Estupro e morte de jovem desencadeou onda de protestos em
várias cidades da Índia
Governo acusou autores de
violarem as 'condições de permissão'. Crime aconteceu em 2012; estudante foi
atacada em ônibus. No filme, o criminoso culpa a vítima pelo estupro e diz que
ela morreu por ter resistido ao ato. As autoridades locais acreditam que tais
comentários podem criar uma clima de medo e tensão no país, além de aumentar a
indignação da população, criando revolta.
Um documentário sobre o estupro
coletivo que resultou na morte de uma mulher em Nova Délhi, em 2012, foi
proibido na Índia por causa das preocupações do governo com os comentários
depreciativos feitos por um dos estupradores e a violação das diretrizes definidas
para os cineastas.
"India's Daughter"
(Filha da Índia), de Leslee Udwin, contém conversas com Mukesh Singh e outros
condenados pelo estupro e tortura de uma mulher de 23 anos em um ônibus em
movimento em dezembro de 2012, crime que provocou protestos em todo país e
forçou a Índia a endurecer as leis contra o estupro.
O ministro do Interior da Índia,
Rajnath Singh, disse nesta quarta-feira (4) que o documentário não irá ao ar na
Índia e acusou seus produtores de violarem as "condições de
permissão", por não terem apresentado a filmagem completa, não editada,
aos funcionários da prisão.
"Percebeu-se que o documentário
traz comentários do condenado que são altamente depreciativos e são uma afronta
à dignidade das mulheres", afirmou Singh ao Parlamento.
Fonte: Globo
Leia, abaixo, o testemunho de Udwin e trechos da entrevista dela com o
estuprador:
No dia 16 de dezembro de 2012,
uma mulher de 23 anos foi assistir ao filme As Aventuras de Pi com um amigo. Às
20h30, eles entraram em um ônibus que estava fora de operação, e outras seis
pessoas estavam no veículo: cinco homens e um jovem.
Os homens espancaram o amigo e
cada um estuprou a mulher, agredindo-a em seguida com um instrumento de ferro.
Os detalhes terríveis do estupro
me levaram a acreditar que encontraria monstros, loucos, psicopatas. A verdade
era ainda mais assustadora: os perpetradores eram homens comuns, aparentemente
normais.
Mukesh Singh, o motorista do
ônibus, descreveu cada detalhe do que aconteceu durante e depois do estupro.
Enquanto os promotores afirmam que todos os homens se revezaram e estupraram a
jovem, Singh afirma que não participou e ficou no volante do ônibus o tempo
todo.
E ele culpa a vítima.
Leslee Udwin, produtora de
documentário sobre estupros na Índia
"Uma garota decente não
estaria perambulando por aí às nove da noite. Uma garota é muito mais
responsável por um estupro do que um garoto", disse.
"Trabalho de casa, serviço
doméstico é para garotas, não (é) perambular em clubes e bares à noite fazendo
coisas erradas, usando roupas erradas. Cerca de 20% das garotas são boas."
Para Singh, as pessoas
"tinham o direito de ensinar uma lição a ela" e a mulher precisa
aguentar isto.
"Quando está sendo
estuprada, ela não deve lutar. Ela deve apenas ficar em silêncio e permitir o
estupro. Então, eles teriam deixado ela depois (do estupro) e apenas teriam
espancado o menino", afirmou.
"A pena de morte vai tornar
as coisas ainda mais perigosas para as garotas. Agora, quando eles estupram,
eles não vão deixar a garota como nós fizemos. Eles vão matá-la. Antes, eles
estuprariam e diriam: 'deixa ela, ela não vai contar para ninguém'. Agora,
quando eles estuprarem, especialmente os tipos criminosos, eles vão matar a
garota. Morte."
Eu tinha em mãos a longa lista
dos ferimentos inflingidos à vítima e li a para Singh, esperando algum tipo de
arrependimento. Mas não houve nada.
Sintomas, e não a doença
Seria mais fácil entender esse
crime hediondo se os responsáveis fossem monstros, maçãs podres, aberrações da
natureza.
Para mim, a verdade não poderia
estar mais longe disso, e talvez a pena de morte por enforcamento à qual os
acusados foram sentenciados até mascare o problema real, que é: estes homens
não são a doença, eles são os sintomas.
Um dos homens que entrevistei,
Gaurav, havia estuprado uma menina de cinco anos. Passei três horas gravando a
entrevista enquanto ele contava com detalhes explícitos como abafou os gritos
da criança cobrindo o rosto dela com a mão.
Durante a entrevista, ele estava
sentado e tinha um meio sorriso na boca. Talvez um pouco de nervosismo na
presença de uma câmera. Em um momento, pedi para que ele me mostrasse a altura
da menina e ele se levantou para indicar que ela era da altura de seus joelhos.
Quando perguntei como ele
conseguiu cruzar o limite entre imaginar o que queria fazer e realmente fazer -
diante da altura da menina, os olhos, os gritos - ele me olhou como se eu
estivesse louca. "Ela era uma mendiga, a vida dela não tinha valor",
respondeu.
Esses crimes contra mulheres e
meninas são apenas parte do problema. Tudo começa com o nascimento de uma
menina, que não é tão bem-vinda como um menino.
Quando um menino nasce, doces são
distribuídos. Isso não acontece com as meninas. Um menino recebe uma nutrição
melhor que uma menina. Os movimentos de uma menina pela cidade são restritos e
suas liberdades, reduzidas. Ela é enviada como escrava doméstica para o marido.
Se uma menina vale menos que um
menino, a consequência é que os homens acreditam que podem fazer o que quiserem
com elas.
'Não há lugar para uma mulher'
Advogados de defesa defendem a
morte de mulheres que 'desonrem' a família
Falei com dois advogados que
defenderam os assassinos da estudante de 23 anos e o que eles disseram foi
revelador.
"Em nossa sociedade nunca
permitimos que nossas meninas saiam de casa depois das 19h30, ou 19h30 ou
20h230, durante a noite com qualquer desconhecido", disse ML Sharma.
"Você está falando sobre
homem e mulher como amigos. Desculpe, isso não tem lugar em nossa sociedade.
Temos a melhor cultura. Em nossa cultura não há lugar para uma mulher."
"Se minha filha ou irmã se
envolvessem com atividades antes do casamento (...), e se permitir perder o
caráter ao fazer tais coisas, com certeza eu levaria esta irmã ou filha para
minha fazenda e, em frente de toda minha família, despejaria gasolina nela e
acenderia o fogo", disse outro advogado, AP Singh, em uma entrevista para
a televisão local.
Quando o entrevistei, ele
confirmou essas declarações.
A desigualdade de gênero é o
tumor primário e o estupro, tráfico de mulheres, casamento de crianças, aborto
de fetos de meninas, crimes de honra e assim por diante, são as metástases.
E na Índia o problema não é falta
de leis - afinal é um país democrático, civilizado e em desenvolvimento. O
problema é a implementação das leis.
O artigo 14 da Constituição do
país garante direitos iguais para homens e mulheres. Só que, por exemplo, o
dote em um casamento é considerado ilegal, mas todas as famílias ainda mantêm
esse costume.
Fonte: BBC
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