Quanto menos confiança na
polícia, menos as mulheres vão conseguir denunciar um crime (Foto: Paulo Pinto/
AGPT)
Porta de entrada do sistema judiciário, policiais precisam
ser treinados a acolher e orientar a mulher que sofre violência, diz
especialista.
Em 2014 foram protocolados 47.646
estupros por todo o Brasil, além de cinco mil tentativas. Os registros
policiais apontam que a cada onze minutos uma mulher foi estuprada.
No mesmo ano encontravam-se no
sistema carcerário 14.246 presos por “crime contra a dignidade sexual”, em que
se encaixam, dentre outros, o estupro, atentado violento ao pudor, estupro de
vulnerável e corrupção de menores.
Este número, contudo, refere-se à
quantidade total de condenados presos, não apenas aos casos de 2014, e
constitui 5% dos presos por crimes tentados ou consumados. O que acontece entre
o boletim de ocorrência e a prisão?
Samira Bueno, diretora-executiva
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explica que o preparo da polícia para
acolher as vítimas e sua relação de confiança com a sociedade são fundamentais
para combater a subnotificação de crimes e a impunidade. Leia destaques da
entrevista a seguir.
CartaCapital: Por que o número de
condenados por estupro é tão baixo se comparado ao número de casos registrados,
como mostra o estudo de 2015 do FBSP?
Samira Bueno: As principais
dificuldades em relação a esse crime são a produção de provas, o medo que as
vítimas têm em denunciar porque, em geral, conhecem seus agressores, o que
torna a denúncia complexa.
O que acontece entre esse número,
que nos baliza a pensar políticas públicas, e o número real? Pesquisas
internacionais mostram que de 30% a 35% dos crimes são de fato registrados. No
Brasil, são 7,5%. E o IPEA mostra que o número real de estupros ocorridos no
ano passado é superior a meio milhão.
A violência faz parte do
cotidiano da mulher brasileira, possivelmente a cada um minuto uma mulher é
vítima de violência sexual. E a maior parte dos crimes acontece dentro de casa.
Quem abusa dessas jovens, porque na maioria dos casos são menores de idade, é o
pai, o padrasto, o vizinho.
CC: Em que momento do processo
entre a notificação à polícia e o julgamento esse número sofre maior queda? Por
quê?
SB: A pesquisa mais recente
relacionada a homicídio, que é um crime contra a vida, o mais grave, mostra que
a média no Brasil entre o momento do cometimento do crime e a condenação é de 7
anos. Isso em um crime cujas provas são mais fáceis de apurar, relativamente.
Desconheço estudos sobre estupro, mas o número deve ser baixíssimo.
Há um problema muito anterior: a
relação de confiança entre polícia e sociedade. À medida em que as pessoas
confiam menos na polícia, elas se sentem menos confortáveis na hora de
registrar um crime.
A cultura do estupro dificulta
que aquele policial, o operador ali na ponta, compreenda aquele caso como um
crime. Além disso, ela é a causa pela qual boa parte da impunidade nos crimes
sexuais começa muito antes de chegar à Justiça. A vítima precisa, antes de
tudo, provar que é vítima.
CC: Os policiais recebem
treinamento adequado para lidar com as vítimas e os desdobramentos desse tipo
de crime?
SB: Depende. Porque, como as
polícias respondem ao executivo estadual, cada uma das polícias tem seu
protocolo, seus esquemas de formação. Temos uma polícia que inspira
desconfiança da população, e isso é um dado que tem como efeito prático a
subnotificação de todos os crimes.
Nossa taxa de roubo corresponde
ao todo? Não. Apenas um terço é notificado. Os que são mais notificados são
homicídios, que têm um corpo que exige investigação, os roubos e furtos de
veículos, por causa dos seguros.
Um crime contra a vida, que
teoricamente fornece mais elementos para a investigação, tem uma taxa de 8% de
casos solucionados. Isso no caso de um homicídio que deixa tantos vestígios,
que tem necessariamente a perícia no corpo, que tem mais elementos, que muitas
vezes acontece na rua, então tem alguma filmagem, testemunhas. Não acontece
dentro de casa, como um estupro muitas vezes acontece. Se nessa situação a taxa
é tão baixa, que dirá dos crimes que ocorrem intramuros.
