Pesquisas mostram que as
animações legitimam a desigualdade social e dão mais espaço e falas aos
personagens masculinos.
Por Thais Paiva Do Cartae Ducação
Membros da realeza que se
encontram e se apaixonam entre si, empregados obedientes e contentes em servir
aos seus mestres, o drama de um personagem que tem que roubar comida para
sobreviver colocado no mesmo patamar do de alguém que quer escolher suas
próprias roupas.
Segundo um estudo realizado pela
Universidade de Duke, localizada no estado da Carolina do Norte, nos Estados
Unidos, filmes da Disney, Pixar e outros voltados para o público infantil
legitimam a desigualdade social, naturalizando-a como algo benigno e retratando
a riqueza como resultado exclusivo do mérito e valor moral do indivíduo.
Além disso, suas narrativas de
amor, realeza e felicidade têm, em grande maioria, protagonistas que pertencem
às classes mais abastadas, dando pouquíssimo espaço para os personagens
identificados como pobres.
Liderado pela socióloga Jessi
Streib, o estudo analisou 36 filmes infantis para descobrir quais classes
sociais seus personagens representavam e se, ao longo das histórias, ascendiam
ou descendiam na pirâmide social.
Os resultados mostraram que, dos
67 personagens principais, 38 seriam considerados de classe alta ou média alta,
11 pertenceriam à classe trabalhadora e apenas três personagens – ou 4% –
seriam considerados pobres. “Os personagens da classe trabalhadora amam servir
os da classe alta, e os ricos fazem o seu melhor para protegê-los”, conta Jessi
ao Carta Educação.
Também revelaram que os longas
trazem uma imagem idealizada e simplificada das classes sociais, frequentemente
focando nos personagens que são ou conseguem subir para o topo da escada
social, e minimizam as dificuldades econômicas. Exemplo disso é o filme Aladdin,
que coloca no mesmo patamar de dificuldade os obstáculos vivenciados pelo
protagonista sem-teto nas ruas e as lutas da princesa Jasmine pela liberdade de
decidir onde ir e o que vestir.
“A desigualdade existe nos
filmes, só que ela não tem quaisquer implicações negativas. Os personagens
pobres não experimentam vidas particularmente difíceis, e os problemas da
pobreza não são piores do que os problemas dos privilegiados”, explica Jessi.
Outra constatação é que em cerca
de metade dos filmes os personagens se apaixonam por alguém da mesma classe
social. Em A Pequena Sereia, por exemplo, a princesa Ariel conhece e se
apaixona por um humano – claro, um príncipe.
Da mesma forma, Branca de Neve,
uma princesa, se apaixona por um príncipe que ela só encontrou brevemente, ao
passo que os anões da classe trabalhadora com quem interage durante todo o
filme são vistos apenas como colegas. Em outras palavras, para a Disney é
natural para princesas e príncipes encontrar uns aos outros e se casar.
Quando os casamentos são entre
diferentes classes, não há nenhum tipo de conflito. “Fica sugerido que as
classes superiores estão abertas para casar e compartilhar seus recursos com
pessoas de qualquer classe. Uma vez que eles se casam, suas diferenças sociais
não causam qualquer atrito, e eles vivem felizes para sempre”.
Segundo a pesquisadora, embora os
filmes sejam fictícios, sua popularidade entre as crianças faz a constatação
ganhar relevância, pois perpetua em seus imaginários mitos relacionados
àdesigualdade e às lutas de pessoas de classes mais baixas para subir
socialmente. “Na realidade, as pessoas pobres sofrem mais do que as pessoas
ricas, há muito mais pobres do que ricos no mundo, a classe trabalhadora nem
sempre gosta de servir os ricos e eles não fazem sempre o que é melhor para os
pobres”, resume Jessi.
E os estereótipos reforçados
pelos filmes infantis não param por aí. Um outro estudo realizado por duas
linguistas americanas mostrou que, ao contrário do que se pensa, as personagens
femininas vêm perdendo voz nos filmes da Disney.
