1,8 mil moradores de rua existem em Belo Horizonte, mostra última estimativa feita pela prefeitura em 2014
O inverno começa oficialmente no
Brasil apenas na próxima segunda-feira (20), mas, apesar disso, diversas
cidades têm registrado baixas temperaturas ao longo dos últimos dias. A atual
onda de frio pode agradar a milhares de pessoas que se sentem mais confortáveis
com o período. No entanto, também provoca sofrimento àqueles em situações de
vulnerabilidade, entre eles moradores de rua e famílias carentes.
Nesta semana, já ocorreram casos
de hipotermia, quando o corpo perde mais calor do que pode gerar e fica com
temperatura abaixo dos 35ºC, em Brasília, São Paulo e no Rio Grande do Sul.
Pelo menos seis pessoas em situação de rua morreram por ficarem expostas ao
frio por muito tempo.
Em Belo Horizonte, ainda não há
registros de vítimas fatais das baixas temperaturas. Mas termômetros da cidade
apontaram um novo recorde nesta terça-feira (14): as regiões Oeste e Sul da
cidade marcaram 8º e 9ºC entre o fim da madrugada e o início da manhã. Os
números preocupam integrantes de associações e entidades que trabalham com
doações de agasalhos e cobertores, já que, este ano, as ofertas estão abaixo do
esperado e durante o inverno a procura por ajuda aumenta.
Segundo a coordenadora da
Acolhida Solidária Dom Luciano Mendes, que fica na Lagoinha, região Noroeste da
Capital, as doações caíram de forma impressionante nos últimos meses. “Nós
atendemos pelo menos 30 pessoas por dia e a situação está alarmante”, disse à
Bhaz Sirlene Lima Ferreira. “Este ano tem sido atípico e já pode ser
considerado o pior em doações dos últimos 10 anos. Estamos com medo de não
conseguir ajudar nossos irmãos que chegam aqui tremendo de frio”, revela.
Para Sirlene, a falta de doações
pode estar relacionada às taxas de desemprego em Belo Horizonte e na região
metropolitana. A mais recente Pesquisa do Emprego e Desemprego (PED), realizada
pela Fundação João Pinheiro, mostra que o número de pessoas sem ocupação formal
chegou a 8,7% em maio, maior índice dos últimos quatro anos. “Muitas pessoas
têm vergonha de doar roupas usadas e não podendo comprar acabam deixando de
participar das campanhas de doação”, diz.
“O mais importante é que as
pessoas doem, independente de ser uma roupa nova ou velha. Somos todos iguais e
precisamos ter mais amor com o próximo, o que não serve para uma pessoa, de
repente, pode servir para outra. Os estoques estão vazios”, completa. “Um olhar
mais humano para o outro faz muita diferença. É essencial que ajudemos ao
próximo, também não sabemos o dia de amanhã”, finaliza.
Os interessados em ajudar podem
procurar a Acolhida Solidária na rua Além Paraíba, número 208, bairro Lagoinha.
Outras informações a respeito das doações podem ser consultadas por meio do telefone
(31) 3423-2187.
(Sobre)viver nas ruas
O último levantamento sobre
moradores de rua na Capital foi realizado em 2014 pelo Centro de Regional de
Referência em Drogas da Faculdade de Medicina (CRR) da UFMG, em parceira com a
Prefeitura. O estudo mostra que existem 1.827 moradores de rua em BH e que a
maioria são homens. Os dados ainda revelam que a região Centro-Sul é a parte da
cidade onde mais se concentram e que problemas familiares são os principais
motivos que levaram os indivíduos até praças e viadutos.
O Censo da População de Rua
também aponta que 94% das pessoas pensa em deixar as ruas. No entanto, a
maioria não pretende voltar para as casas onde viviam com familiares. Eles
esperam conseguir trabalho e ter acesso à moradia por conta própria, mas 33,5%
não cogitam ficar em abrigos, repúblicas e albergues ofertados pelo poder
público por causa da inflexibilidade de horários e regras.
Ao todo, Belo Horizonte conta com
1.032 vagas para moradores de ruas, onde os ocupantes são obrigados a tomar
banho todos os dias e a dormir por volta das 22h30. Nos locais também não é
permitido fazer sexo, nem usar drogas ou beber.
Na tentativa de atrair os
moradores de rua para os abrigos, repúblicas e albergues, a Prefeitura de Belo
Horizonte estuda mudar a estrutura dos locais. A principal mudança diz respeito
à criação de unidades menores de habitação, com número reduzido de vagas para
que a ressocialização dos indivíduos seja facilitada.
A medida começou a ser avaliada
no ano passado pelo Comitê de Monitoramento e Assessoramento da Política
Municipal para População em Situação de Rua, mas segue em planejamento e ainda
não tem previsão para que saia do papel.
Fonte: http://bhaz.com.br/
Uma madrugada entre o frio das ruas e o calor das relações
São 5h30, e a temperatura em Belo
Horizonte gira em torno de 10°C. Eu estava em uma calçada da rua Aarão Reis,
lugar em que estive durante várias madrugadas que antecederam a de ontem. O que
nunca havia percebido é que, sem os amigos, as bebidas e o embalo da música,
aquele lugar é gelado e carregado de desamparo, vícios e histórias tristes. Em
meio a essa onda de inverno polar, me embrenhei em mais uma noite no baixo
centro, mas, dessa vez, para descobrir como são as madrugadas ao relento e a
vida de quem só tem um cobertor e uma calçada gelada para se abrigar. E uma
coisa eu garanto: passar frio é só para quem é forte.
