Para o grupo da Marcha Mundial
das Mulheres, regulamentar a prostituição é curvar-se ao machismo e ignorar a
verdadeira realidade das prostitutas.
No Brasil, mais uma vez, a
proximidade dos megaeventos retoma os debates sobre a regulamentação da
prostituição. Em 2014, com a Copa do Mundo, e agora, em 2016, com os Jogos
Olímpicos. O que estava, e continua, em jogo nas propostas apresentadas é a
legalização dos cafetões, cafetinas e empresários e empresárias do sexo.
O projeto apresentando pelo
deputado federal Jean Wyllys (PSOL) de regulamentação dos profissionais do
sexo, na verdade, quer legalizar os cafetões – argumentando que com isso
melhorará as condições de “trabalho”-, embora o projeto não preveja nenhuma
regulamentação dessas casas e sua adequação.
Seu conteúdo mostra que ele não
visa melhorar a vida das mulheres em situação de prostituição, não prevê nenhum
tipo de política pública específica, que contribua para que essas mulheres não
tenham que ser constantemente vítimas de insultos, violência e marginalização.
Ao contrário de promover os
direitos e a autonomia econômica das mulheres, o projeto visa suprir uma
necessidade da indústria sexual, que juntamente com as grandes corporações,
buscam utilizar o corpo das mulheres para faturar altos montantes em grandes eventos
como as Olimpíadas.
O debate público sobre a
regulamentação da prostituição como profissão tem pontos de partida que
falseiam e distorcem a realidade da prostituição. Um primeiro aspecto é
simplificar a questão, ao tratar como um comportamento individual algo que é
parte de uma instituição e faz parte de um sistema. Esse argumento está baseado
em uma visão liberal, centrada no indivíduo e suas escolhas no mercado, sem
levar em consideração as relações políticas e de poder envolvidas.
Nessa posição, é nítido que não
se parte de uma visão crítica do patriarcado, como sistema de dominação
masculina, nem das conexões entre o modelo de sexualidade atual e a
prostituição. Ao se referir à prostituição como um trabalho, essa perspectiva
liberal não discute qual é a diferença entre vender a força de trabalho e a
apropriação do corpo. Ou seja, não é o que a prostituta pode fazer, mas é seu
corpo.
Como diz Marie Victorie Louis
(2004), essa visão “postula que as pessoas, e não só as coisas, podem ser
objetos de contratos e contradiz abertamente o princípio universal segundo o
qual o corpo humano é inalienável.” As propostas de regulamentação são
apresentadas a partir do argumento de que a prostituição é um trabalho como
outro qualquer; que cada pessoa vende algo e, neste caso, as mulheres vendem o
corpo. Por isso, devem ser consideradas trabalhadoras do sexo.
Seus defensores utilizam a arroba
(trabalhador@s) e, assim, parece que a prostituição é um trabalho de homens e
mulheres, já de início ocultando seu caráter patriarcal e as relações desiguais
que a prostituição escancara.
Ao separar a prostituição da
exploração sexual, ou seja, o serviço sexual livre do serviço sexual forçado, a
intenção é legitimar a prostituição como um serviço que pode ser comercializado.
A diferenciação entre prostituição forçada e voluntária parte do reconhecimento
de que há situações em que mulheres são obrigadas a se prostituir. Em geral,
essa visão está vinculada a posição de criminalização da prostituição infantil,
nesse caso considerada exploração sexual, que não é voluntária.
Um primeiro elemento que chama a
atenção nessa posição é que não se considera o fato de que a maioria das
mulheres chegam à prostituição ainda crianças e adolescentes, como é o caso do
Brasil. Então, torna-se apenas um período de espera para o dia em que fizer 18
anos. Se ela continua na prostituição, passa a ser considerada uma decisão por
vontade própria.
Ou seja, desconsideram a
experiência de uma jovem de 18 anos, que viveu uma situação de prostituição
desde os 12 anos, e o significado para sua auto-estima, auto–confiança de que
pode fazer outra coisa, de que será aceita. Como se a situação de exploração sexual
não ficasse marcada no corpo, na subjetividade, na forma de ver e pensar o
mundo e a si mesma. Isso tudo se soma ao estigma que teria que enfrentar e aos
limites que as mulheres encontram para se inserir no mercado de trabalho. Por
fim, temos que lembrar que a maioria das mulheres nessa situação está sob o
controle de cafetões e cafetinas, o que é muito difícil de romper.
Os argumentos em favor da
prostituição como outro emprego qualquer se utilizam da realidade extremamente
desigual do mercado de trabalho no Brasil. Afirmam que a prostituição
proporciona uma remuneração maior que muitos outros empregos majoritariamente
femininos, como o emprego doméstico ou o telemarketing. Escolher entre o “menos
pior” para garantir as condições de vida não é uma referência para quem atua em
nome da igualdade e da justiça social. Além disso, esse discurso encobre as
desigualdades de classe e raça que existem entre as próprias mulheres: parece
que estamos em um mundo em que todas as mulheres têm todas as condições para
“escolher” entre ser médica, professora universitária, empregada doméstica,
prostituta, advogada…
Dá pra imaginar que as diferentes
trajetórias (fuga de situações de abuso, pobreza, violência, autoritarismo) e
rotinas (sexo com vários clientes, uso de drogas pra conseguir aguentar) das
mulheres prostitutas sejam uma “livre escolha”?
