“Trancados na noite, milênios afora,
Forçamos agora
As portas do dia.
Faremos um povo de
igual rebeldia.
Faremos um povo de
bantus iguais
Na só Casa Grande do
Pai”
Pode uma missa ser proibida pelo Vaticano e censurada pelo
governo militar de plantão no Brasil? Pode, se estamos falando de uma missa que
foi acontecimento único na história da Igreja católica no Brasil: A Missa dos
Quilombos.
Por Romero Venâncio
Em 1981, quando Milton Nascimento fazia uma turnê pelo Brasil na
divulgação do seu álbum Sentinela, recebeu um convite de Dom Helder Câmara
(Arcebispo de Olinda e Recife) e Dom José Maria Pires (Arcebispo da Paraíba)
para musicar a liturgia de uma “missa memorial” a ser realizada no Recife. Num
intervalo entre uma apresentação e outra, Milton recebeu os textos de Dom Pedro
Casaldáliga (Bispo em São Felix do Araguaia) e Pedro Tierra (nome artístico de
Hamilton Pereira, Poeta, militante e educador popular). Segundo a jornalista
Maria Dolores, autora do livro “Travessia, a vida de Milton Nascimento”, nos
primeiros dias, ele ficou olhando os papeis e ganhando inspiração para em uma
semana musicar todos os textos enviados.
A primeira apresentação da Missa dos Quilombos aconteceu no
final de 1981, em frente a Igreja do Carmo, no Recife, mesmo local onde foi
exposta a cabeça de Zumbi, em 1695, depois de morto em combate no cerco ao
Quilombo dos Palmares, promovido pelo bandeirante sanguinário Domingos Jorge
Velho. A ideia, até pela data, era celebrar a memória na pessoa de Zumbi da
condição dos negros na história desse país. Naqueles anos, a Igreja Católica no
Brasil, respirava os ares da Teologia da Libertação e tinha nas figuras de
Helder Câmara e José Maria Pires expoentes destacados. O bispo da arquidiocese
da Paraíba é negro e homem que assumiu durante o seu episcopado a sua condição
de negro. O que não é pouco numa Igreja que pouco se preocupou com os negros.
Em momentos da história foi ela mesma escravista. Três meses depois da primeira
apresentação, a Missa dos Quilombos foi “encenada” ou “celebrada” no convento
de Caraça, a 120 quilômetros de Belo Horizonte e depois gravada em disco (este
que temos agora em CD).
Não demoraria muito para que a apresentação da missa em
praça pública encontrasse resistências. A censura federal vetou quatro faixas
do álbum, enquanto o Vaticano tratou de proibir a missa como um todo. Ela
estaria fora dos padrões de liturgia solene praticada pelo catolicismo. Os
bispos foram advertidos canonicamente e a policia federal passou a notificar o
restante dos organizadores da missa. Em nenhum momento da história do Brasil
uma missa foi tão badalada pela imprensa e discutida em lugares públicos em
acaloradas conversas. O conservadorismo católico brasileiro não suportaria uma
celebração eucarística feita exclusivamente para celebrar a memória de um negro
rebelde e de maneira bem aberta ao tratar de liturgia. Era toda uma África num
palco/altar em pleno coração do Recife e num lugar onde a escravidão negra era
comércio legal e abençoada pela Igreja Católica.
A minha leitura é que estamos diante de uma obra-prima da
arte musical contemporânea no Brasil. Uma obra que une canto e religiosidade
(essa união é uma espécie de ethos do ser brasileiro). Uma “Ópera negra” a céu
aberto. Além dos 11 cantos compostos especialmente para “Missa dos Quilombos”,
a obra em CD inclui ainda outros quatro: a abertura Trancados na noite (texto
de Pedro Tierra), Ony Saruê (folclore afro-brasileiro, adaptado do Ioruba para
o fonética brasileira por negreiros), Peixinhos do mar (folclore brasileiro
adaptado por Tavinho Moura do antigo Clube da Esquina) e Raça (música de Milton
e Fernando Brant, gravada no disco Milton,de 1976). De todas as tocantes e
belas músicas do álbum, uma merece destaque pela sua beleza singular e pelo
encontro mais que feliz na música popular brasileira: a canção Invocação a
Mariama, na qual Milton vocaliza sobre uma declamação de Dom Helder Câmara, que
começa louvando a Nossa Senhora e termina com um forte discurso político e
memorial da situação do povo negro.
Clamava o querido Bispo de Olinda e Recife: “Não basta pedir
perdão pelos erros de ontem. É preciso acertar o passo hoje, sem ligar ao que
disserem. Claro que dirão, Mariama, que é política, que é subversão, que é
comunismo. Mas é o Evangelho de Cristo, Mariama”. Temos em CD esta obra
magistral do cancioneiro brasileiro, na coleção Milton Nascimento da Abril
Cultural. Para as gerações atuais e que não viveram aqueles momentos, temo s
uma aula de música e religiosidade. Para os que viveram aqueles momentos, temos
uma saudade que inunda os olhos onde aqueles venturosos tempos podem não mais
voltar.
Fonte: www.consciencia.net
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