Uma das primeiras pessoas que vi
ao chegar foi uma jovem, um tanto marrenta, a Cibele, que logo perguntou o que
eu fazia ali. Disse que ia escrever sobre aquela noite e que queria entender
como ela driblava o frio. A resposta foi cheia de humor. “Ah, então eu vou sair
no jornal?”. Logo vi que ela seria minha companheira da madrugada. Aos 28 anos,
ela se mostrou protetora; e em meu momento de catarse, às 5h30, foi quando tive
certeza disso. Após quase uma hora zanzando, ela retornou com uma coberta a
menos para nossa maloca. “Eu dei para aquele cara ali. Ele estava com frio”, se
justifica. Ninguém parece se importar, afinal, cobertores são como cigarros:
nunca se nega a quem precisa.
Assim, solidários e quase em um
ritual familiar, eles resistem às baixas temperaturas. Eu não aguentei a noite
toda com minhas duas blusas de frio. Foi preciso buscar uma coberta e me
aquecer na fogueira de um amigo de Cibele, que chegou a me oferecer seu casaco
mais novo. Houve um momento em que eu estava tão encolhida que um homem me
ofereceu um cobertor. Neguei, afinal, voltaria para minha casa ao fim da
jornada, com direito a café com leite e afago da minha gata. Mas perceber o
sentimento de acolhida foi incrível.
Alternativas. Por volta de 1h,
logo que cheguei ao centro, a temperatura girava em torno de 12°C, e as ruas
estavam quase desertas. Em meio à névoa que colore a noite fria, a paisagem é
dividida entre alguns gatos pingados voltando para suas casas e os verdadeiros
ocupantes daquele território. Separados em vários grupelhos, os moradores da
rua Aarão Reis se ajeitavam para mais uma madrugada gelada. Ainda estavam
acordados, tomando os últimos goles de cachaça ou fumando “brita”, a tal pedra
que mata. Tudo quase em um ritual de iniciação noite adentro.
Por volta de 2h30, pela primeira
vez, o frio apertou. Cibele saiu com um amigo, Aloízio, para fumar – ela riu de
mim quando perguntei do efeito do crack sobre o frio. Marco Aurélio, 49, é quem
divide a “maloca” com ela. Ele diz não gostar da droga, que tanto o agrediu em outros
tempos. Enquanto esperava os colegas, o que aquecia seu peito era uma gorda
dose de cachaça.
Meia hora depois, Cibele retornou
com o companheiro. Com a droga, eles pareciam não perceber a temperatura. Ela
usava um short e apenas um casaco. Ele, de bermuda, chegou a tirar uma das
blusas de frio. Já eram 3h30, e para Marco Aurélio, a saída foi me pedir ajuda
para fazer uma pequena fogueira. Irônico, mas o material que ele me ofereceu
para tal eram páginas antigas deste mesmo jornal.
Cibele e Marco Aurélio se ajudam para minimizar efeitos do
clima
Ele vive na rua há 20 anos, entre
idas e vindas. Soropositivo, homossexual e um dos poucos que não se rendem ao
crack, para ele definir o que os faz viver na rua é difícil. “A rua nos
proporciona drogas e bebida”, lamenta. Ele conta que aquela noite deu para
passar bem, mas que houve momentos no início da semana em que ninguém conseguia
dormir, tamanho era o frio.
E eu senti frio. Tremi, ri, me
emocionei. Mas o mais importante foi perceber que o frio dói, porém a vida sem
ser notado é ainda pior. As pessoas levam comida, cobertas, mas não sei se
olham para aquela parcela da população.
Para Cibele, Bárbara é nome de
gente rara. Mas ela não deixou por menos: “Assim como Cibele. Quantas Cibeles
você conhece?”. Sim, ela é rara. Vive na rua há mais de 17 anos. Tem dois
filhos, de 9 meses e de 10 anos. Seu sonho: voltar para casa. “Comida de mãe é
a melhor coisa do mundo. Lá não uso drogas e sou feliz”. O vício a impede, mas
ela me prometeu, quase ao raiar do dia, que ontem voltaria para Santa Luzia,
sua casa. Mesmo assim, quase quando nos despedíamos, acendeu mais uma brita.
Mesmo com o frio, a jovem nunca
dorme à noite. Tem medo do desconhecido. Tenho certeza que quando fui embora,
às 6h, ela sonhou com sua casa. E eu sonhei com Cibele, com sua força e com o
frio, que acabou passando despercebido frente a ela.
GLOSSÁRIO
Os moradores de rua têm suas
próprias gírias, uma maneira peculiar de se comunicar. Veja aqui alguns
esclarecimentos e curiosidades:
Maloca: casa, cantinho, lugar
onde passam a noite. Amontoados, todos juntos.
Manguear: pedir esmola, pedir
comida ou qualquer coisa.
Farmácia: O “lugar de cura”. A
distribuidora de bebidas onde pegam mais uma dose.
Cachaça: O veneno ou “a do mal”.
Carmem: A favela da Pedreira
Prado Lopes, no bairro Lagoinha, na região Noroeste da capital, onde eles
compram a maior parte da droga.
Viana: faca
Brita: crack
“Vivo na rua porque eu quero.
Tenho liberdade. Faço minhas coisas, com quem eu quiser. E ninguém vai sofrer
por minha causa.” Adilson, morador de rua – ele não revelou a idade
“As primeiras noites de frio
foram muito difíceis. Cheguei a dividir uma coberta com um casal porque não
conseguia dormir.” Marco Aurélio, 49, morador de rua.
Fonte: O Tempo
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