terça-feira, 5 de agosto de 2014

"Mulheres-caranguejo" da prostituição levam vida subumana no mangue de Santo Amaro

Elas fazem sexo no manguezal, sob efeito do crack. Com um histórico de desestrutura familiar e pobreza, estão na base da pirâmide da prostituição.

Preservativos masculinos tomam o chão no percurso apressado feito sob sol a pino. Desvendar o mangue da Avenida Prefeito Artur Lima Cavalcanti, em Santo Amaro, não é tarefa para desavisados. Um dos símbolos da paisagem recifense é também esgoto sexual, como diria Oswald de Andrade em seu poema Santeiro do Mangue. É abrigo de uma “quase espécie”, a “mulher-caranguejo”. Seres dormentes pelos efeitos do crack e por um histórico de desestrutura familiar e pobreza. Ocupantes da base da pirâmide da prostituição, não possuem dentes, carecem de banho. Têm ferimentos ou marcas deles pelo corpo. O dinheiro obtido no sexo barato feito na lama é gasto com drogas.

É manhã de um dia de semana. O movimento de clientes ainda é fraco se comparado com o da tarde e da noite. Meninas e mulheres misturam-se aos caranguejos habitantes da mesma lama salobra. Ao longo das trilhas construídas pelos passos constantes na beira do mangue, prostitutas estão “malocadas” sob guarda-chuvas. Também improvisam barracos de lona. Escondem assim o uso da droga.


Privacidade não existe na hora do sexo. “A gente faz em pé mesmo. Mas tem sofá lá dentro, bicicleta de ginástica. Tem até colchão box. Tem árvore daquelas dobradas. Mas não gosto das árvores. Cheguei a ver sangue nelas”, relata Juliana*, 23 anos. Os braços de Juliana têm cicatrizes de ferimentos provocados por ela própria. Conta que cortou-se em crises depressivas provocadas pelo uso do crack. “Cada ‘tiro’ que dava, me cortava”, lembra, referindo-se à baforada no cachimbo.

Quando o efeito da droga passa, as mulheres buscam por comida e bebida. Mas vários dias podem se passar sem que elas se deem conta da necessidade. “Tem cliente que passa e dá comida. As colegas também oferecem pra gente”, conta Fernanda*, 19, com corpo de menina de 12 anos e rugas em torno dos olhos comuns a mulheres maduras. Quanto mais suja e deteriorada pelas drogas a mulher está, mais ela é procurada pelos clientes, contam. E eles pertencem a variadas classes sociais e profissões. Também há os casados.

À noite, o número de clientes aumenta, e com eles a degradação das meninas. O banho é artigo supérfluo após o sexo. Quando desejam fazer a higiene, procuram a torneira próxima à Ponte do Limoeiro, onde estão os pescadores.

Apesar de as camisinhas se espalharem pelo mangue, a maioria dos homens pede para fazer sexo sem proteção. As mulheres afirmam receber propostas de mais dinheiro caso aceitem a relação sem preservativo. O último levantamento feito no lugar pela Secretaria Municipal de Saúde constatou que, de 19 jovens testadas, duas eram portadoras do HIV, o vírus da Aids, e cinco tinham sífilis.

Maria*, 25, passou um ano morando no mangue, sendo oito meses grávida da terceira filha. Assim como Fernanda, dormia onde encontrava abrigo, inclusive nos barcos ancorados na cabeceira da ponte. “Ninguém quer saber de muriçoca depois de quatro dias acordada com droga na cabeça. Só dormia depois de fumar maconha e comer”, lembra.

Maria está afastada do mangue e das drogas, recebendo atendimento no programa Atitude, do governo do estado. Um trabalho lento que envolve o convencimento das “mulheres-caranguejo” a deixarem a situação de risco social com base no decreto 7053, do governo federal.

