Um artigo sobre a esposa do
vice-presidente Michel Temer, Marcela Temer, publicado pela revista
"Veja" e intitulado "Bela, recatada e do lar", provocou uma
avalanche de memes e reações na internet. Milhares de mulheres postaram fotos
suas em momentos de diversão, ironizando o tom tradicionalista do perfil e
afirmando que Marcela não as representaria.
Mas para uma das principais
pesquisadoras da história das mulheres brasileiras, a historiadora Mary Del
Priore, as críticas - que, segundo ela, seriam originárias em sua maioria das
capitais e do Sudeste do país - refletem uma visão "intolerante"
sobre o modo de vida de uma parcela significativa da população.
Del Priore diz que Marcela Temer
representa parte de um Brasil que muitos preferem deixar "invisível".
A entrevista é de Néli Pereira, publicada por BBC Brasil, 21-04-2016. Eis a
entrevista.
A descrição que a revista
"Veja" faz de Marcela Temer pode ser compreendida como um reflexo do
ideal da mulher no Brasil ou reflete o machismo ainda presente na nossa
sociedade?
Eu diria que a história é feita
de permanências e rupturas. Essa adjetivação a gente encontra nos memorialistas
de 20 e 30. Nas memórias do historiador Pedro Calmón, um dos maiores que o
Brasil já teve, ele escreve que escolheu a "mulher da vida dele" exatamente
com base nessas características: ela deveria ser bela, recatada e do lar.
Aliás, beleza nem era tão
importante nessa época, passou a ser uma características determinante nos
séculos 20 e 21. Mas recato e ser uma boa dona de casa acompanhou a história da
mulher brasileira desde sempre.
No século 19, ser dona de casa
era uma característica importante, voltar-se para as atividades domésticas,
estar ocupada dentro de casa, essa é uma permanência que está presente até
hoje. E é óbvio que tivemos rupturas, especialmente na década de 70, com a
chegada da pílula anticoncepcional, a inserção da mulher no mercado de
trabalho, o que faz determinadas mulheres que participaram dessas rupturas
reagirem a esse modelo de permanência.
Mas o que eu acho importante
insistir é que o Brasil não é o mesmo. O Brasil das capitais, do Rio de
Janeiro, de São Paulo, onde você tem o movimento feminista organizado, mulheres
em cargos de comando, mulheres formadas pela universidade – ele não é o mesmo
do interior. Em muitas localidades brasileiras, sobretudo no interior do
Brasil, onde ainda vive 20% da nossa população, adjetivos como esses fazem a
diferença e ainda são considerados características importantes para a escolha
do cônjuge.
E a reação que isso provocou na
internet? Uma avalanche de memes sobre essas três características, eventos que
ironizam essa classificação, mulheres postando fotos em bares, se divertindo
como se elas não estivessem representadas nessa tríade "bela, recatada e
do lar"- o que pode explicar isso?
Isso é o fato de a internet ter
ganhado na sociedade brasileira o lugar de praça pública, e não só para este
assunto, mas para qualquer tema. As redes, os grupos organizados que estão
presentes ali, todos eles têm voz nessa grande praça pública. Isso faz parte da
realidade dos tempos de hoje, da forma como nos comunicamos, mas é bom pensar
que quando falamos em "mulher brasileira", ela é não é uma, mas
complexa, há mulheres com formações diversas.
Não vamos esquecer que nossos
congressistas, quando foram votar pelo impeachment, evocaram a família, a
Igreja – então esse Brasil, que não está tão visível e que, do meu ponto de
vista, se constitui numa espécie de buraco negro com vozes discordantes, que
nunca ouvimos, é esse Brasil que se vê representado em mulheres que são belas,
puras e recatadas.
Então o que você está dizendo é
que a "bela, recatada e do lar" representa parte da população, e,
assim, também representa a mulher brasileira...
