São muitos os feminismos.
Enquanto alguns deles dão apoio à causa das prostitutas, sobretudo em relação à
proteção profissional, outros as descrevem como vítimas do machismo.
Prostitutas feministas, no entanto, recusam esse papel subalterno, e a
discussão dá pano pra manga.
O clichê diz que a prostituição é a profissão mais antiga do mundo. Ela, de fato, vem de longe. No Brasil, porém, só foi incluída na Classificação Brasileira de Ocupações em 2002. O reconhecimento do Ministério do Trabalho e Emprego foi um avanço. Ao mesmo tempo, a palavra “prostituição” figura no Código Penal no art. 230, que trata do crime de rufianismo. Diz a lei que cobrar pela atividade sexual não é crime, mas lucrar com o sexo de terceiros, sim. Ser prostituta pode. Ser cafetão, não.
“O Estado autoriza a profissão,
mas não dá a estrutura para que os profissionais trabalhem. É como ser uma
professora e não poder trabalhar na escola”, compara a pesquisadora Laura
Murray, pesquisadora do Observatório da Prostituição da UFRJ. De acordo com
esse ponto de vista, fazer com que as prostitutas trabalhem sozinhas, sem a
estrutura de uma boate, é deixá-las vulneráveis a toda sorte de violência. Isso
porque elas acabam tendo que trabalhar em ambientes hostis, entrar nos carros
de clientes e se expor a situações perigosas.
Para Laura, é possível comparar a
prostituição com qualquer outra profissão, principalmente diante do discurso de
que as mulheres escolhem esse ofício por falta de opção. “O que mais escuto são
histórias de mulheres que saíram de trabalhos em que se sentiam mais
exploradas. É uma escolha feita dentro de um esquema de desigualdades,
ponderando objetivos e prioridades. O mundo tem desigualdade de gênero e é
complicado para uma série de profissões desvalorizadas. “, explica.
Segundo Relatório Mundial sobre a
Exploração Sexual, da Fundação Scelles, 42 milhões de pessoas se prostituem no
mundo. A pesquisa que deu origem ao documento foi realizada em 24 países e,
provavelmente, é a maior sobre o tema. Embora grandiosa, ele não contabiliza
casos de agressão física, psicológica e sexual a essas pessoas. Nesse ponto, há
uma grande cisão no debate público. De um lado, há quem esteja preocupado em
manter a profissão livre das situações de vulnerabilidade e violência. Do
outro, ativistas da ideia de que a prostituição em si é o problema, pois
explora as mulheres ao tratar seus corpos como objeto do desejo masculino. Essa
posição se vale do fato de que a maioria dos profissionais do sexo é do gênero
feminino.
A Copa e as Olimpíadas deixaram a
vida dessas profissionais ainda mais complicada. “Por conta dos megaeventos,
elas ficaram obrigadas a trabalhar em lugares mais escondidos para que os
turistas não as vejam, lugares com menos segurança, mais perigosos”, avalia Laura
Murray. Por isso, o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas e a Marcha das Vadias
promoveram, no mês passado, o debate Turismo sexual e Olimpíadas: quebrando
tabus. Os idealizadores do evento queriam falar justamente do impacto das
políticas “higienistas”, com ênfase no direito de as prostitutas atenderem os
turistas. O encontro, porém, recebeu forte reação de setores do feminismo, que,
nas redes sociais, acusaram os organizadores de fazer apologia ao turismo
sexual.
Trabalho como qualquer outro
Há quem encare a reivindicação
por mais direito aos profissionais do sexo mais como uma luta da classe
trabalhadora do que como uma luta feminista. Carmem Lúcia Paz, 51, cientista
social, prostituta há 32 anos, uma das lideranças da Rede Brasileira de
Prostitutas e fundadora no Núcleo de Estudos da Prostituição (NEP) em Porto
Alegre, vê a regulamentação do ofício de profissional do sexo como um direito
de classe. “É uma forma de nos tirar da clandestinidade, de nos igualar a
qualquer outro trabalhador”, afirma.
Criado em 1989, o NEP trabalha
com a autoestima, a cidadania e a saúde das prostitutas, fornecendo informações
sobre seus direitos e sobre a regulamentação da profissão. Para ela, é
interessante entrelaçar as lutas feministas com as das prostitutas, mas nem toda
feminista concorda com isso. “Em 2006, em encontro no Peru, iniciamos essa
discussão junto do movimento de mulheres, que lá é muito forte. Lá,
diferentemente daqui, prostitutas e feministas têm trabalhado em conjunto.
Aqui, nós não conseguimos isso ainda”, lamenta.
Carmen Lúcia Paz
Para Carmen, esse apoio mútuo faz
sentido porque até as feministas mais radicais lutam pela liberdade sexual. O
direito ao trabalho sexual seria um aspecto dessa luta. “Acreditamos que nós
temos o direito de usar o nosso sexo para ganhar dinheiro. Tu podes usar o teu
sexo para o que tu quiseres, e nós queremos usar o nosso para ganhar dinheiro.
Então, ele tem que ser visto como um direito. A sexualidade é um direito, seja
ela exercitada para ganhar dinheiro, de graça ou por amor. Eu tenho esse
direito de escolha”, enfatiza.