O documento dispõe sobre a Política Nacional para a População em Situação de Rua. Ela decidiu deixar a lama depois de o corpo dar sinais de enfraquecimento. “Passava a madrugada feito zumbi, circulando no meio do mato. Outras mulheres também fazem isso. A gente vira escrava da droga”, conta.

O efeito do crack encoraja na negociação variada com o cliente, na dormida desprovida de conforto e na caminhada pela escuridão do mangue. Tamanha coragem só cai por terra quando as meninas se deparam com despachos deixados por seguidores de religiões de matrizes africanas no meio do mangue. “Tenho medo de cruzar com um despacho desse”, confessa Juliana.

As meninas e mulheres prostitutas do mangue são, em sua maioria, moradoras de Santo Amaro. Muito pobres, não possuem dinheiro para custear passagens para bairros mais abastados, como Boa Viagem, onde a prostituição acontece nas avenidas Conselheiro Aguiar e Domingos Ferreira. Além disso, são dependentes do crack, droga ofertada com facilidade no lugar. “A prostituição é igual em todo canto, mas em Boa Viagem a menina compra roupa, sandália. Aqui a gente vende o corpo pelo crack”, compara Juliana.

Ana Glória Melcop, da ONG Centro de Prevenção das Dependências e à frente do Centro da Juventude e do Programa Atitude, ambos do governo do estado, destaca a necessidade de uma abordagem mais eficaz junto a essas mulheres. Ana Glória planeja levar para as prostitutas à Profilaxia Pós Exposição (PPE), fornecida pelo estado, na intenção de reduzir as chances de contaminação pelo HIV após uma relação sexual de risco.

“É preciso uma retaguarda da saúde, da educação”, diz Ana Glória. “A escola, por exemplo, tem preconceito com elas. As mulheres necessitam de uma abordagem que as faça perceber seus direitos e deveres”, afirma. “Sou contra a retirada forçada dessas pessoas de lugares assim, por pior que sejam. Também sou contra o estilo de vida delas, mas não concordo com a limpeza da cidade a todo custo”, opinou.

Em novembro de 2012, membros da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, a mesma que recebeu denúncias de 20 pontos críticos de prostituição na capital pernambucana, estiveram no mangue da Artur Lima Cavalcanti para conhecer a realidade das meninas. A presidente da CPI, Erika Kokay, chegou a rezar com as mulheres às margens da avenida. Mas de lá para cá, nada mudou.

Um projeto da Comissão Pernambucana pela Paz, formada por moradores de Santo Amaro, prevê uma transformação. A ideia é capacitar as mulheres para trabalhar como guias dentro do mangue. O lugar passaria a receber visitas de estudantes.

O mangue da Artur Lima Cavalcanti cheira a violência, na maioria das vezes praticada por clientes ou falsos clientes. Fernanda perdeu os dentes da frente depois de ser atraída por um homem que a arrastou por um dos braços pela janela do carro. Maria passou a virada do ano amarrada a uma árvore em uma mata do Recife. Estava grávida. “Fui salva por um caçador que passava na hora.”

Entre as mulheres, a violência é outra constante. A mesma que foi amarrada ateou fogo em uma colega que dormia. A vítima teria lhe roubado R$ 10, um cachimbo e uma pedra. “Nem sei se morreu, mas se tivesse morrido eu ficava sabendo.”

Em junho, uma jovem escapou de morrer após ser esfaqueada por um desconhecido. Outra mulher apareceu morta na lama e um homem foi vítima de tentativa de homicídio. Há boatos de que um homem estaria tentando se vingar das mulheres porque teria contraído o HIV.

O delegado Alfredo Jorge investiga os crimes, mas não confirma o suposto vingador. “A tentativa de homicídio da mulher pode ter sido passional. Já a vítima que apareceu morta pode ter sofrido morte súbita. Quanto ao homem, não seria frequentador do local”, afirma Alfredo Jorge. O tráfico é intenso. “À noite, carros de marca boa, de gente de classe alta, param para contratar meninas ou comprar drogas.”

Fonte:www.diariodepernambuco.com.br

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