A opressão a mulheres por meio do
judaísmo ortodoxo complementa o machismo secular israelense e serve aos
propósitos do projeto sionista no país.
O texto abaixo descreve a
opressão a mulheres por meio do judaísmo ortodoxo que, apesar de restrito a
grupos específicos, complementa o machismo secular israelense e serve aos
propósitos do projeto sionista. Ele procura contribuir para desconstruir a falsa
ideia inabalável da democracia judaica. Contudo, apesar de não discorrer sobre
o assunto, parto do pressuposto de que qualquer corrente política que prega a
eliminação de outro povo não poderia ser menos excludente. Se as mulheres
judias são, por vezes, sexualmente reprimidas, elas podem também representar o
agente opressor: as mulheres palestinas são duas, três, quatro vezes menos
privilegiadas. Elas sofrem por serem mulheres, por serem muçulmanas, por serem
palestinas, por serem pobres. Me ative ao judaísmo porque sou judia e não
pretendo falar sobre uma aflição que me é tão distante. Mas aproveito o espaço
para prestar solidariedade às mulheres palestinas.
Bendito és Tu, A-do-nai, nosso
D-us, Rei do Universo, que não me fez mulher.
Este trecho faz parte da benção
matinal judaica (Manual de Bençãos, Editora Chabad), que é recitada todas as
manhãs por judeus, enquanto judias terminam a reza substituindo a parte
destacada por que me fez conforme Sua vontade.
Menina judia lê o Torá em Jerusalém,
próxima ao Muro das Lamentações
Eu cresci em um ambiente judaico
praticante que, apesar de não ortodoxo, compartilhava espaços sagrados com
famílias mais religiosas. Quando criança, me disseram para recitar a frase
acima sempre ao acordar. Vi minha mãe ir ao mikvé, local em que acontece um
ritual para purificação da mulher após cada menstruação e o nascimento de um
filho. Vi minha avó usar peruca, porque judias religiosas não podem mostrar seu
cabelo natural para qualquer homem que não seja da família. Fui convidada para
casamentos de garotas de menos de 20 anos. Ouvi de professoras de escolas
judaicas que as garotas não precisavam aprender tanto – afinal, logo casariam e
teriam filhos e suas vidas se resumiriam a isso. Ouvi que os rabinos acompanhavam
o ciclo menstrual das mulheres e as orientavam a ter relações conjugais com
seus maridos nos dias férteis. Fui a sinagogas em que as mulheres se sentavam
de um lado e os homens de outro. Em algumas, os homens ficaram no andar
inferior, de frente à Torá (livro sagrado judaico), enquanto às mulheres
ficavam reservadas poucas cadeiras, no andar superior, de onde mal se conseguia
assistir às rezas.
Quando ia à sinagoga, eu tirava a
roupa cotidiana e me vestia de acordo com a ocasião: precisava cobrir meu corpo
entre os joelhos e os cotovelos, e pra isso tinha separados camisas
três-quartos, saias que iam até depois do joelho e sapatos fechados. Eram as
“roupas de sinagoga” e eu não questionava a mudança das vestimentas,
considerando que se tratava de algo relacionado à etiqueta daquele lugar tão
diferente da minha casa. Mas me deixava muito chateada que uma amiga ortodoxa
da minha idade não pudesse assistir televisão comigo, e eu achava estranho que
conhecidas mais velhas estivessem em vias de se casar com quem não conheciam.
Uma vez, ainda criança, reclamei
para minha tia que tudo aquilo não era justo. Ela me respondeu firme, sem
perceber a grande lição que estava me dando sobre relativismo cultural: “para
elas, isso é felicidade”. Não pensei mais no assunto nos anos seguintes,
procurando acreditar que minha tia estava certa.
Mas ela, que é mulher e judia,
vai lutar pela Palestina?
Um familiar contou que ouviu essa
frase, relacionada a mim, vinda de um funcionário de uma instituição judaica
(não sei qual), quando teve conhecimento de que eu estava começando a militar a
favor da Palestina. Imagino que ele não soubesse que, assim como eu estava me
introduzindo e engajando na causa palestina, também me aproximava do feminismo.
A verdade é que foi ótimo ter
ouvido essa frase, pois ela me deu muito mais clareza para entender a
necessidade de lutas transversais, ou seja: não adianta lutar contra o sionismo
sem lutar contra o machismo; não adianta lutar contra o machismo sem lutar
contra o racismo e por aí vai. As lutas se complementam. Percebi que por ser
mulher eu tinha ainda menos direito de me posicionar contra o sionismo e suas
políticas fascistas. Isso se deve, além de ao machismo estrutural do qual os
judeus não escapam, ao machismo particular reproduzido pelo judaísmo –
principalmente o ortodoxo.
Mas não é exatamente sobre isso
que quero falar.
