é acolher e escutar. O cliente sai melhor do que entrou. Às vezes, ele vem só para conversar. Não estou atuando como psicóloga, mas procuro trazer mais humanidade ao atendimento. Quero ajudar as pessoas”, diz Sarug, que estuda no doutorado em psicologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) o efeito terapêutico da prostituição.

Tal qual Hilda, a baiana é filha da classe média alta. Mudou-se de Salvador para BH para estudar psicologia. Aplicada, aprendeu alemão para ler Freud e grego para ler Platão. Além de se aprofundar nos estudos, mergulhou dentro de si até reconhecer sua identidade. Foi quando “o Sarug”, nome árabe que significa ‘amigo’, passou a ser “a Sarug” – não fez a cirurgia de mudança de sexo, pois quer preservar sua “singularidade”. A prostituição veio na carona e, no século 21, ela mostra que ser Hilda não se traduz em ser mulher. Somente na Guaicurus, são três hotéis voltados somente para as trans. “Os travestis e transexuais estão enclausurados na prostituição”, comenta Sarug, criticando a dificuldade de inserção no mercado de trabalho.


                    Transexual divide a cama e a vida acadêmica entre prostituição e psicologia

DIÁRIO DE ALCOVA Logo depois de concluir o mestrado, já transexualizada, há cerca de 10 anos, Sarug perdeu os benefícios estudantis. “Comecei a passar fome. Um amigo antropólogo me sugeriu a prostituição. Tinha preconceito, mas passar fome não é brincadeira”, conta. Ela foi para a rua e topava programas por R$ 5 ou R$ 10. “Cada dia ia a campo, chegava em casa e escrevia um diário etnográfico”, diz, enquanto ajeita uma sacola. No diário, relata casos de clientes, fala de uma surra que levou dos travestis e da “cafetinagem” ainda existente.
A chegada à Guaicurus foi uma questão de tempo e a permanência, uma questão de gosto. “A gente tem de fazer o que gosta. Tem que gozar. A prostituição trouxe também méritos de me conhecer melhor”, afirma. Hoje, ela concilia a atividade com as aulas em universidades e os estudos. Nos programas, conheceu também o amor. Há cerca de dois anos, Sarug se casou com um cliente “Ele não conhecia o mar, roda-gigante. Fui me encantando pela sua ingenuidade”, diz.
O marido trabalha como açougueiro e nunca havia transado com uma transexual. Apaixonou-se por ela, casou, mas não concorda que a mulher continue na zona. Sarug encontrou um meio-termo e, para agradar ao marido, fica na Guaicurus até as 15h. Já são quase 16h. “Tenho que me preparar para um seminário na universidade e daqui a pouco estou indo embora para fazer a janta para meu marido”, diz, ansiosa. “As trans sofrem esse estigma de ser mulher na condição de passar, lavar, cozinhar”, afirma. Daqui para frente, ela ainda não definiu o rumo da vida. Mas talvez transforme tudo isso em um livro. De onde estiver, Drummond agradece. (Flávia Ayer)

Fonte: Estado de Minas