“Tenho 32 anos, sou de São Miguel Paulista
(SP), fui traficada e obrigada a me prostituir”. Assim Daniela* começa a contar
sua história. Ela foi levada à Madri, Espanha, onde foi explorada sexualmente
por cinco meses.
Na época, Daniela tinha 20 anos e
era de família humilde. Esse é o perfil da maioria das vítimas do tráfico
internacional de mulheres, um crime silencioso. Desempregada e cheia de
dívidas, ela foi convidada por um aliciador – pessoa que aborda a vítima – para
trabalhar como garçonete em São Paulo (SP). No mesmo dia, foi surpreendida ao
ser levada para um prostíbulo, onde trabalhou por uma semana, e em seguida foi
vendida para uma boate em Madri.
Segundo dados da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) de 2005 (último levantamento referente ao
tema), o tráfico de pessoas é apontado como uma das atividades criminosas mais
lucrativas do mundo, que envolve cerca de 2,5 milhões de vítimas, e movimenta
aproximadamente U$ 32 bilhões por ano.
Tráfico de pessoas
Por ser um crime oculto e
silencioso, é difícil delimitar um número específico de quantas mulheres são
vítimas de tráfico para fins sexuais, mas o governo brasileiro tem trabalhado
de forma integrada para combater o crime.
Hoje, 17 ministérios atuam com
políticas públicas, estratégias de formação profissional, ações de prevenções e
de repressão ao tráfico, além de parcerias com organizações não governamentais
e representações e policias internacionais.
“Este é um crime ainda muito
invisível. Esperamos que aumente o número das denúncias cada vez mais e que as
pessoas sintam coragem de revelar o que aconteceu. As mulheres ainda se sentem
responsáveis por terem sido enganadas, por terem aceitado o convite”, destaca
Fernanda Alves dos Anjos, diretora do Departamento de Justiça, Classificação,
Títulos e Qualificação, da Secretaria Nacional de Justiça/Ministério da
Justiça.
Crime chega a movimentar cerca de
32 bilhões de dólares por ano
Ações do governo
Uma das ações do governo
brasileiro em resposta a este crime foi a criação dos Núcleos Estaduais de
Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETPs) e dos Postos
Humanizados Avançados, que foram implantados para garantir os direitos das
vítimas. Os espaços oferecem suporte às vítimas de tráfico internacional quando
ainda estão no aeroporto, ou posteriormente, com o apoio direto emergencial,
difusão de informações e promoção de ações de prevenção.
“A vítima chega no aeroporto de
Guarulhos (em São Paulo), por exemplo, e o posto humanizado já faz a primeira
atenção e direciona para os serviços necessários. Cada pessoa vai demandar
níveis de atenção muito específicos. Às vezes acionam a defensoria pública,
outras vezes, exames médicos, várias redes são acionadas para apoiar esse
acolhimento”, destaca Fernanda.
Um marco do governo sobre o
assunto foi a criação do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas, que teve o primeiro balanço lançado em janeiro deste ano. O documento
reúne análises e a avaliação sobre o funcionamento do sistema de monitoramento
e o progresso das 115 metas e 14 atividades do II PNETP, desenvolvidas ao longo
dos últimos 19 meses.
O balanço avalia os avanços e as
dificuldades encontradas pelos órgãos para atingir suas metas, o que permite
adotar estratégias para uma melhor execução do II PNETP para os próximos dois
anos de sua vigência, que será até 2016.
O Ligue 180 Internacional é outra
ferramenta de combate à violência contra mulheres. Criado em novembro de 2011, ele
atende atualmente 15 países – Espanha, Itália, Portugal, França, Estados
Unidos, Inglaterra, Noruega, Guiana Francesa, Argentina, Uruguai, Paraguai,
Holanda, Suíça, Venezuela, Bélgica e Luxemburgo. Cada país tem um número
específico, que pode ser solicitado junto à Secretaria de Política para as
Mulheres ou no próprio 180, e o atendimento é feito em português, inglês ou
espanhol. Com o serviço, tanto as vítimas quanto as famílias podem buscar
orientação e informações de como proceder diante do crime ou da suspeita dele.
Em maio de 2013, o Brasil se uniu
a outros dez países na campanha Coração Azul, que atua contra o tráfico de
pessoas. A ação é uma parceria entre o Ministério da Justiça e o Escritório das
Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), e no Brasil recebeu o slogan
“Liberdade não se compra. Dignidade não se vende”, que expressa o princípio
base do trabalho que vem sendo realizado
no enfrentamento ao tráfico de pessoas e reforça a luta contra este crime no
País.
