Não se trata de ensinar meninas e
mulheres a terem mais cautela, zelo e recato, mas sim que meninos e homens
sejam educados a respeitá-las, independentemente da circunstância em que se
encontrem.
Por Lívia Guimarães
A diretora executiva da ONU
Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, e a administradora do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Helen Clark, ressaltaram no Dia
Internacional para Eliminação da Violência contra as Mulheres, em 25 de
novembro de 2015, que a violência contra as mulheres é uma das mais toleradas
(e disseminadas) violações a direitos humanos no mundo, e que ela poderia ser
prevenida.
Por que, repita-se, tanta
indiferença e tolerância com relação a essa violação a direitos humanos?
O recente caso da adolescente que
foi estuprada por mais de 30 homens no Rio de Janeiro ilustra essa situação. A
banalização do crime de estupro não ocorreu apenas por parte dos agressores,
que expuseram sua vítima em redes sociais, com comentários jocosos e repletos
de escárnio, mas também por parte de uma parcela da sociedade, que
compartilhou, veiculou e noticiou o vídeo do crime ocorrido de maneira imprudente
e criminosa, reforçando a estigmatização da vítima e perpetrando a
invisibilidade dos crimes de violência contra a mulher, como se fossem meros
fatos da vida.
Os dados do 9° Anuário do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública apontam que a cada 11 minutos uma mulher é
estuprada no Brasil. Nessa pesquisa, 90% das mulheres entrevistadas responderam
que têm medo de ser vítima de agressão sexual, enquanto que, comparativamente,
42% dos homens revelaram o mesmo temor. Ainda, foi constatado que, só em 2014, 47.646
casos de estupro foram notificados no Brasil.
Por si só esse número seria
alarmante, mas ele é incapaz de refletir a realidade. A situação é agravada
pela existência de subnotificação dos crimes de violência contra a mulher, pois
dada a fragilidade da vítima e a sua injusta submissão a uma situação de
vergonha, confusão e culpabilização social, muitas mulheres preferem não
denunciar o crime. Segundo pesquisa do IPEA, apenas 10% dos crimes são
reportados à polícia. A estimativa é de que haja 527 mil tentativas ou casos de
estupros consumados no país, por ano.
O crime de estupro, disciplinado
no Código Penal em seu art. 213, teve seu texto modificado em 2009, a partir da
lei 12.015. Dentre as alterações, está a própria adequação do crime, que deixou
de ser tido como um atentado contra os costumes ("crimes contra os
costumes") e passou a ser considerado crime contra a dignidade sexual e
uma violação à liberdade sexual. Assim, o estupro deixou de ter como vítima a
sociedade e seus costumes e passou a enxergar o ser humano (mulher e homem)
como aquele que tem seu corpo, sua dignidade e sua liberdade sexual ofendidas.
Em outra alteração desta mesma
lei, passou-se a considerar estupro de vulnerável quando se pratica conjunção
carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos, ou com alguém que, por
enfermidade ou deficiência mental, ou por qualquer outra causa, não pode
oferecer resistência (art. 217-A, parágrafo 1°). Logo, se já não estava claro,
estupro é crime e a pena pode variar, chegando ao máximo de 30 anos de prisão,
se dele resultar morte, por exemplo.
Voltemos à nossa pergunta: se
estupro é crime, por que, a despeito das mais variadas evoluções na lei,
continua-se a naturalizar os fatos e culpabilizar a vítima? A resposta envolve
uma questão de gênero: a maior parte das vítimas são do gênero feminino. E,
como mulheres, seus corpos ora são sacralizados, ora são objetificados, e até
hipersexualizados, mas, em nenhum momento, respeitados.
Assim, acima de tudo, trata-se de
um crime que perpetua o machismo e a misoginia na sociedade em que vivemos, que
reduz as mulheres à condição de incapazes de se determinarem com autonomia em
relação ao próprio corpo e à própria vida. Imposições de estereótipos e papéis
marcados pela segregação de gênero e binarismos que perpassam desde o mercado
de trabalho, a ocupação de cargos públicos e questões relacionadas à
maternidade, até se chegar ao ponto de discutir o elementar direito da mulher
gerir com liberdade o seu próprio corpo, sem sofrer a agressão física e
psicológica de um estupro coletivo.
