Nos tempos que correm, onde o
consumo é estimulado até o paroxismo, onde as ânsias viscerais e os frenesis
possuidores se multiplicam, há vários jejuns que, se praticados, nos farão
imenso bem. E refiro-me aqui não somente
ao jejum alimentar. Mas ao jejum dos
vícios, legais ou ilegais, quais sejam: o álcool, o fumo, a internet em
quantidade desordenada e excessiva, o jogo, o consumo desenfreado. E tantos, tantos outros.
Dizem que, enquanto um terço da
humanidade passa fome, há pelo menos outro terço que come mais do que o
necessário e sofre de obesidade. E há outra expressiva quantidade de pessoas
que vivem de dieta, fazendo regime para emagrecer, correndo atrás da última
novidade para adquirir o corpinho das modelos que vê na televisão. Sem falar no
outro grupo de pessoas que adoece e morre de anorexia. Por outro lado, há o
jejum, praticado por motivos religiosos, sobretudo, mas também éticos e
políticos.
Qual o sentido de jejum? O
dicionário nos ajuda com algumas definições: abstinência ou abstenção total ou
parcial de alimentação em determinados dias, por penitência ou prescrição
religiosa ou médica; privação ou abstenção de alguma coisa.
Dentro de certas escolas
filosóficas greco-romanas e fraternidades religiosas jejuar, como um aspecto de
ascese, foi aproximado à convicção de que a humanidade tinha experimentado um
estado primordial de perfeição que foi perdida por uma transgressão original.
Por várias práticas ascéticas como jejuar, praticar a pobreza voluntária e a
penitência, o indivíduo poderia restabelecer um estado onde a comunicação e a
união com o divino foram tornadas possíveis novamente.
Consequentemente, em várias
tradições religiosas, um retorno a um estado primordial de inocência ou
felicidade ativou várias práticas de ascese julgadas necessárias ou vantajosas,
provocando tal retorno. Para tal se agrupa a suposição subjacente básica de que
aquele jejum era de algum modo propício para iniciar ou manter contato com
Deus. Em alguns grupos religiosos (por exemplo, Judaísmo, Cristianismo e Islã)
jejuar gradualmente se tornou um modo de expressar devoção e adoração a um ser
divino específico.
Além da suposição subjacente
básica de que jejuar é uma preparação essencial para revelação divina ou para
algum tipo de comunhão com o transcendente ou o sobrenatural, muitas culturas
acreditam que o jejum é um prelúdio em tempos importantes na vida de uma
pessoa. Purifica ou prepara a pessoa (ou grupo) para maior receptividade em
comunhão com o espiritual.
Dentro da tradição judaica um só
dia de jejum foi imposto pela lei de Moisés, o Yom Kippur, o Dia do Perdão (Lv.
16:29-34), mas foram acrescentados quatro dias adicionais depois do exílio
babilônico (Zac. 8:19), a fim de fazer memória de desastres que tinham
acontecido. As escrituras judaicas fixaram o jejum dentro do contexto da
vigilância no serviço de Yahveh (por exemplo, Lv. 16:29ff.; Jz. 20:26), e foi
considerado elemento importante como preliminar para profecia (por exemplo,
Moisés jejuou quarenta dias no Sinai; Elias jejuou quarenta dias quando foi ao
Horeb).
No entanto, a Bíblia também
entende o jejum em outra chave de leitura: a prática da justiça e a solidariedade
com os oprimidos. O profeta Isaías, em
seu capítulo 58, 3-10 diz:
De que nos serve jejuar, se tu
não vês,
humilhar-nos, se não ficas
sabendo?
Ora, no dia do vosso jejum,
sabeis fazer bom negócio
e brutalizais todos os que por
vós labutam.
Jejuais, mas procurando contenda
e disputa
e golpeando maldosamente com o
punho!
Não jejuais como convém num dia
em que quereis fazer ouvir no
alto a vossa voz.
Deve ser assim, o jejum que eu
prefiro,
o dia em que o homem se humilha?
Trata-se por acaso de curvar a
cabeça como um junco,
de exibir na liteira saco e
cinza?
É para isto que tu proclamas um
jejum,
um dia favorável junto ao Senhor?
O jejum que eu prefiro, acaso não
é este:
desatar os laços provenientes da
maldade,
desamarrar as correias do jugo,
dar liberdade aos que estavam
curvados,
em suma, que despedaceis todos os
jugos?
Não é partilhar o teu pão com o
faminto?
E ainda: os pobres sem abrigo, tu
os albergarás;
se vires alguém nu, cobri-lo-ás:
diante daquele que é a tua própria
carne, não te recusarás.
Então a tua luz despontará como a
aurora,
e o teu restabelecimento se
realizará o bem depressa.
Tua justiça caminhará diante de
ti
e a glória do Senhor será a tua
retaguarda.
Então tu clamarás e o Senhor
responderá,
tu chamarás e ele dirá: Aqui
estou!
Se eliminares de tua casa o jugo,
o dedo acusador o , a palavra
maléfica,
se cederes ao faminto o teu
próprio bocado,
e se aliviares a garganta do
humilhado,
tua luz se levantará nas trevas,
tua escuridão será como o
meio-dia.
Assim como o Deus de Abraão,
Isaac e Jacó, Jesus de Nazaré também relativiza o jejum formal (Mt.
6:16-6:18). E justamente porque o
primordial é a prática da caridade. Vários textos neo-testamentários o
demonstram (cf. Mt 6, 16-18), ao mesmo tempo em que afirmam que o dar de comer
a quem tem fome não somente é o centro da mensagem evangélica, mas é critério
fundamental para a salvação (cf. Mt 25, 36 ss).
Esta síntese cristã da prática
ascética do jejum não desapareceu da espiritualidade cristã. Pelo contrário; tornou-se a prática ascética
favorita dos monges do deserto. Homens e mulheres viram isto como uma medida
necessária para livrar a alma dos apegos mundanos. A própria tradição cristã
fixou e desenvolveu gradualmente jejuns sazonais, ou seja, próprios a uma
determinada época do ano litúrgico.
Nos tempos que correm, onde o
consumo é estimulado até o paroxismo, onde as ânsias viscerais e os frenesis
possuidores se multiplicam, há vários jejuns que, se praticados, nos farão
imenso bem. E refiro-me aqui não somente
ao jejum alimentar. Mas ao jejum dos
vícios, legais ou ilegais, quais sejam: o álcool, o fumo, a internet em
quantidade desordenada e excessiva, o jogo, o consumo desenfreado. E tantos, tantos outros. Neste movimento de despojamento que o jejum
dos impulsos vários que nossa ânsia consumista inventa e estimula, estaremos
mais livres para receber e perceber as graças que Deus nos dá e as necessidades
e dores que o irmão sofre.
Que um jejum sensato e criativo
não seja uma prática em desuso para nós. Eis um saudável testemunho a dar neste
início de milênio.
Fonte: Dom Total
Maria Clara Bingemer
é teóloga, professora e decana do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. É autora de diversos livros,
entre eles, ¿Un rostro para Dios?, de 2008, e A globalização e os jesuítas, de
2007. Escreveu também vários artigos no campo da Teologia.
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