A ação tem como símbolo o coração
azul, que representa a tristeza das vítimas e lembra a insensibilidade daqueles
que compram e vendem seres humanos. O uso da cor azul também demonstra o
compromisso da ONU com o combate ao tráfico de pessoas.
A informação ainda é a maior arma
contra este crime.
Fique atento a sinais suspeitos.
Prevenir é a melhor opção
Como tudo começa
O crime começa quando a vítima é
abordada pelo aliciador, que oferece uma suposta proposta de emprego em outro
país. Marco Aurélio de Souza, secretário-executivo do Projeto Resgate Brasil —
uma das principais ONGs que tratam do assunto — explica que esse profissional,
na maioria das vezes uma mulher de meia idade e de boa aparência, é muito bem
preparado para convencer a vítima que esse emprego vai proporcionar uma vida
muito melhor.
“No dia da viagem elas são
levadas para o salão de beleza e ganham um banho de loja. Ainda no avião, o
criminoso retém o passaporte das vítimas e as leva diretamente para a boate
para onde foram vendidas. Lá elas são informadas que só poderão sair dali
quando conseguirem pagar o valor que custaram para o local. E tudo vira uma
dívida impagável”, explica Marco.
Ele aponta que as vítimas têm, em
média, entre 20 e 29 anos, ensino fundamental incompleto, 90% já têm filhos e
aceitam o convite com o sonho de juntar dinheiro para comprar uma casa para
mãe, que fica no Brasil cuidando do seu filho.
Nessas boates as vítimas são
obrigadas a manter uma média de 10 a 15 relações sexuais por dia, a beber e se
drogar para acompanhar os clientes e gerar mais lucros para os
estabelecimentos.
“Eu era espancada quando me
recusava a me relacionar. Dividia o quarto sempre com outra brasileira e duas
europeias, todas traficadas, dormíamos no mesmo quarto que atendíamos os
clientes. Quando eu estava menstruada era obrigada a usar algodão para não
demonstrar. A hospedagem era em condições insalubres com o suficiente para
sobreviver e gerar lucro para os traficantes. Eles fazem isso para que a vítima
nunca consiga pagar suas dívidas e mantenha um vínculo financeiro impagável”,
relembrou Daniela.
A venda
Valdir Monteiro, coordenador do
Comitê de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do estado de Goiás, explica um
pouco da comercialização dessas vítimas. Ele afirma que cada mulher tem um
prazo de validade dentro da boate e periodicamente são vendidas para outros
estabelecimentos de regiões próximas para que não tenha perigo da vítima criar
vínculos com os clientes.
“Na Espanha, por exemplo, já
conseguimos confirmar que a cada 28 dias elas são vendidas, cada vez por um
valor mais baixo. Essa rotatividade acontece porque a partir de um mês a vítima
já cria um pouco de intimidade com os clientes, aprende um pouco da língua e
consegue pedir socorro, explicando que foi traficada. A maioria consegue fugir
com ajuda do cliente. Isso é fato”, diz Monteiro.
Depois de cinco ou seis meses,
quando a vítima já foi vendida para todas as boates da região, ela é solta, sem
saúde, sem dinheiro, sem autoestima, e sem valor, como os donos de prostíbulos
se referem a elas. Perdidas, sem orientação, e muitas vezes sem o apoio da
família, acabam voltando a se prostituir para sobreviver. "Ninguém oferece
nada de graça. Cuidado", alerta Valdir.
Em busca da reinserção na sociedade
Daniela hoje é casada e mãe de
família, mas mesmo após mais de dez anos de ter sofrido o tráfico, ainda sente
o preconceito da sociedade. "Até hoje faço acompanhamento psiquiátrico e
tomo remédio tarja preta. As pessoas ainda estão mergulhadas na ignorância de
que prostitutas e traficadas são a mesma coisa e me discriminam por isso, e não
são. Eu não tive a opção de não me prostituir. A única coisa que peço é que a
sociedade entenda isso”, relata Daniela, que somente agora conseguiu uma chance
de voltar ao mercado de trabalho.
"Depois de tanto sofrimento,
quero ser a voz das mulheres que estão em cárcere privado sendo obrigadas a se
prostituir, a consumir drogas e álcool para gerar lucro para os traficantes.
Quero ser a voz das vítimas do tráfico para fins de exploração sexual que
contraíram Aids e por vergonha nunca mais voltaram para a casa. Quero ser a voz
das mulheres presas por tráfico de drogas porque foram obrigadas pelos traficantes
de pessoas a consumir e repassar essas substâncias ilegais", deseja
Daniela.
*O nome Daniela usado nesta
matéria é fictício.
Fonte: Portal Brasil, com
informações do Ministério da Justiça
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