O estupro coletivo do Rio de
Janeiro não é um caso isolado. Episódios semelhantes ocorreram recentemente no
Piauí, em vans coletivas no próprio RJ, e também no Parque do Ibirapuera, em
São Paulo. Há ainda o caso internacionalmente noticiado da estudante indiana
que morreu depois de igualmente ter sido vítima de um estupro coletivo (sua
história, inclusive, resultou no documentário India's Daughter). Todos esses
acontecimentos foram veiculados pela imprensa e reverberados nas redes sociais,
mas, como regra, continuaram marcados pelo machismo que procura inverter
papeis, atribuindo à vítima o papel de algoz de si mesma, culpabilizando um
suposto "descuido" na condução de sua própria liberdade.
Manchetes, notícias, comentários
e argumentos em que é destacado o fato de a vítima ter ingerido álcool ou algum
tipo de droga, de ter usado tal ou qual roupa, de estar sozinha ou acompanhada,
de já ter um filho, de possuir vida sexual ativa, e até de ser prostituta,
esquecem de levar em consideração que a tipificação do crime de estupro não
traz nenhum desses elementos como relevantes.
O Código Penal exige, tão
somente, que a pessoa seja constrangida, mediante violência ou grave ameaça, a
sexo ou a ato libidinoso. O artigo 213 não faz diferenciação quanto à roupa ou
à vida sexual pregressa da vítima. Quem o faz é a sociedade e as suas
instituições, ancoradas em uma construção cultural patriarcal, resultando no
que se chama de "cultura do estupro". Em verdade, a narrativa da
história deveria ser outra: importa saber que há agressores por aí, que
deliberadamente ignoram o fato de o estupro ser crime e que desafiam a
capacidade punitiva do Estado.
Não é papel da sociedade julgar
vítimas, relativizando o crime a partir de elementos alheios a ele, pelo
contrário: é esperado que ela passe a se indignar com as constantes violações
às liberdades sexuais e direitos reprodutivos das mulheres. Estupro não ocorre
apenas nas vielas escuras dos bairros distantes, mas também nas universidades,
em transportes públicos e até mesmo dentro de casa.
O crime de estupro vem marcado
por uma grande carga de gênero. Ainda que o art. 213, do Código Penal, fale que
a vítima é "alguém", observamos que as mulheres são as que mais o
temem e são, também, suas maiores vítimas. Nenhuma mulher, rica ou pobre, cis
ou trans, branca, negra, ou indígena, hetero ou homossexual, nacional ou
imigrante está livre da ameaça de um dia vir a ter seu corpo sexualmente
violentado. Os marcadores sociais explicam o maior ou o menor grau de vulnerabilidade
da população feminina, mas todos conduzem para a resposta de que o machismo
perpassa indistintamente por todos eles.
E se o estupro virou
"cultura", traduzida a partir da banalização da desconsideração do
gênero feminino nas mais diversas esferas e expressões da vida, como é no caso
de uma abuso e violência sexual, bem como na sua revitimização (vítima do crime
e vítima da sociedade que a culpa), é importante que não apenas o direito penal
e a criminalização atuem para combatê-lo. Devem ser criadas e endossadas
medidas efetivas de combate à violência contra mulheres, perpassando,
principalmente, por um processo de educação e conscientização de homens e
mulheres quanto aos efeitos nocivos da existência do machismo.
Não se trata de ensinar meninas e
mulheres a terem mais cautela, zelo e recato, mas sim que meninos e homens
sejam educados a respeitá-las, independentemente da circunstância em que se
encontrem. Só assim parece ser possível acabar com a banalização dessa violência,
por quem a comete e pela sociedade que observa passiva ou culpando a vítima. A
educação pode ser a chave para transformação da "cultura do estupro"
em uma realidade de respeito e equidade de gêneros.
Lívia Guimarães é pesquisadora da
FGV Direito SP e Mestranda em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito
da USP. Cecília Barretos graduanda em Direito pela Faculdade de Direito da USP
Fonte: Brasil Post
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