A Copa do Mundo de 2014 é um evento do futebol masculino,
mas foi visível a presença constante em número e empolgação das mulheres. Nos
estádios, nas ruas, na organização ou na cobertura jornalística foi fácil
vê-las. Porém, senti falta de ver Marta, eleita cinco vezes a melhor jogadora
do mundo, nessa grande festa do futebol mundial sediada no Brasil.
Texto de Bia Cardoso.
Ao twittar sobre meu sentimento de pesar com a falta da
imagem de Marta, fiquei ainda mais surpresa ao ver que várias pessoas acharam
que eu estava falando da ex-prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, e não de uma
das melhores jogadoras de futebol do mundo. Isso mostra o quanto o futebol
feminino é invisível no país do futebol.
Durante 35 anos, havia uma lei no Brasil que proibia as
mulheres de praticarem futebol por motivos de: saúde reprodutiva. Essa
proibição foi internalizada fortemente em nossa cultura, como cita Carmen Rial:
No Brasil, a proibição da prática do futebol as mulheres foi
um corolário das ideologias eugenistas que pregavam a importância da proteção
do corpo da mulher, visto como frágil, para que pudesse continuar cumprindo sua
função de procriadora, gerando crianças saudáveis e, por conseguinte,
melhorando a raça branca no Brasil.
Por trás dessa suposta proteção podemos identificar o
mise-en-jeux das fronteiras de um lugar social para mulher, aquele da mãe, que
conforma um tipo particular de corpo: roliço, sem músculos, com formas
arredondadas e mobilidade limitada. Um modelo ideal que corresponderia aos
papéis femininos socialmente prescritos: passivo e submisso.
Esta exclusão do futebol, inicialmente imposta, foi logo
internalizada por muitas mulheres. Quando a antropóloga norte-americana Janet
Lever esteve no Brasil nos anos 1980 pesquisando futebol estranhou a ausência
das mulheres neste esporte e sua total falta de interesse. Tendo ouvido falar
de uma legislação que proibia um esporte que no seu país era praticado
predominantemente por mulheres, indagou a um funcionário da Confederação
Brasileira de Futebol se era verdade que existia tal lei. Sua resposta foi de
que não era preciso lei, as mulheres nunca iriam se interessar por futebol, elas
conheciam o seu lugar.
Marta é uma grande vencedora, mas ainda não venceu essa
invisibilidade. Além dela, poderíamos ter tido Formiga, Cristiane, Meg e tantas
outras que jogam ou jogaram pela seleção feminina de futebol na publicidade,
nas mesas-redondas ou nos programas de debate. Mas não foi o que vimos. Então,
durante essa Copa do Mundo fiquei de olho nos espaços ocupados pelas mulheres.
Cobertura televisiva
Nos canais abertos, tanto a Rede Globo como a Rede
Bandeirantes já tinham mulheres apresentando programas esportivos. Nos canais a
cabo: Sportv, ESPN Brasil, Fox Sports Brasil e Band Sports, saltou aos olhos o
grande número de mulheres repórteres que faziam a cobertura da Copa nas
diferentes cidades brasileiras e também em outros países. Porém, há duas
questões importantes:
1) Dificilmente há
mulheres nos programas de debate ou mesas-redondas, em que se discutem questões
técnicas do futebol e não apenas as notícias;
A ESPN Brasil, por exemplo, teve grande parte de sua
programação voltada para esse tipo de programa e era difícil encontrar uma
mulher nos programas mais populares, mesmo nos que traziam convidados. Fui
avisada por amigos de que haviam sim repórteres e apresentadoras e elas foram
vistas com maior regularidade na reta final do campeonato. Achei bem curioso,
porque nos programas com participação dos telespectadores por meio das rede
sociais era muito comum ver comentários enviados por mulheres sendo exibidos na
tela, o que mostra que elas são uma parte grande da audiência.
Quem se destacou nessa questão foi a Fox Sports Brasil, com
seus dois canais a cabo. Durante a programação especial era fácil ver mulheres
apresentando os programas e discutindo questões táticas. Inclusive, em uma das
edições do programa ‘Boa Noite, Copa’ a trans* Rogéria foi uma das convidadas
do debate, tendo o mesmo espaço de fala que os outros comentaristas que
incluíam ex-jogadores e jornalistas esportivos. Karine Alves era presença
constante, além de Renata Cordeiro. O canal Fox Sports 2 fez uma cobertura com
humoristas durante a transmissão dos principais jogos, mas Marília Ruiz e Ana
Paula Oliveira analisavam as partidas tecnicamente.
O destaque na Rede Globo e no Sportv foram a escalação de
mulheres para serem as principais âncoras de informações sobre a seleção
brasileira, respectivamente as jornalistas Fernanda Gentil e Janaína Xavier.
2) As mulheres seguem
padrões estéticos bem mais que os homens;
Em qualquer canal que fazia a cobertura da Copa, na TV
aberta ou no cabo, era possível ver homens jovens, velhos, magros, gordos,
bonitos, feios, narigudos, carecas, calvos, cabeludos, altos, baixos, com ou
sem óculos, com ou sem olheiras, sabendo ou não falar diferentes idiomas, com
sotaque ou sem, com cabelos compridos ou curtos, com ou sem barba. A imensa
maioria eram brancos, mas não era difícil ver negros e até mesmo alguns com
traços indígenas ou asiáticos. Não vi nenhum cadeirante ou alguém que parecia
ter alguma deficiência.