Quando a gente fala por que é
importante um treinamento diferenciado para a polícia, é porque os policiais
têm que entender que aquela pessoa é um sujeito de direitos que sofreu uma
violência. Que aquela mulher agredida precisa de todo o cuidado necessário.
Ela não precisa passar novamente
por uma revitimização, porque muitas vezes ela revive o trauma quando vai dar o
depoimento e o profissional não sabe lidar com ela. E aí ela desiste, vai
embora sem dar queixa. Ou ela vai ser vítima novamente e não vai voltar na
delegacia.
Esse tipo de atendimento é
fundamental porque a polícia é necessariamente a porta de entrada da vítima no
sistema da justiça criminal. Elas têm três opções: podem ficar dentro de casa
convivendo com a violência, ir a um hospital e ter atendimento para evitar uma
gravidez e uma doença venérea e ainda assim evitar a delegacia, e elas podem
tentar fazer o registro da queixa.
Quando você sofre todo tipo de
constrangimento na hora de tentar registrar uma ocorrência, você acaba
desistindo. E se você souber de alguém que está sendo vítima de alguma
violência, vai dizer a ela que não adianta ir à delegacia, não adianta falar
com a polícia.
Se não houver sensibilidade desde
a porta de entrada, nunca vamos resolver o problema da impunidade. Se a polícia
não faz uma investigação bem feita, não dá todo o atendimento necessário pra a
vítima e compreende aquilo como um crime, se ela questiona até se é um crime,
de forma alguma o judiciário vai dar algum tipo de caminho diferente.
É um erro falar da impunidade como
se fosse um problema só da justiça. Falar de impunidade nos crimes sexuais é
falar já do primeiro atendimento que essa vítima tem nos equipamentos
policiais.
Falta de mulheres nas polícias também pode ser um problema
CC: Houve recentemente
iniciativas do Estado direcionadas a esse problema?
SB: O Estado brasileiro hoje está
na contramão. Quando vemos um congresso cogitando acabar com a discussão sobre
gênero na escola, isso é um retrocesso. Há um projeto de lei que quer tornar
ainda mais difícil para a vítima fazer um aborto em caso de estupro. Ele cria
uma série de etapas que dificultam esse direito, como a exigência de um boletim
de ocorrência. E nós sabemos o que acontece na delegacia.
A nova secretária de políticas
para as mulheres assumiu publicamente que é contra o aborto mesmo em casos de
estupro. Estão pensando em restringir ainda mais os direitos da mulher em vez
de cuidar dela, em dificultar ainda mais sua vida após sofrer um crime como
esse.
É preciso criar políticas que
repensem a formação de nossas crianças e jovens, gerando um processo de
educação que reforce a importância da equidade de gênero.
CC: Como essa estatística se
relaciona com a falta de representatividade da mulher na política, algo que se
tornou mais flagrante com a posse do presidente interino Michel Temer?
SB: A desvalorização do papel da
mulher enquanto ator público, sujeito político, é evidente quando você olha os
ministros de Temer. A resposta a essa violência não virá de um grupo de homens,
que não conseguem entender a dimensão do problema.
O Estado precisa aprender a
articular melhor as secretarias de mulheres, direitos humanos e de segurança
pública. Todos esses atores que tratam das questões de gênero a partir de
diferentes perspectivas podem concentrar esforços para pensar protocolos de
atendimento que formariam profissionais de segurança em todo o país e não só
nas capitais.
Pensando em legislação, avançamos
bastante nos últimos 10 anos. Estupro é crime hediondo e a lei mudou em 2009,
então ato libidinoso e outras violações passaram a ser enquadrados como
estupro. Em 2006, tivemos avanços nas leis de combate à violência doméstica.
Foi onde mais avançamos. Só que ainda não conseguimos evitar que uma mulher
seja espancada pelo marido, assassinada pelo namorado, que uma menina seja
estuprada por 33 homens.
A questão é que podemos ter as
melhores leis do mundo, mas se os equipamento na ponta, as investigações, o
papel da polícia no primeiro atendimento a essa vítima, se a ação da polícia
com a assistência social e os equipamentos de saúde não funcionarem, nunca
vamos punir os agressores.
Fonte: CartaCapital
Nenhum comentário:
Postar um comentário