Eu acho que representa um Brasil
que não está visível, que não está nas redes, que não está vinculado aos
movimentos feministas, mas isso é parte do nosso país. Um país que as vezes a
gente não gosta de ver, como tantos jornalistas sublinharam na votação de
domingo: é um Brasil feio? É. É um Brasil deseducado? É. Um Brasil com
vocabulário selvagem? É. Nós que temos o hábito de olhar só para os nossos
umbigos e achar que o Brasil é só o Sudeste do país e as grandes cidades.
Você ressalta que há mulheres que
ainda desejam essa classificação, orbitar em volta do marido, mesmo com as
conquistas do mercado de trabalho, e há uma sensação por parte de um grupo de
que isso não seria justo, ou adequado. Isso é visto como um retrocesso, não?
Pelo menos é o que reflete essa reação em peso na internet à tríade "bela,
recatada e do lar"...
Sem dúvida, inclusive nos Estados
Unidos, onde você tem movimentos feministas com tantas nuances, você teve uma
reação de mulheres nos anos 90 que deixaram as grandes empresas, abandonaram
suas carreiras, e que tem prazer de estar em casa, ser donas de casa, e cuidar
dos filhos, se dedicar à vida doméstica. Essa é uma opção.
Eu digo sempre que a complexidade
da subjetividade feminina implica em você ser santa e prostituta ao mesmo
tempo, da rua e da casa ao mesmo tempo, em ter a carreira e uma realização
doméstica.
Aliás, eu acho uma intolerância
total esse tipo de crítica. O certo é respeitar. Se essa senhora quer viver
dessa forma e faz feliz a si própria e ao seu marido, melhor para ela. Mas essa
necessidade de querer que as mulheres se enquadrem numa tipologia de mulheres
bem-sucedidas, independentes, que fazem o que querem, deitam com quem querem ou
então do seu oposto, como uma santa, em casa – essas tipologias caíram por
terra.
As mulheres gostam mesmo de
representar todos os papéis possíveis quando elas têm a oportunidade. Eu digo
sempre que a complexidade da subjetividade feminina implica em você ser santa e
prostituta ao mesmo tempo, da rua e da casa ao mesmo tempo, em ter a carreira e
uma realização doméstica. O grande sonho parece ser dar conta de todos esses
papeis. Portanto, me parece intolerante essa reação crítica a uma pessoa que
escolheu seguir esse caminho.
As mulheres representam quase 60%
do eleitorado, no entanto, segundo dados da ONU de 2014, apenas 11% dos
prefeitos, 8,7% dos deputados e 7,9% dos governadores são mulheres. O mundo da
política ainda é dominado pelo machismo?
Eu acho que a preeminência
masculina poderia nos fazer acreditar que somos um país patriarcal também na
vida política. Mas eu gostaria de lembrar as inúmeras mulheres que estão na
política brasileira que estão envolvidas com aqueles comportamentos que
identificamos em políticos brasileiros e que nós não desejamos.
Muitas – e aí não estou falando
da presidente, que é tão proba, e cujas contas estão limpas – roubaram, meteram
a mão igual, há milhares de escândalos envolvendo mulheres. Então não vamos
fazer das saias um atestado de pureza na política brasileira. Se for para ter
mais cadeiras no Congresso para se comportar exatamente com os políticos que
nós vemos, muito obrigada, vamos ficar na mesa. Precisa haver uma mudança
total: política e da Constituição.
Como foi sua reação pessoal, de mulher, à manchete da "Veja"?
Num país democrático, todos os
veículos de comunicação representam grupos diversos. Você tem os leitores de
Veja e de "Carta Capital", ouvintes e leitores da BBC e de rádios
evangélicas, não podemos ter homogeneidade.
Se a revista vai vender mais por
conta dessa manchete, o problema é dela. O que eu acho importante é a
diversidade, porque ela nos fará mais tolerante em relação àquelas coisas que
ainda nos tornam um país de selvagens: a violência contra mulher, a homofobia.
Acho que temos que progredir não
reagindo de maneira brutal com relação a opiniões que são diversas das nossas.
Faz parte do mundo contemporâneo termos opiniões diferentes, a complexidade
desse Brasil são os "brasis" que esse país contém.
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