segunda-feira, 11 de julho de 2016

Os significados do sexo pago


São muitos os feminismos. Enquanto alguns deles dão apoio à causa das prostitutas, sobretudo em relação à proteção profissional, outros as descrevem como vítimas do machismo. Prostitutas feministas, no entanto, recusam esse papel subalterno, e a discussão dá pano pra manga.

O clichê diz que a prostituição é a profissão mais antiga do mundo. Ela, de fato, vem de longe. No Brasil, porém, só foi incluída na Classificação Brasileira de Ocupações em 2002. O reconhecimento do Ministério do Trabalho e Emprego foi um avanço. Ao mesmo tempo, a palavra “prostituição” figura no Código Penal no art. 230, que trata do crime de rufianismo. Diz a lei que cobrar pela atividade sexual não é crime, mas lucrar com o sexo de terceiros, sim. Ser prostituta pode. Ser cafetão, não.


“O Estado autoriza a profissão, mas não dá a estrutura para que os profissionais trabalhem. É como ser uma professora e não poder trabalhar na escola”, compara a pesquisadora Laura Murray, pesquisadora do Observatório da Prostituição da UFRJ. De acordo com esse ponto de vista, fazer com que as prostitutas trabalhem sozinhas, sem a estrutura de uma boate, é deixá-las vulneráveis a toda sorte de violência. Isso porque elas acabam tendo que trabalhar em ambientes hostis, entrar nos carros de clientes e se expor a situações perigosas.


Para Laura, é possível comparar a prostituição com qualquer outra profissão, principalmente diante do discurso de que as mulheres escolhem esse ofício por falta de opção. “O que mais escuto são histórias de mulheres que saíram de trabalhos em que se sentiam mais exploradas. É uma escolha feita dentro de um esquema de desigualdades, ponderando objetivos e prioridades. O mundo tem desigualdade de gênero e é complicado para uma série de profissões desvalorizadas. “, explica.

Segundo Relatório Mundial sobre a Exploração Sexual, da Fundação Scelles, 42 milhões de pessoas se prostituem no mundo. A pesquisa que deu origem ao documento foi realizada em 24 países e, provavelmente, é a maior sobre o tema. Embora grandiosa, ele não contabiliza casos de agressão física, psicológica e sexual a essas pessoas. Nesse ponto, há uma grande cisão no debate público. De um lado, há quem esteja preocupado em manter a profissão livre das situações de vulnerabilidade e violência. Do outro, ativistas da ideia de que a prostituição em si é o problema, pois explora as mulheres ao tratar seus corpos como objeto do desejo masculino. Essa posição se vale do fato de que a maioria dos profissionais do sexo é do gênero feminino.

A Copa e as Olimpíadas deixaram a vida dessas profissionais ainda mais complicada. “Por conta dos megaeventos, elas ficaram obrigadas a trabalhar em lugares mais escondidos para que os turistas não as vejam, lugares com menos segurança, mais perigosos”, avalia Laura Murray. Por isso, o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas e a Marcha das Vadias promoveram, no mês passado, o debate Turismo sexual e Olimpíadas: quebrando tabus. Os idealizadores do evento queriam falar justamente do impacto das políticas “higienistas”, com ênfase no direito de as prostitutas atenderem os turistas. O encontro, porém, recebeu forte reação de setores do feminismo, que, nas redes sociais, acusaram os organizadores de fazer apologia ao turismo sexual.

Trabalho como qualquer outro

Há quem encare a reivindicação por mais direito aos profissionais do sexo mais como uma luta da classe trabalhadora do que como uma luta feminista. Carmem Lúcia Paz, 51, cientista social, prostituta há 32 anos, uma das lideranças da Rede Brasileira de Prostitutas e fundadora no Núcleo de Estudos da Prostituição (NEP) em Porto Alegre, vê a regulamentação do ofício de profissional do sexo como um direito de classe. “É uma forma de nos tirar da clandestinidade, de nos igualar a qualquer outro trabalhador”, afirma.

Criado em 1989, o NEP trabalha com a autoestima, a cidadania e a saúde das prostitutas, fornecendo informações sobre seus direitos e sobre a regulamentação da profissão. Para ela, é interessante entrelaçar as lutas feministas com as das prostitutas, mas nem toda feminista concorda com isso. “Em 2006, em encontro no Peru, iniciamos essa discussão junto do movimento de mulheres, que lá é muito forte. Lá, diferentemente daqui, prostitutas e feministas têm trabalhado em conjunto. Aqui, nós não conseguimos isso ainda”, lamenta.

Carmen Lúcia Paz

Para Carmen, esse apoio mútuo faz sentido porque até as feministas mais radicais lutam pela liberdade sexual. O direito ao trabalho sexual seria um aspecto dessa luta. “Acreditamos que nós temos o direito de usar o nosso sexo para ganhar dinheiro. Tu podes usar o teu sexo para o que tu quiseres, e nós queremos usar o nosso para ganhar dinheiro. Então, ele tem que ser visto como um direito. A sexualidade é um direito, seja ela exercitada para ganhar dinheiro, de graça ou por amor. Eu tenho esse direito de escolha”, enfatiza.

