Normalmente o Sábado Santo não
merece maior atenção de nossa parte; acabada a Sexta-feira Santa já pensamos no
Domingo da Ressurreição. No entanto, o Sábado Santo reivindica uma reflexão e
um lugar na nossa vida espiritual.
Pelo Pe. Adroaldo Palaoro sj
O Sábado Santo é um dia de penumbra:
entre a sombra da Sexta-feira e a luz do Domingo. É o dia da ambiguidade, do
luto e da possível boa notícia, da espera e da esperança. É o dia dedicado à
solidão de Maria, o “dia não-litúrgico”. É o dia em que Jesus “desce” à morada
dos mortos, na obscuridade mais absoluta. Ali não há visão de Deus; por isso, a
Escritura a chama “inferno”.
É o dia do ocultamento de Deus,
do silêncio de Deus Pai, da grande solidão de Jesus, do Filho perdido na
obscuridade, na “terra de ninguém”. Jesus no túmulo simboliza o silêncio, a
volta ao mais íntimo de si mesmo, abraçando a solidão sem se sentir solitário.
Um Silêncio entendido como outra forma de presença de Deus.
O silêncio de Deus deve ser
respeitado, pois a Deus lhe dói a morte de seus fiéis (Sl. 116,15): o Pai não
estará fazendo luto por seu Filho e por suas criaturas?
* Não será que o silêncio do
Sábado Santo supõe o direito de Deus se calar?
* Quê Deus não tem direito de
guardar silêncio?
* Quem somos nós para exigir de
Deus que nos esteja falando continuamente?
Se não oramos a partir desse
silêncio, é porque ainda não mergulhamos no mistério do Amor compassivo.
Muitas vezes negamos a Deus o que
de mais humano há em nós: o poder fazer comunidade compassiva e solidária,
compartilhando a dor e o luto.
O Pai está de luto; toda a
natureza, em silêncio, acolhe a semente do Corpo do Verbo, na esperança de
germinar Vida plena. O Sábado Santo, portanto, não é o mutismo de Deus, mas seu
Silêncio, ou seja, a ação oculta de Deus estendida no tempo; morte e ressurreição
são simultâneas no presente de Deus, mas no acontecer humano só podem ser
sucessivas.
Deus nos fala em sua mudez. O
silêncio do Senhor nos move a procurar, a escutar, a enxergar...
Além disso, através da passagem
do Sábado Santo realiza-se uma transformação radical de nossa imagem de Deus:
não como um Ser Onipotente insensível, que desconhece a dor, senão como Amor
vulnerável e vulnerado, que assume como Seu o sofrimento da humanidade.
Para que haja uma nova
revelação de Deus, deve haver “interrupção”,
“silêncio”, da antiga. O Sábado Santo nos faz “morrer” a uma imagem de Deus
para abrir-nos a outra nova dimensão e compreensão de seu Mistério. Atravessada
a prova dessa “ausência”, seremos levados à Outra Margem, na qual nossa relação
com Deus ficará purificada e aprofundada.
Sábado é o dia da paciência, o
dia da esperança freada, o dia em que a esperança é acrisolada pelo fogo.
“O Sábado Santo é aquele
intervalo único e irrepetível na história da humanidade e do universo em que
Deus, em Jesus Cristo, compartilhou não só nosso morrer, mas também nosso
permanecer na morte. A solidariedade mais radical” (Bento XVI).
Quem não experimenta isso,
permanece no sábado da sepultura, o sábado que não teria nada de “santo”; seria
o sábado do castigo e do enterro daquele que por culpa se viu privado de vida.
O desconcerto diante da sexta-feira santa pode ser tal que não fica esperança,
nem razão para a missão.
Nesta última forma de
solidariedade se completa a humanização de Jesus. E o ator dessa humanização
total foi o Espírito Santo. A morte de Jesus esteve cheia de Espírito Santo.
“Quer dizer que Deus, ao fazer-se homem, chegou ao ponto de entrar na solidão extrema
e absoluta do homem, onde não chega nenhum raio de amor, onde reina o abandono
total sem palavra alguma de consolo: os infernos. Jesus, permanecendo na morte,
ultrapassou a porta desta solidão última para guiar-nos também a nós a
ultrapassá-la com Ele.