Posição semelhante defende
Carolina Costa Ferreira, doutora em Direito, Estado e Constituição pela UnB,
líder do grupo de pesquisa Criminologia do Enfrentamento e professora de
direito penal e processual penal do UniCeub. “A luta pela regulamentação da
prostituição é, em primeiro lugar, uma luta de uma classe trabalhadora, que tem
direito aos benefícios sociais como qualquer outra categoria, consideradas as
suas especificidades — mais acesso a políticas de saúde pública, aposentadoria
regulamentada, por exemplo. Em primeiro lugar, a ideia de que a luta é de uma
classe trabalhadora passa pelo fato de que a prostituição não é exercida apenas
por mulheres, mas também por homens”, explica. “Sob o ponto de vista dos
feminismos, a regulamentação da prostituição é uma pauta que, em minha opinião,
merece apoio, pois se trata de uma profissão que lida com a liberdade sexual”,
completa.
Por experiência própria
Desde os 19 anos, Monique Prada
atua como prostituta em Porto Alegre. A escolha não foi fácil, mas ela compara
a outras, como catar lixo ou fazer trabalho doméstico, também difíceis.
“Considero que há uma condição mais empoderadora no trabalho sexual. Parece
melhor trabalhar com sexo, mas todo trabalho tem seu lado complexo”, avalia.
Tornou-se ativista pelos direitos das prostitutas por volta de 2010. Em 2012,
criou o site Mundo Invisível, em que escreve sobre questões relativas à
prostituição e também publica textos de terceiros.
Na opinião dela, a legislação
brasileira isola as profissionais do sexo e a expõe a riscos. Realista, ela não
acha que o PL Gabriela Leite tem condições de passar no Congresso. “Para a
tranquilidade geral da nação e segurança da família brasileira, eu não acredito
que esse PL seja aprovado. Tem muito mais chance de passar o PL nº 377, de
2011, proposto por João Campos (que criminaliza a contratação de serviços
sexuais)”, lamenta.
Entre as coisas que avalia como
erradas na forma atual de se encarar a prostituição no Brasil, ela cita a
contradição entre a Constituição de 1988 e o Código Penal. “Ela garante que
qualquer trabalhador se organize em cooperativas, mas o código diz que, se duas
prostitutas se unirem para alugar um local de trabalho, configura que uma está
explorando a outra”, critica. Para ela, a legislação brasileira deixa as
profissionais isoladas e as expõe a riscos.
Monique diz que as feministas
radicais querem apenas calar as prostitutas, como se elas não fossem capazes de
opiniões próprias e posicionamentos políticos. Acredita que, no fundo, há um
moralismo mal disfarçado. “A defesa delas para o fim da prostituição é a partir
de uma posição privilegiada — com muito mais escolhas do que nós jamais
tivemos. Nunca esteve ao meu alcance ser médica ou prostituta. Mas havia outras
opções, e eu escolhi ser puta”, argumenta.
O que o Estado tem a ver com isso
Em março deste ano, o Superior
Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que uma prostituta poderia requerer
judicialmente o pagamento dos serviços prestados. O Tribunal de Justiça do
Tocantins havia decidido que o compromisso de pagar por sexo não seria passível
de cobrança judicial, com a justificativa de que a prostituição não é uma
atividade que deva ser estimulada pelo Estado.
“Não se pode negar proteção
jurídica àqueles que oferecem serviços de cunho sexual em troca de remuneração,
desde que, evidentemente, essa troca de interesses não envolva incapazes,
menores de 18 anos e pessoas de algum modo vulneráveis e que o ato sexual seja
decorrente de livre disposição da vontade dos participantes”, afirmou o
ministro Rogerio Schietti Cruz em seu voto. Ele salientou que o Código
Brasileiro de Ocupações de 2002, do Ministério do Trabalho, menciona a
categoria dos profissionais do sexo, o que “evidencia o reconhecimento, pelo
Estado brasileiro, de que a atividade relacionada ao comércio sexual do próprio
corpo não é ilícita e, portanto, é passível de proteção jurídica”.
Atento às violações sofridas
pelos profissionais do sexo, o deputado Jean Wyllys (PSol-RJ) apresentou, em
2012, à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 4.211, conhecido como PL
Gabriela Leite, que regulamenta a profissão de prostituta. A troca de
legislatura havia levado a seu arquivamento, mas, em 2015, foi solicitado o
desarquivamento. Na ocasião, o então presidente da Casa, Eduardo Cunha,
determinou a formação de Comissão Especial para analisar o texto, porém, a
maioria das bancadas não indicou membros. Na entrevista abaixo, Wyllys conta à
Revista como foi o trâmite do PL. E explica a importância dele.
Filha, mãe, avó…
Autora do livro Filha, mãe, avó e
puta — A história de uma mulher que decidiu ser prostituta, Gabriela Leite foi
uma destacada lutadora pelos direitos das prostitutas brasileiras. Nasceu em
1951, em São Paulo, numa família de classe média, e morreu em 2013. Quando
morava em Belo Horizonte, trocou a faculdade de sociologia pela prostituição.
Mais tarde, mudou-se para o Rio de Janeiro. Nos anos 1990, Gabriela fundou a
ONG Davida para defender os direitos das prostitutas e promover eventos
culturais. Em 2005, criou a grife Daspu, cujas peças fizeram muito sucesso.
Fonte: http://www.correiobraziliense.com.br/
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