A brutalidade não é constitutiva da natureza masculina, mas
um dispositivo de uma sociedade que reduz as mulheres a objetos de prazer e
consumo dos homens.
Por Debora Diniz - Antropóloga e Proferrosa da UnB
Eliza Samudio está morta. Ela foi sequestrada, torturada e
assassinada. Seu corpo foi esquartejado para servir de alimento para uma
matilha de cães famintos. A polícia ainda procura vestígios de sangue no sítio
em que ela foi morta ou pistas do que restou do seu corpo para fechar esse
enredo macabro. As investigações policiais indicam que os algozes de Eliza
agiram a pedido de seu ex-namorado, o goleiro do Flamengo, Bruno. Ele nega ter
encomendado o crime, mas a confissão veio de um adolescente que teria
participado do sequestro de Eliza. Desde então, de herói e "patrimônio do
Flamengo", nas palavras de seu ex-advogado, Bruno tornou-se um ser abjeto.
Ele não é mais aclamado por uma multidão de torcedores gritando em uníssono o
seu nome após uma partida de futebol. O urro agora é de "assassino".
O que motiva um homem a matar sua ex-namorada? O crime passional
não é um ato de amor, mas de ódio. Em algum momento do encontro afetivo entre
duas pessoas, o desejo de posse se converte em um impulso de aniquilamento: só
a morte é capaz de silenciar o incômodo pela existência do outro. Não há como
sair à procura de razoabilidade para esse desejo de morte entre ex-casais, pois
seu sentido não está apenas nos indivíduos e em suas histórias passionais, mas
em uma matriz cultural que tolera a desigualdade entre homens e mulheres.
Tentar explicar o crime passional por particularidades dos conflitos é
simplesmente dar sentido a algo que se recusa à razão. Não foi o aborto não
realizado por Eliza, não foi o anúncio de que o filho de Eliza era de Bruno,
nem foi o vídeo distribuído no YouTube o que provocou a ira de Bruno. O ódio é
latente como um atributo dos homens violentos em seus encontros afetivos e
sexuais.
Como em outras histórias de crimes passionais, o final
trágico de Eliza estava anunciado como uma profecia autorrealizadora. Em um
vídeo disponível na internet, Eliza descreve os comportamentos violentos de
Bruno, anuncia seus temores, repete a frase que centenas de mulheres em
relacionamentos violentos já pronunciaram: "Eu não sei do que ele é
capaz". Elas temem seus companheiros, mas não conseguem escapar desse
enredo perverso de sedução. A pergunta óbvia é: por que elas se mantêm nos
relacionamentos se temem a violência? Por que, jovem e bonita, Eliza não foi
capaz de escapar de suas investidas amorosas? Por que centenas de mulheres
anônimas vítimas de violência, antes da Lei Maria da Penha, procuravam as
delegacias para retirar a queixa contra seus companheiros? Que compaixão
feminina é essa que toleraria viver sob a ameaça de agressão e violência?
Haveria mulheres que teriam prazer nesse jogo violento?
Não se trata de compaixão nem de masoquismo das mulheres. A
resposta é muito mais complexa do que qualquer estudo de sociologia de gênero
ou de psicologia das práticas afetivas poderia demonstrar. Bruno e outros
homens violentos são indivíduos comuns, trabalhadores, esportistas, pais de
família, bons filhos e cidadãos cumpridores de seus deveres. Esporadicamente,
eles agridem suas mulheres. Como Eliza, outras mulheres vítimas de violência
lidam com essa complexidade de seus companheiros: homens que ora são amantes,
cuidadores e provedores, ora são violentos e aterrorizantes. O difícil para
todas elas é discernir que a violência não é parte necessária da complexidade
humana, e muito menos dos pactos afetivos e sexuais. É possível haver
relacionamentos amorosos sem passionalidade e violência. É possível viver com
homens amantes, cuidadores e provedores, porém pacíficos. A violência não é
constitutiva da natureza masculina, mas sim um dispositivo cultural de uma
sociedade patriarcal que reduz os corpos das mulheres a objetos de prazer e
consumo dos homens.
A violência conjugal é muito mais comum do que se imagina.
Não foi por acaso que, quando interpelado sobre um caso de violência de outro
jogador de seu clube de futebol, Bruno rebateu: "Qual de vocês que é
casado não discutiu, que não saiu na mão com a mulher, né cara? Não tem jeito.
Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher". Há pelo menos dois
equívocos nessa compreensão estreita sobre a ordem social. O primeiro é que nem
todos os homens agridem suas companheiras. Embora a violência de gênero seja um
fenômeno universal, não é uma prática de todos os homens. O segundo, e mais
importante, é que a vida privada não é um espaço sacralizado e distante das
regras de civilidade e justiça. O Estado tem o direito e o dever de atuar para
garantir a igualdade entre homens e mulheres, seja na casa ou na rua. A Lei
Maria da Penha é a resposta mais sistemática e eficiente que o Estado
brasileiro já deu para romper com essa complexidade da violência de gênero.
Infelizmente, Eliza Samudio está morta. Morreu torturada e
certamente consciente de quem eram seus algozes. O sofrimento de Eliza nos
provoca espanto. A surpresa pelo absurdo dessa dor tem que ser capaz de nos
mover para a mudança de padrões sociais injustos. O modelo patriarcal é uma das
explicações para o fenômeno da violência contra a mulher, pois a reduz a objeto
de posse e prazer dos homens. Bruno não é louco, apenas corporifica essa ordem
social perversa.
Outra hipótese de compreensão do fenômeno é a persistência
da impunidade à violência de gênero. A impunidade facilita o surgimento das
redes de proteção aos agressores e enfraquece nossa sensibilidade à dor das
vítimas. A aplicação do castigo aos agressores não é suficiente para modificar
os padrões culturais de opressão, mas indica que modelo de sociedade queremos
para garantir a vida das mulheres.
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