Posição semelhante defende Carolina Costa Ferreira, doutora em Direito, Estado e Constituição pela UnB, líder do grupo de pesquisa Criminologia do Enfrentamento e professora de direito penal e processual penal do UniCeub. “A luta pela regulamentação da prostituição é, em primeiro lugar, uma luta de uma classe trabalhadora, que tem direito aos benefícios sociais como qualquer outra categoria, consideradas as suas especificidades — mais acesso a políticas de saúde pública, aposentadoria regulamentada, por exemplo. Em primeiro lugar, a ideia de que a luta é de uma classe trabalhadora passa pelo fato de que a prostituição não é exercida apenas por mulheres, mas também por homens”, explica. “Sob o ponto de vista dos feminismos, a regulamentação da prostituição é uma pauta que, em minha opinião, merece apoio, pois se trata de uma profissão que lida com a liberdade sexual”, completa.

Por experiência própria


Desde os 19 anos, Monique Prada atua como prostituta em Porto Alegre. A escolha não foi fácil, mas ela compara a outras, como catar lixo ou fazer trabalho doméstico, também difíceis. “Considero que há uma condição mais empoderadora no trabalho sexual. Parece melhor trabalhar com sexo, mas todo trabalho tem seu lado complexo”, avalia. Tornou-se ativista pelos direitos das prostitutas por volta de 2010. Em 2012, criou o site Mundo Invisível, em que escreve sobre questões relativas à prostituição e também publica textos de terceiros.

Na opinião dela, a legislação brasileira isola as profissionais do sexo e a expõe a riscos. Realista, ela não acha que o PL Gabriela Leite tem condições de passar no Congresso. “Para a tranquilidade geral da nação e segurança da família brasileira, eu não acredito que esse PL seja aprovado. Tem muito mais chance de passar o PL nº 377, de 2011, proposto por João Campos (que criminaliza a contratação de serviços sexuais)”, lamenta.

Entre as coisas que avalia como erradas na forma atual de se encarar a prostituição no Brasil, ela cita a contradição entre a Constituição de 1988 e o Código Penal. “Ela garante que qualquer trabalhador se organize em cooperativas, mas o código diz que, se duas prostitutas se unirem para alugar um local de trabalho, configura que uma está explorando a outra”, critica. Para ela, a legislação brasileira deixa as profissionais isoladas e as expõe a riscos.

Monique diz que as feministas radicais querem apenas calar as prostitutas, como se elas não fossem capazes de opiniões próprias e posicionamentos políticos. Acredita que, no fundo, há um moralismo mal disfarçado. “A defesa delas para o fim da prostituição é a partir de uma posição privilegiada — com muito mais escolhas do que nós jamais tivemos. Nunca esteve ao meu alcance ser médica ou prostituta. Mas havia outras opções, e eu escolhi ser puta”, argumenta.

O que o Estado tem a ver com isso

Em março deste ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que uma prostituta poderia requerer judicialmente o pagamento dos serviços prestados. O Tribunal de Justiça do Tocantins havia decidido que o compromisso de pagar por sexo não seria passível de cobrança judicial, com a justificativa de que a prostituição não é uma atividade que deva ser estimulada pelo Estado.

“Não se pode negar proteção jurídica àqueles que oferecem serviços de cunho sexual em troca de remuneração, desde que, evidentemente, essa troca de interesses não envolva incapazes, menores de 18 anos e pessoas de algum modo vulneráveis e que o ato sexual seja decorrente de livre disposição da vontade dos participantes”, afirmou o ministro Rogerio Schietti Cruz em seu voto. Ele salientou que o Código Brasileiro de Ocupações de 2002, do Ministério do Trabalho, menciona a categoria dos profissionais do sexo, o que “evidencia o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, de que a atividade relacionada ao comércio sexual do próprio corpo não é ilícita e, portanto, é passível de proteção jurídica”.

Atento às violações sofridas pelos profissionais do sexo, o deputado Jean Wyllys (PSol-RJ) apresentou, em 2012, à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 4.211, conhecido como PL Gabriela Leite, que regulamenta a profissão de prostituta. A troca de legislatura havia levado a seu arquivamento, mas, em 2015, foi solicitado o desarquivamento. Na ocasião, o então presidente da Casa, Eduardo Cunha, determinou a formação de Comissão Especial para analisar o texto, porém, a maioria das bancadas não indicou membros. Na entrevista abaixo, Wyllys conta à Revista como foi o trâmite do PL. E explica a importância dele.

Filha, mãe, avó…



Autora do livro Filha, mãe, avó e puta — A história de uma mulher que decidiu ser prostituta, Gabriela Leite foi uma destacada lutadora pelos direitos das prostitutas brasileiras. Nasceu em 1951, em São Paulo, numa família de classe média, e morreu em 2013. Quando morava em Belo Horizonte, trocou a faculdade de sociologia pela prostituição. Mais tarde, mudou-se para o Rio de Janeiro. Nos anos 1990, Gabriela fundou a ONG Davida para defender os direitos das prostitutas e promover eventos culturais. Em 2005, criou a grife Daspu, cujas peças fizeram muito sucesso.

Fonte: http://www.correiobraziliense.com.br/

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