quarta-feira, 15 de junho de 2016

Educação pode ser a base para combater a 'cultura do estupro'


Não se trata de ensinar meninas e mulheres a terem mais cautela, zelo e recato, mas sim que meninos e homens sejam educados a respeitá-las, independentemente da circunstância em que se encontrem.

Por Lívia Guimarães

A diretora executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, e a administradora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Helen Clark, ressaltaram no Dia Internacional para Eliminação da Violência contra as Mulheres, em 25 de novembro de 2015, que a violência contra as mulheres é uma das mais toleradas (e disseminadas) violações a direitos humanos no mundo, e que ela poderia ser prevenida.

Por que, repita-se, tanta indiferença e tolerância com relação a essa violação a direitos humanos?

O recente caso da adolescente que foi estuprada por mais de 30 homens no Rio de Janeiro ilustra essa situação. A banalização do crime de estupro não ocorreu apenas por parte dos agressores, que expuseram sua vítima em redes sociais, com comentários jocosos e repletos de escárnio, mas também por parte de uma parcela da sociedade, que compartilhou, veiculou e noticiou o vídeo do crime ocorrido de maneira imprudente e criminosa, reforçando a estigmatização da vítima e perpetrando a invisibilidade dos crimes de violência contra a mulher, como se fossem meros fatos da vida.

Os dados do 9° Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil. Nessa pesquisa, 90% das mulheres entrevistadas responderam que têm medo de ser vítima de agressão sexual, enquanto que, comparativamente, 42% dos homens revelaram o mesmo temor. Ainda, foi constatado que, só em 2014, 47.646 casos de estupro foram notificados no Brasil.

Por si só esse número seria alarmante, mas ele é incapaz de refletir a realidade. A situação é agravada pela existência de subnotificação dos crimes de violência contra a mulher, pois dada a fragilidade da vítima e a sua injusta submissão a uma situação de vergonha, confusão e culpabilização social, muitas mulheres preferem não denunciar o crime. Segundo pesquisa do IPEA, apenas 10% dos crimes são reportados à polícia. A estimativa é de que haja 527 mil tentativas ou casos de estupros consumados no país, por ano.


O crime de estupro, disciplinado no Código Penal em seu art. 213, teve seu texto modificado em 2009, a partir da lei 12.015. Dentre as alterações, está a própria adequação do crime, que deixou de ser tido como um atentado contra os costumes ("crimes contra os costumes") e passou a ser considerado crime contra a dignidade sexual e uma violação à liberdade sexual. Assim, o estupro deixou de ter como vítima a sociedade e seus costumes e passou a enxergar o ser humano (mulher e homem) como aquele que tem seu corpo, sua dignidade e sua liberdade sexual ofendidas.

Em outra alteração desta mesma lei, passou-se a considerar estupro de vulnerável quando se pratica conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos, ou com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, ou por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência (art. 217-A, parágrafo 1°). Logo, se já não estava claro, estupro é crime e a pena pode variar, chegando ao máximo de 30 anos de prisão, se dele resultar morte, por exemplo.

Voltemos à nossa pergunta: se estupro é crime, por que, a despeito das mais variadas evoluções na lei, continua-se a naturalizar os fatos e culpabilizar a vítima? A resposta envolve uma questão de gênero: a maior parte das vítimas são do gênero feminino. E, como mulheres, seus corpos ora são sacralizados, ora são objetificados, e até hipersexualizados, mas, em nenhum momento, respeitados.

Assim, acima de tudo, trata-se de um crime que perpetua o machismo e a misoginia na sociedade em que vivemos, que reduz as mulheres à condição de incapazes de se determinarem com autonomia em relação ao próprio corpo e à própria vida. Imposições de estereótipos e papéis marcados pela segregação de gênero e binarismos que perpassam desde o mercado de trabalho, a ocupação de cargos públicos e questões relacionadas à maternidade, até se chegar ao ponto de discutir o elementar direito da mulher gerir com liberdade o seu próprio corpo, sem sofrer a agressão física e psicológica de um estupro coletivo.

