terça-feira, 10 de março de 2015

Índia proíbe exibição de documentário sobre estupro coletivo

Estupro e morte de jovem desencadeou onda de protestos em várias cidades da Índia
Governo acusou autores de violarem as 'condições de permissão'. Crime aconteceu em 2012; estudante foi atacada em ônibus. No filme, o criminoso culpa a vítima pelo estupro e diz que ela morreu por ter resistido ao ato. As autoridades locais acreditam que tais comentários podem criar uma clima de medo e tensão no país, além de aumentar a indignação da população, criando revolta.

Um documentário sobre o estupro coletivo que resultou na morte de uma mulher em Nova Délhi, em 2012, foi proibido na Índia por causa das preocupações do governo com os comentários depreciativos feitos por um dos estupradores e a violação das diretrizes definidas para os cineastas.
"India's Daughter" (Filha da Índia), de Leslee Udwin, contém conversas com Mukesh Singh e outros condenados pelo estupro e tortura de uma mulher de 23 anos em um ônibus em movimento em dezembro de 2012, crime que provocou protestos em todo país e forçou a Índia a endurecer as leis contra o estupro.
O ministro do Interior da Índia, Rajnath Singh, disse nesta quarta-feira (4) que o documentário não irá ao ar na Índia e acusou seus produtores de violarem as "condições de permissão", por não terem apresentado a filmagem completa, não editada, aos funcionários da prisão.
"Percebeu-se que o documentário traz comentários do condenado que são altamente depreciativos e são uma afronta à dignidade das mulheres", afirmou Singh ao Parlamento.


Fonte: Globo


Leia, abaixo, o testemunho de Udwin e trechos da entrevista dela com o estuprador:

No dia 16 de dezembro de 2012, uma mulher de 23 anos foi assistir ao filme As Aventuras de Pi com um amigo. Às 20h30, eles entraram em um ônibus que estava fora de operação, e outras seis pessoas estavam no veículo: cinco homens e um jovem.
Os homens espancaram o amigo e cada um estuprou a mulher, agredindo-a em seguida com um instrumento de ferro.
Os detalhes terríveis do estupro me levaram a acreditar que encontraria monstros, loucos, psicopatas. A verdade era ainda mais assustadora: os perpetradores eram homens comuns, aparentemente normais.
Mukesh Singh, o motorista do ônibus, descreveu cada detalhe do que aconteceu durante e depois do estupro. Enquanto os promotores afirmam que todos os homens se revezaram e estupraram a jovem, Singh afirma que não participou e ficou no volante do ônibus o tempo todo.
E ele culpa a vítima.


Leslee Udwin, produtora de documentário sobre estupros na Índia

"Uma garota decente não estaria perambulando por aí às nove da noite. Uma garota é muito mais responsável por um estupro do que um garoto", disse.
"Trabalho de casa, serviço doméstico é para garotas, não (é) perambular em clubes e bares à noite fazendo coisas erradas, usando roupas erradas. Cerca de 20% das garotas são boas."
Para Singh, as pessoas "tinham o direito de ensinar uma lição a ela" e a mulher precisa aguentar isto.
"Quando está sendo estuprada, ela não deve lutar. Ela deve apenas ficar em silêncio e permitir o estupro. Então, eles teriam deixado ela depois (do estupro) e apenas teriam espancado o menino", afirmou.
"A pena de morte vai tornar as coisas ainda mais perigosas para as garotas. Agora, quando eles estupram, eles não vão deixar a garota como nós fizemos. Eles vão matá-la. Antes, eles estuprariam e diriam: 'deixa ela, ela não vai contar para ninguém'. Agora, quando eles estuprarem, especialmente os tipos criminosos, eles vão matar a garota. Morte."
Eu tinha em mãos a longa lista dos ferimentos inflingidos à vítima e li a para Singh, esperando algum tipo de arrependimento. Mas não houve nada.

Sintomas, e não a doença

Seria mais fácil entender esse crime hediondo se os responsáveis fossem monstros, maçãs podres, aberrações da natureza.
Para mim, a verdade não poderia estar mais longe disso, e talvez a pena de morte por enforcamento à qual os acusados foram sentenciados até mascare o problema real, que é: estes homens não são a doença, eles são os sintomas.
Um dos homens que entrevistei, Gaurav, havia estuprado uma menina de cinco anos. Passei três horas gravando a entrevista enquanto ele contava com detalhes explícitos como abafou os gritos da criança cobrindo o rosto dela com a mão.
Durante a entrevista, ele estava sentado e tinha um meio sorriso na boca. Talvez um pouco de nervosismo na presença de uma câmera. Em um momento, pedi para que ele me mostrasse a altura da menina e ele se levantou para indicar que ela era da altura de seus joelhos.
Quando perguntei como ele conseguiu cruzar o limite entre imaginar o que queria fazer e realmente fazer - diante da altura da menina, os olhos, os gritos - ele me olhou como se eu estivesse louca. "Ela era uma mendiga, a vida dela não tinha valor", respondeu.
Esses crimes contra mulheres e meninas são apenas parte do problema. Tudo começa com o nascimento de uma menina, que não é tão bem-vinda como um menino.
Quando um menino nasce, doces são distribuídos. Isso não acontece com as meninas. Um menino recebe uma nutrição melhor que uma menina. Os movimentos de uma menina pela cidade são restritos e suas liberdades, reduzidas. Ela é enviada como escrava doméstica para o marido.
Se uma menina vale menos que um menino, a consequência é que os homens acreditam que podem fazer o que quiserem com elas.
'Não há lugar para uma mulher'

Advogados de defesa defendem a morte de mulheres que 'desonrem' a família

Falei com dois advogados que defenderam os assassinos da estudante de 23 anos e o que eles disseram foi revelador.
"Em nossa sociedade nunca permitimos que nossas meninas saiam de casa depois das 19h30, ou 19h30 ou 20h230, durante a noite com qualquer desconhecido", disse ML Sharma.
"Você está falando sobre homem e mulher como amigos. Desculpe, isso não tem lugar em nossa sociedade. Temos a melhor cultura. Em nossa cultura não há lugar para uma mulher."
"Se minha filha ou irmã se envolvessem com atividades antes do casamento (...), e se permitir perder o caráter ao fazer tais coisas, com certeza eu levaria esta irmã ou filha para minha fazenda e, em frente de toda minha família, despejaria gasolina nela e acenderia o fogo", disse outro advogado, AP Singh, em uma entrevista para a televisão local.
Quando o entrevistei, ele confirmou essas declarações.
A desigualdade de gênero é o tumor primário e o estupro, tráfico de mulheres, casamento de crianças, aborto de fetos de meninas, crimes de honra e assim por diante, são as metástases.
E na Índia o problema não é falta de leis - afinal é um país democrático, civilizado e em desenvolvimento. O problema é a implementação das leis.
O artigo 14 da Constituição do país garante direitos iguais para homens e mulheres. Só que, por exemplo, o dote em um casamento é considerado ilegal, mas todas as famílias ainda mantêm esse costume.


Fonte: BBC

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