Todos temos sentido alguma vez
uma sensação espantosa de abandono. Isto é o que mais tememos da morte. Como os
meninos, nos dá medo ficarmos sozinhos na escuridão. Só a presença de uma
pessoa que nos ama nos dá segurança. Pois bem, isto é o que ocorreu no Sábado
Santo: no reino da morte ressoou a voz de Deus. Aconteceu o inimaginável: que o
Amor penetrou “nos infernos”: na obscuridade extrema da solidão humana mais
absoluta. Também nós podemos escutar a voz que nos chama e a mão que nos toma e
nos tira para fora. O ser humano vive porque é amado e pode amar. E se no
espaço da morte penetrou o amor, então chegou ali a vida. Na hora da extrema
solidão, nunca estaremos sozinhos” (Bento XVI, discurso de 2 de maio de 2010)
Deus se revela não só na Palavra,
também em seu Silêncio, em seu ocultamento. Quando Deus cala e faz calar,
fecha-se os lábios, entra-se no mistério, na mística. Também a vida cristã
participa da obscuridade deste dia. Ela se sente chamada a morrer a si mesma
cada dia: “viver é dizer constantemente adeus” (Card. Danneels); ela não quer
ter medo da morte, porque, caso contrário, teria também medo da vida. Isaac o
sírio dizia que os verdadeiros sábios são aqueles que “aspiram a vida dentro da
morte”. Aqui acontece o paradoxo na vida espiritual: quanto mais se “sobe”,
mais se “desce”. Para renascer a uma
esperança viva, teremos que passar pela experiência de “descida ao inferno”, à
escuridão, à terra de ninguém.
Mas não podemos esquecer que o
ocultamento de Deus é experimentado no contato
com a dor e a morte dos outros. A esperança cristã nos leva a
com-padecer e com-morrer. Com eles permanecemos na morada dos mortos e
“descemos aos infernos”. Mt. 25 nos apresenta os que sofrem como manifestações
terrenas da proximidade de Deus. É aqui onde tem lugar o seguimento. É
seguimento no espírito da com-paixão. Seguir a Jesus até o inferno, a
obscuridade, pois Deus habita em uma luz inacessível (1Tim. 6,16).
O Sábado Santo é também um dia
inquieto. No sábado santo da sociedade pós-moderna, somos terra de penumbra.
Nela se antecipa a esperança do dia de Páscoa.
“Nossa época se converteu sempre mais em um Sábado Santo: a obscuridade
deste dia interpela a todos aqueles que se perguntam pelo sentido da vida, e de
maneira especial nos interpela a nós que cremos. Também a nós nos afeta esta
obscuridade” (Bento XVI).
Como as mulheres, nos deslocamos
para o sepulcro, levando aromas. As orações são aromas que o Espírito recolhe
em sua taça. A esperança é aroma que faz esquecer a putrefação do cadáver. Na
noite do sábado santo nos propomos dormir pouco e levantar-nos muito cedo,
porque algo vai acontecer. A Luz está para chegar. O Espírito ficou sem
palavra, mas já sussurra. A voz do silêncio já geme; nele vislumbra-se a
chegada da Vida. Algo grandioso se prepara.
Da escuridão da morte do Filho de
Deus brota a Luz de uma esperança nova: a luz da Ressurreição reflete-se no rosto de Maria. Nossa amizade e
devoção a Maria da esperança, a transparência feminina do Espírito, nos mantém
no ritmo da espera. Aproximam-se os rumores de ressurreição. É Páscoa.
Não basta renascer; é preciso
assumir nossa condição de responsáveis de uma Nova Vida.
Textos bíblicos: Mc. 15,42-47
Jo. 19,38-42
Tarde de silêncio: recordar os
grandes silêncios da vida (perdas, fracassos, crises...) onde não há razões,
não há uma lógica... mas no silêncio profundo, algo novo começa a germinar...
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