Uma prostituta é contratada por
um homem. Depois do programa, ela cobra o valor acordado pela prática sexual –
R$ 15. Ele recusa-se a pagar. Ela arranca-lhe um cordão com pingente folheado a
ouro. É então ameaçada. A garota de programa acha uma faca e pergunta ao homem:
“Você não vai me pagar?”. Policiais militares presenciam o fato e a prendem em
flagrante. Por qual crime a garota de programa deve ser processada: por roubo
ou por exercício arbitrário das próprias razões?
O caso chegou ao Superior
Tribunal de Justiça e foi julgado na semana passada pela Sexta Turma. J.D de S.
foi acusada de roubo. O juiz de primeira instância, no Tocantins,
desclassificou a conduta e a condenou por fazer justiça com as próprias mãos.
O Ministério Público recorreu da
decisão e o Tribunal de Justiça de Tocantins reformou a decisão: “Ressalto que,
embora a prostituição em si não seja considerada ilícito, conforme bem
asseverado nas razões recursais, ‘não quer dizer, contudo, que seja ato ou atividade
estimulada, fomentada, legalmente amparada ou sequer aceita pelo Estado’”. E
continua a decisão do TJ: “Dessa forma, afastada a possibilidade da
desclassificação para o crime de exercício arbitrário das próprias razões,
resta caracterizada a subtração do cordão da vitima”.
A Defensoria Pública impetrou
habeas corpus para tentar, no STJ, alterar a condenação. Relator do processo, o
ministro Rogério Schietti julgou que o Estado não pode “negar proteção jurídica
àquelas (e àqueles) que oferecem serviços de cunho sexual em troca de
remuneração”. Com isso, votou pela desclassificação do crime de roubo, pela
condenação pelo exercício arbitrário das próprias razões e constatou a
prescrição da conduta. J.D. de S. ganhou a liberdade (leia a íntegra do voto).
Nesta entrevista, o ministro
Schietti detalha o caso e as razões que o levaram a essa conclusão.
1 – Em seu voto, o sr. afirma que
as profissionais do sexo têm direito à proteção jurídica. Poderiam, portanto,
cobrar seus direitos em juízo. A jurisprudência não garantia isso a elas?
Quando afirmei, em meu voto, que
profissionais do sexo são merecedores de proteção jurídica, pretendi dizer que
o Direito não pode dar as costas a quem oferece sexo em troca de remuneração,
desde que – e a ressalva é importante – essa troca de interesses não envolva
incapazes, menores de 18 anos e pessoas de algum modo vulneráveis e desde que o
ato sexual seja decorrente de livre disposição da vontade dos participantes e
não implique violência (não consentida) ou grave ameaça.
Fiz, então, menção ao fato de que
o Código Brasileiro de Ocupações, do Ministério do Trabalho já catalogou essa
atividade como categoria profissional.
No caso examinado, cuidava-se de
pessoa que, após um programa contratado, não se viu paga pelo “contratante”,
como combinado. Valeu-se então de suas próprias mãos para “fazer justiça”. Esse
comportamento constitui um crime de menor potencial ofensivo, e assim foi
reconhecido inicialmente pelo juiz de primeiro grau, mas a ré acabou sendo
condenada pelo Tribunal por crime de roubo, ao argumento de que, “embora em seu
íntimo a apelada desejasse haver a satisfação do crédito em razão dos serviços
sexuais prestados à vítima, tem-se que tal pretensão, embora considerada
legitima pela apelada, não poderia ser deduzida em juízo.”
Embora eu desconheça, na
jurisprudência, ação de cobrança nesse sentido – ao menos no Superior Tribunal
de Justiça nunca vi recurso algum em que o assunto foi debatido – não me
pareceu correto o argumento utilizado para negar à acusada o mesmo tratamento
penal menos grave que seria dado a qualquer outra pessoa não paga por seus
serviços. Veja, o STJ não aprovou o que a moça fez, mas reconheceu que o crime
praticado não foi roubo e sim o de exercício arbitrário das próprias razões.
2 – O sr. considera que a falta
de reconhecimento desses direitos, dessa proteção da Justiça é fruto de certo
preconceito?
Não sei se, no caso, chegou a
haver preconceito dos julgadores em razão da atividade desempenhada pela
acusada. Mas não tenho dúvida de que muitas decisões judiciais são
influenciadas, ainda que inconscientemente, por questões morais. O juiz traz,
em sua formação humana, toda uma carga histórica e cultural favorável à
classificação de pessoas pela ocupação que exercem, pelo papel social desempenhado
na comunidade, e não pelo que são, essencialmente.
3 – Na primeira e segunda instâncias, o caso
mereceu tratamento distinto. A impetrante foi condenada por roubo, e o TJ
afirmou que não poderia haver cobrança judicial porque o Estado não deveria estimular
a atividade. Como o sr. resolveu esta questão? Com essa decisão, o sr.
considera que há estímulo à atividade, como consignou o TJ, ou há apenas
reconhecimento de uma realidade?
Deixei bem claro em meu voto que
não considerar ofensiva ao Direito a conduta de quem oferece serviços de
natureza sexual em troca de remuneração não implica apologia à prostituição,
mas apenas o reconhecimento da secularização dos costumes sexuais e a
separação, inerente à própria concepção do Direito Penal pós-iluminista, entre
Moral e Direito. Censuras individuais a esse tipo de atividade podem existir, a
depender da formação religiosa ou cultural de cada pessoa, mas, insisto, o
Direito Penal não pune comportamentos apenas por serem supostamente “imorais”,
ou contrário aos “bons costumes”. Exemplo disso é que, desde 2005, o adultério
não mais é considerado crime pela lei penal brasileira, embora seja conduta
moralmente censurável.
4 – Fazendo o caminho inverso,
aquele que contratar uma garota de programa e não pagar pode ser condenado na
justiça em caso de não pagamento?
Como disse, desconheço ações
nesse sentido, embora saiba que, na Justiça Laboral, são comuns ações
trabalhistas de profissionais do sexo contra estabelecimentos comerciais que as
empregam. E os tribunais têm reconhecido haver vínculo empregatício entre, por
exemplo, dançarinas de casas noturnas, que oferecem serviços de acompanhante
sexual aos clientes que frequentam o lugar, e o proprietário desses
estabelecimentos comerciais.
5 – O sr. mencionou em seu voto
que a legislação atual visa proteger a liberdade de autodeterminação e não os
costumes. A decisão do sr vai nesse sentido? De ver a prostituição como uma
atividade profissional – que é reconhecida – que deve ser protegida?
O tema é, de fato, polêmico. Sei
que alguns países ainda preveem a prostituição como crime. No Brasil, o que se
pune são os crimes periféricos, praticados por pessoas que se beneficiam, de
algum modo, da prostituição alheia. Mas oferecer seu próprio corpo, para fins
sexuais, em troca de remuneração, não é crime, se, repito, o negócio envolver
pessoas maiores, capazes e livremente dispostas a tal acerto. O art. 594 do
Código Civil dispõe que “Toda a espécie de serviço ou trabalho lícito, material
ou imaterial, pode ser contratada mediante retribuição”. Logo, é uma situação
que há de merecer atenção pelo Direito Civil e pela saúde pública.
Fonte: http://jota.uol.com.br/
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