Os grupos políticos ligados ao
judaísmo costumam se colocar no campo ideológico oposto ao do islamismo,
destacando principalmente os perigos que o extremismo islâmico pode representar
para mulheres. Talvez, por isso, seja surpreendente que o judaísmo não seja
isento de práticas religiosas e culturais que segregam as mulheres. A questão
é: o julgamento de um grupo sobre religiões alheias é determinado pelo poder de
que o grupo dispõe. Não, não se trata de campo ideológico. Trata-se de poder:
ainda que a maior parte das religiões monoteístas seja patriarcal, quem tem
poder, tem legitimidade pra exercer o machismo; quem tem mais poder ainda, pode
exercer o machismo sem ser condenado internacionalmente.
Jovens soldadas que fazem parte
das Forças de Defesa de Israel
Não estou, aqui, querendo
comparar qualitativamente as obscenidades perpetradas pelo Estado Islâmico com
aquelas cometidas pelos Haredim (judeus ortodoxos) ou ainda com o que pregam
alguns líderes evangélicos no Brasil. Minha intenção é apenas a de demonstrar
que os crimes à humanidade praticados por grupos religiosos não devem ser
analisados na chave cultural (ou, ainda, moral), e sim na chave do poder.
Porque eles existem em todos os grupos, mas o desenvolvimento ou a divulgação
dos atos é proporcional ao seu poder, seja ele econômico, social, político ou
militar.
É difícil nos distanciarmos dos
paradigmas que o relativismo cultural nos impõe para discutir política, e isso
inclusive dentro da esquerda: muito se confunde a defesa do oprimido com a
defesa da cultura ou religião do oprimido, perdendo de vista as motivações de
fato da opressão. É a condição social de origem dos imigrantes que determina a
quem a xenofobia será dirigida. Na Europa, por exemplo, os russos que imigraram
no início do século XX não sofreram o preconceito que os armênios sofreram em
seguida e que os árabes sofrem hoje, justamente por conta de terem pertencido à
elite em seu país de origem . Ou seja: poder.
Os Haredim
Em Israel, por exemplo, os
ortodoxos judeus têm muito poder.
Ainda que haja grande oposição ao
extremismo religioso judaico dentro do país, a situação é especialmente
preocupante devido ao interesse sionista nesse setor da sociedade.
Para que o governo tenha
legitimidade para reivindicar o território é importante que haja uma população
predominante na região. Se formos considerar Israel e os territórios ocupados,
a população judaica não chega a metade. Essa é uma questão que existe desde a
partilha da Palestina: apesar de o plano conceder 53% do território aos judeus,
havia, à época, 600 mil judeus e 1,3 milhão de árabes na região. De lá para cá,
a questão demográfica passou a ter muita importância. Para resolvê-la, o
governo israelense promove campanhas de Aliá, ou seja, a imigração de judeus
para Israel, baseadas na Lei do Retorno, que permite a concessão de cidadania
israelense a qualquer judeu do mundo.
No Muro das Lamentações há uma
divisão entre homens e mulheres em Jerusalém
E é aí que entram os ortodoxos:
com uma média de 6 a 7 filhos por família, os ortodoxos respondem a uma demanda
urgente do Estado sionista de povoar e, consequentemente, controlar a região.
Nesse contexto, e levando em consideração que, para o judaísmo, só é judeu quem
tem a mãe judia, a mulher serve meramente como procriadora. Para isso, como
incentivo ao estabelecimento e procriação dos ortodoxos, o governo oferece a
eles isenção de impostos; dispensa do exército e subsídios financeiros.
Com isso, os ortodoxos têm muito
poder. E, por ter poder, fazem mulheres serem detidas por rezar “como os homens”. Proíbem as
mulheres de cantar publicamente, de aparecer em outdoors ou de ser premiadas.
Colocam em circulação ônibus com divisórias , para que as mulheres se sentem na
parte de trás e segregam as mulheres até nas calçadas. Agridem e chamam uma
garota de oito anos de prostituta por não usar roupas “corretas”. Segregam as
mulheres nas ruas. Apagam lideranças políticas mulheres de fotografias de
grande repercussão mundial. Se recusam a se sentar ao lado de mulheres em voos
internacionais.
Sim, alguns desses casos são
pontuais e não devemos generalizar a conduta de todo um setor da sociedade. Mas
é importante notar duas coisas com relação aos ortodoxos judeus: a proteção
institucional vinda do governo e a blindagem internacional vinda da mídia. Por
que economizar a condenação moral, sempre tão bem-vinda à grande mídia, e
ignorar uma problemática que é objeto de preocupação crescente entre os próprios
israelenses?
Enquanto isso, programas de
propaganda sionista (conhecidos como Hasbará) continuam a divulgar: Israel é o
país mais democrático do mundo.
Fonte: Opera Mundi
Nenhum comentário:
Postar um comentário