No caso das mulheres, com raríssimas exceções, seguiu-se o
padrão: jovem, feminina, magra, sem deficiências e branca. Que é o padrão visto
na grande maioria dos programas jornalísticos da TV. Os homens podem ser bem
diversos, inclusive no quesito idade, enquanto as mulheres seguem regras mais
rígidas para aparecerem no vídeo. Entre as negras, além de Karine Alves (Fox
Sports Brasil), vi Cynthia Moraes (repórter no Sportv) e Débora Gares (repórter
na ESPN Brasil).
Assédio e machismo
A maioria dos torcedores estrangeiros que vieram a Copa do
Mundo são homens e já falei um pouco sobre questões envolvendo brasileiras,
brasileiros e gringos no texto: Mulheres e Gringos na Copa do Mundo.
Infelizmente, junto com tantas mulheres torcedoras nos estádios e nas ruas, o
assédio, o abuso sexual e o machismo marcaram forte presença nos relatos. Além
de não termos espaço na publicidade da Copa e na maioria dos programas
especialistas da TV, o trabalho das jornalistas também foi desrespeitado.
Qualquer mulher, estivesse ela pronta para a balada, de
vestidinho curto e decote, ou uniformizada como repórter, de tênis, calça jeans
e camiseta, virava um alvo. É preciso não só desviar de homens embriagados, que
tentam fechar a passagem com o próprio corpo e roubar um beijo à força. Mas
também ignorar provocações e xingamentos.
Ao desviar de um deles, ouvi uma bronca: “O que foi? Está
com medo de mim?” Estava: primeiro, porque tentou me puxar à força. Segundo,
porque gritou comigo, como se eu não tivesse o direito de recusar a abordagem.
Toda mulher tem esse direito. Além do mais, eu estava
trabalhando. E a função exige olhos atentos, escaneando a movimentação de
torcedores, vendedores ambulantes, estrangeiros, varredores de rua e policiais.
E os olhares que, frequentemente, acabavam se cruzando, para alguns
frequentadores, eram sinal de disponibilidade. Mais de uma vez, agarraram meus
braços, puxaram meus cabelos: “Ô repórter!”, “Ô fotógrafa”. Ao serem ignorados,
os homens atiravam: “Sua escrota”.
Protagonismo feminino
Cantoras brasileiras e estrangeiras foram maioria nos shows
de abertura e encerramento da Copa. Das quatro seleções que chegaram as
semi-finais, três tem mulheres no comando de seus países: Brasil, Argentina e
Alemanha. A modelo Gisele Bündchen teve destaque no último jogo ao participar,
junto com o jogador espanhol Puyol, de uma ação de marketing da Louis Vitton
para apresentar a taça da Copa do Mundo. Estes foram alguns momentos em que a
FIFA incluiu oficialmente mulheres no evento.
E claro, os locutores dos jogos, todos homens, faziam sempre
questão de exaltar a beleza das torcedoras como um bônus durante os jogos. Não
deve ser incomum pensar que as jornalistas recebam esse mesmo tipo de elogio
frequente dos colegas de trabalho. Sabemos que as pessoas sempre gostam de
elogios, o problema é quando eles se restringem sempre a apenas um aspecto.
Raros foram os momentos em que vimos os locutores exaltando a paixão das
torcedoras por suas seleções, suas habilidades vocais em cantar músicas para
incentivar o time ou a criatividade de suas fantasias, as próprias câmeras da
FIFA pareciam sempre procurar mulheres magras, brancas e jovens.
Comecei esse texto falando da mulher que considero a maior
protagonista do futebol brasileiro, Marta. Pesquisando na internet soube que
ela foi convidada para ser a estrela de uma campanha do governo desenvolvida
pelo Ministério do Turismo, que visa reforçar o slogan “Vamos fazer a Copa das
Copas”. Segundoas informações no site do Ministério: a campanha será veiculada
em redes de televisão, emissoras de rádios, painéis de aeroportos e anúncios
impressos. O vídeo promocional terá versões de 30 e 60 segundos e será
veiculado em canais de TV aberta e fechada. Não consegui encontrar nada sobre
essa campanha, fora a mensagem de áudio com poucos segundos de Marta no site do
Ministério e algumas fotos.
No início do ano, Marta cobrou a inclusão do futebol
feminino no movimento Bom Senso FC. Em junho, participou da inauguração
doEspaço Futebol para Igualdade no Museu da República (RJ) com a
exposição‘Mulheres em campo: driblando preconceitos’, como madrinha da ONG
britânicaStreetfootballworld. Fico com a sensação que Marta parece uma
estrangeira quando se trata do futebol no Brasil.
Conheço inúmeras mulheres que acompanharam essa Copa do
Mundo com muito interesse, assistindo os programas esportivos, revendo os
melhores momentos na internet, discutindo nas redes sociais. Ganhar mais espaço
e reconhecimento é fundamental, porque estamos aí e não vamos largar a bola.
Em 2015, teremos a 7° Copa do Mundo de Futebol Feminino no
Canadá. Espero uma boa cobertura por parte dos veículos de comunicação
esportivos e cada vez mais pessoas interessadas em apoiar integralmente o
esporte que é a paixão nacional.
Fonte: Blogueiras feministas
Nenhum comentário:
Postar um comentário