Este dia, Corpus Christi, a se
acreditar na tradição, diz que Deus, cansado de ser espírito, descobriu que o
bom mesmo era ter corpo, e até se encarnou, segundo o testemunho do apóstolo.
Preferiu nascer como corpo, a despeito de todos os riscos, inclusive o de
morrer. Porque as alegrias compensavam. E nasceu, declarando que o corpo está
eternamente destinado a uma dignidade divina.
Tenho medo de morrer e ir para o
céu. Eu me sentiria um estranho por lá. A Cecília Meireles pensava o mesmo. E
se perguntava se, “Depois que se navega, a algum lugar enfim se chega... O que
será, talvez, até mais triste. Nem barca, nem gaivota: somente sobre-humanas
companhias...“. Também eu preciso de barcas e gaivotas, pois amo o mar e o ar.
Sou um ser deste mundo e sinto que no meu corpo moram rios, árvores, montanhas
e nuvens. Nenhum mundo além poderá consolar-me da sua perda. É certo que um
espírito, por bem-aventurado que seja, não pode sentir o cheiro bom do capim
gordura (que recém começa a florescer roxo nos campos). Para isso ele teria de
ter um nariz. E nem pode sentir o vento frio das tardes de inverno, a lhe
golpear o rosto. Ao que me parece, espíritos não têm pele. E (pobres) não podem
jamais sentir o prazer de mergulhar no mar. Esta alegria animal está vedada aos
espíritos, seres etéreos que, ao que consta, não sofrem os efeitos da gravidade
(ou da gravidez). Sua leveza os protege de quedas de muros, mas lhes tira a
alegria do mergulho. Saltam, e ficam flutuando no espaço.
Amo este mundo. Por isso não
quero ir para o céu. Nietzsche sentia o mesmo. E até sonhou com o “retorno
eterno“ - voltarei sempre a este mesmo lugar, o único que conheço, das coisas
materiais do cotidiano, que vão desde o café com leite e pão com manteiga, pela
manhã, até a música de Bach e os céus estrelados, à noite. Isto, para não se
falar nos prazeres do amor, que não podem subsistir sem o corpo. Pois precisam
do encanto dos olhos que dizem: “Como é bom que você existe...“. E do olfato,
que percebe desde o “brabo cheiro bom de suor e graxa“, a que Adélia Prado se
refere, até o perfume de pêssego maduro que vem da flor do imperador, tão
discreta, e que Guimarães Rosa declarou ser a mais querida. E os ouvidos? As
serenatas (antigas), o “eu te amo“ (eterno), os poemas - são todos seres
materiais, que não existem sem a física da fala. Não posso imaginar um som
espiritual, embora se diga que os querubins tocam harpas e cantam. Sons
precisam de bumbos, trombones, violinos, dedos, sopro, corpo: são coisas
físicas, corpóreas. E fico preocupado com o destino de Bach e Beethoven,
espíritos nos céus, para sempre separados dos bons instrumentos da terra onde
tocaram a sua música.
Por isso me alegrei com esta
festa de nome latino, Corpus Christi, em que a cristandade comemora, teimosa e
inconsciente, o corpo de Cristo. Fosse a celebração da sua alma, confesso que
fugiria. Almas do outro mundo, boas ou más, são assombrações que causam medo.
Sei que há um dia que as celebra, o dia de “todas as almas“, também chamado de
dia de todos os santos, logo antes de finados. O que combina muito bem. A alma
começa quando o corpo termina. Parece que acreditavam que as almas vagavam,
penadas, por este mundo (dia das bruxas!), sofrendo e assombrando os vivos -
que, neste dia, faziam orações por sua eterna salvação nos céus, deixando livre
a terra para as coisas materiais e boas que nela moram. Mas este dia, Corpus
Christi, a se acreditar na tradição, diz que Deus, cansado de ser espírito,
descobriu que o bom mesmo era ter corpo, e até se encarnou, segundo o
testemunho do apóstolo. Preferiu nascer como corpo, a despeito de todos os
riscos, inclusive o de morrer. Porque as alegrias compensavam. E nasceu, declarando
que o corpo está eternamente destinado a uma dignidade divina. Curioso que os
homens prefiram os céus, quando Deus prefere a terra. Lembro-me do espanto do
chefe índio que escrevia ao presidente dos Estados Unidos e dizia não poder
compreender as razões que levavam os brancos a desejar, depois de mortos, ir
morar num lugar muito longe da terra. Nós, ele dizia, precisamos do perfume dos
pinheiros, do barulho da água, dos riachos, do cintilar da luz sobre a
superfície dos lagos. Corpus Christi: divino é o pão e toda a terra onde
cresceu, com a água que o fez germinar, e o vento que o acariciou, e o fogo que
o cozeu. Divino é o vinho, alegria pura que dá asas ao corpo e o faz flutuar.
Coisas do corpo: dentro dele cabe o universo. Não é à-toa que a tradição fala
não em imortalidade da alma mas em ressurreição do corpo. Afirmação de que a
vida é bela e o divino se encontra nas coisas materiais mais simples. Como
dizia Blake: “Ver a eternidade num grão de areia“. Ou Fernando Pessoa: “Toda
matéria é espírito“. E assim, como e bebo as coisas deste mundo, corpo de
Deus...
(Transparências da eternidade,
Verus, 2002)
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