O estupro coletivo do Rio de Janeiro não é um caso isolado. Episódios semelhantes ocorreram recentemente no Piauí, em vans coletivas no próprio RJ, e também no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Há ainda o caso internacionalmente noticiado da estudante indiana que morreu depois de igualmente ter sido vítima de um estupro coletivo (sua história, inclusive, resultou no documentário India's Daughter). Todos esses acontecimentos foram veiculados pela imprensa e reverberados nas redes sociais, mas, como regra, continuaram marcados pelo machismo que procura inverter papeis, atribuindo à vítima o papel de algoz de si mesma, culpabilizando um suposto "descuido" na condução de sua própria liberdade.

Manchetes, notícias, comentários e argumentos em que é destacado o fato de a vítima ter ingerido álcool ou algum tipo de droga, de ter usado tal ou qual roupa, de estar sozinha ou acompanhada, de já ter um filho, de possuir vida sexual ativa, e até de ser prostituta, esquecem de levar em consideração que a tipificação do crime de estupro não traz nenhum desses elementos como relevantes.

O Código Penal exige, tão somente, que a pessoa seja constrangida, mediante violência ou grave ameaça, a sexo ou a ato libidinoso. O artigo 213 não faz diferenciação quanto à roupa ou à vida sexual pregressa da vítima. Quem o faz é a sociedade e as suas instituições, ancoradas em uma construção cultural patriarcal, resultando no que se chama de "cultura do estupro". Em verdade, a narrativa da história deveria ser outra: importa saber que há agressores por aí, que deliberadamente ignoram o fato de o estupro ser crime e que desafiam a capacidade punitiva do Estado.

Não é papel da sociedade julgar vítimas, relativizando o crime a partir de elementos alheios a ele, pelo contrário: é esperado que ela passe a se indignar com as constantes violações às liberdades sexuais e direitos reprodutivos das mulheres. Estupro não ocorre apenas nas vielas escuras dos bairros distantes, mas também nas universidades, em transportes públicos e até mesmo dentro de casa.

O crime de estupro vem marcado por uma grande carga de gênero. Ainda que o art. 213, do Código Penal, fale que a vítima é "alguém", observamos que as mulheres são as que mais o temem e são, também, suas maiores vítimas. Nenhuma mulher, rica ou pobre, cis ou trans, branca, negra, ou indígena, hetero ou homossexual, nacional ou imigrante está livre da ameaça de um dia vir a ter seu corpo sexualmente violentado. Os marcadores sociais explicam o maior ou o menor grau de vulnerabilidade da população feminina, mas todos conduzem para a resposta de que o machismo perpassa indistintamente por todos eles.

E se o estupro virou "cultura", traduzida a partir da banalização da desconsideração do gênero feminino nas mais diversas esferas e expressões da vida, como é no caso de uma abuso e violência sexual, bem como na sua revitimização (vítima do crime e vítima da sociedade que a culpa), é importante que não apenas o direito penal e a criminalização atuem para combatê-lo. Devem ser criadas e endossadas medidas efetivas de combate à violência contra mulheres, perpassando, principalmente, por um processo de educação e conscientização de homens e mulheres quanto aos efeitos nocivos da existência do machismo.

Não se trata de ensinar meninas e mulheres a terem mais cautela, zelo e recato, mas sim que meninos e homens sejam educados a respeitá-las, independentemente da circunstância em que se encontrem. Só assim parece ser possível acabar com a banalização dessa violência, por quem a comete e pela sociedade que observa passiva ou culpando a vítima. A educação pode ser a chave para transformação da "cultura do estupro" em uma realidade de respeito e equidade de gêneros.

Lívia Guimarães é pesquisadora da FGV Direito SP e Mestranda em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da USP. Cecília Barretos graduanda em Direito pela Faculdade de Direito da USP

Fonte: Brasil Post

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