Uma coisa é a vontade de sair na
rua com a roupa que for, sem ser importunada, ou transar com quem desejar.
Outra é usar o corpo e o sexo para sobreviver. Sobreviver, porque a realidade
das prostitutas é bem diferente do glamour retratado pela mídia, nas novelas e
revistas, e principalmente na visibilidade que ganham os depoimentos das
mulheres que dizem se prostituir por serem libertárias e autônomas.
A posição a favor da regulamentação
só se sustenta se for ocultada a realidade e a essência da prostituição. Uma
realidade em que a grande maioria das mulheres prostituídas são as mais pobres,
as que são expulsas de suas terras, as que são prostituídas junto aos canteiros
das grandes obras, das mineradoras, das madeireiras, das empresas do
agronegócio. Ou a realidade da prostituição nos países ricos, em que a maioria
das mulheres prostituídas são dos países do sul e do leste, e migraram ou foram
traficadas para a Europa.
Na verdade, esse discurso
pró-regulamentação reforça a visão do grupo dominante – os homens
prostituidores. Eles tem como instituição o sistema patriarcal que lhes confere
poder há milhares de anos. E conseguiram fazer parecer que as relações de
dominação são fruto da biologia: a suposta sexualidade inata viril e
insaciável, masculina, frente a passiva sexualidade feminina.
O desejo é deles, e o corpo das
mulheres existe para satisfazê-los. Só isso pode explicar porque os homens
querem fazer sexo com quem não os deseja. Na verdade, para os que consideram
que as mulheres são uma mercadoria essa posição é coerente. Portanto, essa é
uma visão baseada em uma determinada moral, que historicamente tratou as
mulheres a partir da polaridade entre santas e putas.
No feminismo, essa dicotomia foi
analisada como a hipocrisia da dupla moral para negar e controlar o desejo das
mulheres. Ela divide e coloca as mulheres em oposição entre si e funciona como
um critério de julgamento das mulheres a partir da sexualidade. Do ponto de
vista da vivência das mulheres, o resultado é uma ambiguidade e uma contradição
entre a expressão do seu desejo e os castigos e perigos que isso pode
representar. Ou seja, os perigos relacionados ao que ocorre quando transitam
nas fronteiras entre santas e putas.
O complicado é que essa posição,
ao não assumir sua visão conservadora, busca confundir o debate, chamando a
posição feminista crítica de moralista e com tabus sexuais.
Nossa moral é outra: a da defesa
da liberdade e autonomia. A liberdade só pode estar em construção se há uma
visão crítica aos mecanismos de dominação.
Caso contrário, se legitima uma
prática de opressão. A prostituição foi construída historicamente para garantir
o patriarcado e o modelo de sexualidade correspondente. Até hoje, persiste como
um mecanismo de coerção.
Estamos convencidas de que
devemos impedir a regulamentação da prostituição como profissão, mas isso não
significa que não há nada a fazer. O Estado já tem instrumentos para tirar as
mulheres em situação de prostituição da invisibilidade e da estigmatização.
É preciso que o Estado promova
campanhas de prevenção e conscientização sobre a violência e o controle do
mercado do sexo sobre o corpo e a vida de mulheres e meninas. Os atores que
organizam este mercado e aqueles que o sustentam, ou seja, os cafetões e os
clientes, precisam ser punidos pela violência que geram. É preciso, ainda,
enfrentar a discriminação e os preconceitos que as mulheres prostituídas
vivenciam quando procuram o serviço de saúde ou as delegacias.
Além disso, consideramos que há
muitas políticas a serem desenvolvidas, em termos de assegurar aposentadoria
universal, de incluir as mulheres prostituídas em políticas de inclusão social,
de programas específicos de educação, moradia, geração de trabalho e renda.
Nenhuma destas propostas figuram nos projetos de regulamentação. Ao contrário,
a legalização da cafetinagem contribui para legitimar o sistema de exploração,
mantendo as mulheres como objetos e não como cidadãs, com direito a ter
direitos.
Nalu Faria, que assina este artigo em nome da Marcha Mundial das
Mulheres, é psicológa e coordenadora da SOF. O artigo foi publicado
inicialmente pela Fundação Heinrich Böll Stiftung Brasil.
SOBRE @ AUTOR@: MARCHA MUNDIAL
DAS MULHERES
Marcha Mundial das Mulheres
Quem representa a MMM aqui é a
Nalu Silva. A Marcha Mundial das Mulheres nasceu no ano 2000 como uma grande
mobilização que reuniu mulheres do mundo todo em uma campanha contra a pobreza
e a violência. A MMM luta cotidianamente para que as mulheres sejam sujeitos
ativos na luta pela transformação de suas vidas e na superação das
desigualdades. O movimento está presente em mais de 50 países e em 20 estados
brasileiros, com a presença de mulheres urbanas e rurais, trabalhadoras,
sindicalistas, estudantes, negras, indígenas, imigrantes, lésbicas e
bissexuais.Fonte: Revista : Az Minas
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