Carmen Fought, do Pitzer College,
e Karen Eisenhauer, da North Carolina State University, agruparam as princesas
em três grandes eras: Clássica, de Branca de Neve (1937) a A Bela Adormecida
(1959); Renascentista, de A Pequena Sereia (1989) a Mulan (1998); e Nova Era,
de A Princesa e o Sapo (2009) a Frozen (2013). Apesar de todos os filmes serem
protagonizados por mulheres, com exceção de Aladdin, de A Pequena Sereia em
diante, isto é, nos períodos classificados como Renascentista e Nova Era, os
personagens masculinos tiveram, em média, três vezes mais falas do que os
femininos. O fato contrasta com a era Clássica, onde homens e mulheres dividiam
quase o mesmo número de falas.
A constatação é fruto de um outro
grave problema: os personagens homens são a esmagadora maioria nos longas. Em
Frozen (2013), por exemplo, são 32 personagens masculinos contra 17 femininos.
Em Enrolados (2010), versão atual com a personagem Rapunzel, 16 homens ante 4
mulheres e, em A Princesa e o Sapo (2009), 24 contra 7.
Em entrevista ao americano The
Washington Post, Eisenhauer disse que seu palpite para que isso aconteça é que
estamos treinados para pensar no sexo masculino como norma. “Então, quando você
quer acrescentar um lojista, esse lojista é um homem. Ou acrescentar um guarda,
esse guarda também é um homem. Acho que está realmente entranhado em nossa
cultura”, disse.
Uma boa notícia é que o enfoque
das falas na aparência das protagonistas declinou. Se nos filmes da era
Clássica mais de metade dos elogios (55%) se referiam à aparência das
princesas, nos filmes da era Renascentista esse número caiu para 38%.
Na última leva de filmes, a Nova
Era, que inclui A Princesa e o Sapo, Enrolados, Valente e Frozen, as mulheres
são mais elogiadas por suas habilidades e conquistas do que pela sua aparência.
Em média, 40% dos elogios são dedicados às competências, enquanto 22%
referem-se à beleza.
Para a antropóloga Michele
Escoura, autora da tese de mestrado Girando entre Princesas: performances e
contornos de gênero em uma etnografia com crianças, que analisou como as
princesas da Disney influenciavam a visão de feminilidade de meninos e meninas
da pré-escola, é positivo que nos filmes mais recentes o casamento não seja
mais o final feliz. “Em Valente, o foco da Merida é construir sua própria
identidade, essa é a luta que ela trava. Em Frozen, tem o amor fraterno entre
as irmãs que acaba se sobressaindo ao amor romântico. É positivo as crianças
perceberem que existe outras formas de amor que são tão importantes quanto o
romântico”, coloca.
A pesquisadora, entretanto, não
vê muitos avanços quando o escopo é padrão de beleza. “Se, por um lado, essas
personagens estão mostrando que ninguém precisa se casar para ser uma princesa,
de outro, continuam afirmando que é preciso estar dentro de um padrão
específico de beleza”. Em sua larga maioria, as princesas são brancas, magras,
bem vestidas, possuem olhos claros, entre outras características socialmente
valorizadas.
Michele pontua que não é que a
Disney invente esse ideal de feminilidade. O que ela faz é traduzir um padrão
que existe na sociedade para determinada faixa etária. “Se você olhar as
novelas, revistas femininas, vai encontrar o mesmo padrão. Então, pelos filmes
as crianças muito novas já acessam regras que são compartilhadas por todos
nós”.
Além disso, é preciso lembrar que
mesmo as personagens mais “empoderadas” são fruto de uma demanda social. “A
Disney não está fazendo Valente e Frozen porque é feminista. Temos de lembrar
que é uma empresa que tem interesses comerciais, de bilheteria. As mulheres
mudaram e estão mudando e de alguma maneira a indústria do cinema precisa
acompanhar essas transformação para conseguir manter alguma grau de realismo
para se aproximar do seu novo público”.
Em outras palavras, a Cinderela
da década de 50, conformada em limpar a casa e obedecer ordens sem questionar,
à espera de um homem que a salve, felizmente é a imagem de uma mulher cada vez
menos identificável para as novas gerações.
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