O ego masculino, imerso em uma
cultura patriarcal, opera, então, uma série de deslizes lexicais para se
conceder um poder sem partilha a partir do relato da criação do livro do
Gênesis.
A opinião é da leiga católica
francesa Anne-Joëlle Philippart, em artigo publicado no sítio Comité de la
Jupe, 23-02-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
É normal que haja relações entre
cultura e religião. Ambas são atravessadas por uma dominação e por uma
transmissão essencialmente masculinas. Desse modo, os homens consolidaram os
seus direitos adquiridos veiculando as histórias que os fortaleciam.
Eles também instrumentalizaram os
mais belos textos sagrados, extraindo-os do seu contexto e interpretando-os
apenas no visual que lhes era favorável.
Os primeiros seis capítulos do
Gênesis são um exemplo disso. A interpretação patriarcal transformou a
"gênese da criação" em "gênese do macho". Em Gênesis 1, o
Deus da Bíblia criou seres humanos (v. 26). Fê-los mulheres e homens à sua
imagem e semelhança. Criou a riqueza da diversidade (v. 27), a força da
diferença. Nenhuma hierarquia é imposta.
Em Gênesis 2, Deus cria "o
Adam", feito de terra, um ser humano indiferenciado, nem mulher, nem homem.
Deus, depois, diz que não é bom que o ser humano esteja só. Ele pensa uma
pessoa que esteja à sua frente, totalmente semelhante, com a qual possa
interagir.
Então, cria uma mulher a partir
de um lado do Adam. Anima-a e a faz avançar em direção ao Adam, que se torna,
então, finalmente, um homem. Portanto, é a chegada da mulher que transforma o
Adam em homem.
Mas o ego masculino, imerso em
uma cultura patriarcal, opera, então, uma série de deslizes lexicais para se
conceder um poder sem partilha a partir desse texto.
Assim, o Adam torna-se o macho e
não mais o ser humano indiferenciado. A mulher é formada por uma costela e não
mais de um lado. Torna-se um auxílio na inferioridade imposta pelo patriarcado
e não mais uma pessoa à frente e semelhante. O macho fala e nomeia, a mulher se
cala.
Gênesis 2 termina dizendo que não
é instaurado nenhum desconforto pela diferença, que nenhum muro é criado: na
simplicidade da sua diferença, estão harmoniosamente juntos (v. 25). Deus não
cria nem papel, nem status de um ou de outro sexo.
Gênesis 3 deve ser posto
novamente no seu contexto. É preciso distinguir a parte cultural e humana, de
um lado, e o sentido profundo de uma mensagem, de outro. Por trás da tentativa
de explicação de um mundo duro em que os seres humanos labutam sob a
necessidade da sobrevivência, nas dores e na fadiga, também é referida a
colaboração das mulheres e dos homens para melhorar o cotidiano.
E, acima de tudo, vê-se uma
mulher que reflete, que se sente responsável, que compartilha os seus projetos
e decide dentro do casal. Depois, vê-se o homem e a mulher bastante covardes e
prontos para punir, jogando a culpa no outro. Agora, só a serpente é realmente
punida. E só a mulher recebe a capacidade de discernir e de detestar o mal. A
sua linhagem se torna uma ameaça para este último (v.15).
Cada um paga pelas consequências
da transgressão em função da repartição tradicional das tarefas e do status
daquela sociedade. Na história da interpretação desse texto, o patriarca força,
então, certos traços e omite outros. Inventa uma mulher perniciosa,
influenciável, tentadora, na origem da sua queda e do pecado original.
Sobre Gênesis 4, é preciso
lembrar, acima de tudo, o surgimento de uma humanidade religiosa, em que os
seres humanos começam a fazer ofertas a Deus. Descobrimos, assim, um mundo de
homens, reflexo da realidade da época.
Os machos, dominantes e
invejosos, se dedicam às primeiras lutas fratricidas, obra de Satanás, embora
rendendo homenagem a Deus em função daquilo que são, obra de Deus. As mulheres
estão pouco presentes. A cultura atribui-lhes ao lar, onde estão perto das crianças
e da vida.
Em Gênesis 5, o texto inspirado
nos lembra que a nossa humanidade de mulher e de homem é "à semelhança de
Deus" (v. 2). Essa frase, então, é subvertida para permitir que o homem se
aposse da capacidade de dar a vida. Assim, por todo esse capítulo, diz-se que
os homens "geram" filhos e filhas. Mas gerar e educar é uma obra a
quatro mãos dos dois progenitores.
Em Gênesis 6, os homens se dizem
"filhos de Deus", enquanto as mulheres tornaram-se objeto de desejo,
são declaradas "filhas dos homens". Deus não aprova a maldade do ser
humano (v. 5). Faz vir o dilúvio e lembra que a mulher e o homem são, juntos,
indispensáveis para a sobrevivência da espécie (v. 19).
Assim, o peso cultural, aquilo
que o evangelista Marcos chama de "a tradição dos homens", oculta, às
vezes, o mandamento de Deus: "As doutrinas que eles [fariseus e escribas]
ensinam não passam de preceitos humanos" (Mc 7, 7). Eles acreditam que são
fiéis aos ensinamentos de Deus, mas O limitam, instrumentalizando e mutilando
as suas palavras.
Fonte: Ihu
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