No terceiro domingo de Páscoa do
ciclo do Ano A costuma-se ler, na liturgia dominical da Igreja Católica Romana,
o trecho do evangelho de Lucas, conhecido como "aparição de Jesus aos
discípulos de Emaús” (Lc 24,13-35). Quem seriam esses discípulos?
O texto original grego não diz. Aliás, nem usa
o termo "discípulos” (mathetàs), mas a expressão grega "dúo éx
autôn”, que a versão ecumênica da Bíblia traduz como "dois dentre eles”.
Poderia ser um casal? Por que não? Tenho comigo uma reprodução de um lindo
mural da cena de Emaús pintado pela irmã scalabriniana Elda Broilo, na qual ela
representa estes dois como sendo um casal, acompanhado inclusive de uma
criancinha. Esta leitura seria totalmente legítima e normal, uma vez que,
segundo o próprio Lucas, no grupo de discípulos de Jesus havia também
discípulas (Lc 8,1-3), que não somente o acompanhavam, mas sustentavam o grupo
com seus bens.
Tudo seria tranquilo, se não
fosse o machismo imperante nas Igrejas, de modo particular na Igreja Católica
Romana. Lembro-me bem que em 2002, quando a CNBB completava 50 anos, durante a
assembleia geral dos bispos, fomos no terceiro domingo de Páscoa para uma
celebração eucarística no santuário de Aparecida. A comissão litúrgica da CNBB
preparou uma encenação desse trecho do evangelho e, na encenação, colocou um
discípulo e uma discípula (um casal). Isso despertou a ira de muitos bispos que
apresentaram veementes protestos junto ao bispo responsável pela Comissão de
Liturgia.
Para alguns desses bispos a
encenação não era ortodoxa porque abria brechas para a possibilidade de se
acreditar que também mulheres podiam receber os ministérios ordenados. Ora, a
interpretação, além de ser esdrúxula e descabida, empobrece o próprio texto
bíblico, uma vez que a intenção de Lucas não foi acentuar a questão dos
ministérios ordenados. Lucas quis apenas mostrar a crise provocada nos
discípulos pelo escândalo da cruz de Jesus, levando-os inclusive à perda da fé;
fé que depois é recuperada e revigorada quando o Senhor ressuscitado parte e
reparte o pão diante deles. Toda interpretação que for além, é mera fantasia e
tentativa de forçar o texto a dizer o que ele nunca quis dizer.
Esse episódio, acontecido em
Aparecida, evidencia a necessidade de se rever a ótica machista, através da
qual se continua lendo a Bíblia para excluir as mulheres de funções importantes
na Igreja, inclusive o seu acesso a algumas coordenações de organismos
eclesiásticos, de modo particular o acesso às instâncias de poder e de decisão
e aos ministérios ordenados. Costuma-se justificar a proibição às mulheres com
o argumento de que Jesus era do sexo masculino. E como algumas funções, como os
ministérios ordenados, implicam uma dimensão sacramental, no sentido de que o
ministro ordenado age "in persona Christi”, as mulheres não poderiam
exercer de modo completo esta sacramentalidade.
Ora, esse tipo de argumento não
pode ser mais aceito porque o Segundo Testamento, em nenhum momento, realça a
importância disso. O que o Segundo Testamento considera relevante, sacramental,
em primeiro lugar, é o fato de que o Filho de Deus se tornou humano, igual a
nós em tudo, exceto no pecado (Hb 4,15). Os textos bíblicos não ressaltam o
fato de que o Filho se tornou um humano do sexo masculino, mas que se tornou
totalmente humano.
O apóstolo Paulo deixa isso bem
claro quando afirma que o fato marcante que está na origem do cristianismo não
é que Cristo tenha nascido varão, mas que na plenitude dos tempos, ou seja, na
hora certa, Deus nos enviou o seu Filho nascido de mulher para pagar a nossa alforria
e realizar a nossa libertação (Gl 4,4-5). Esses detalhes podem passar
despercebidos hoje, mas eram sumamente revolucionários no contexto cultural
desta carta paulina, no qual predominavam o machismo e a escravidão. Numa época
e numa cultura em que a genealogia da pessoa se fazia através de seus
ancestrais masculinos, afirmar que Deus mandou o seu Filho "nascido de
mulher” arrebentava por completo tal concepção machista. Paulo declara que no
cristianismo não conta mais a condição sexuada da pessoa, o ser homem ou
mulher, mas a inserção em Cristo (Gl 3, 28). Por isso somos todos e todas
iguais, não no sentido de que o direito à diferença foi abolido, mas no sentido
que todos e todas somos herdeiros ou herdeiras da mesma promessa (Gl 3,29).
Logo, impedir a mulher de ter acesso a determinados espaços nas Igrejas com uma
justificativa sexista é um absurdo total do ponto de vista bíblico.
Neste sentido é que deve ser
entendida a expressão dos Evangelhos, que costumamos traduzir em português com
os termos "o Filho do Homem” (em grego: ‘o uiós toú anthropos). O termo
"anthropos” em grego não significa o ser humano do sexo masculino, mas a
humanidade, o ser humano em geral. Quando o Segundo Testamento quer falar do
varão, da pessoa do sexo masculino, do macho, usa as palavras gregas andros (At
17,12) e aner (Mt 1,19).
O segundo elemento importante,
destacado pelos escritos neotestamentários, é que este "Filho da
humanidade” decidiu assumir plenamente uma das mais profundas características
dessa humanidade: a fragilidade, a fraqueza. Para o Segundo Testamento o que
conta não é que Jesus seja macho, mas que é plenamente humano a ponto de
abraçar também a nossa condição de seres frágeis e fragilizados. Coisa que,
aliás, choca a mentalidade machista, segundo a qual "homem que é homem não
chora”, ou seja, macho não demonstra fraqueza. Isso fica bem evidente quando o
Segundo Testamento afirma que o Filho de Deus se manifestou e se fez sárx (Jo
1,14; 1Tm 3,16), termo grego que costuma ser traduzido com a palavra "carne”,
mas cujo sentido verdadeiro é o de fragilidade, de fraqueza humana.
Por fim, o terceiro aspecto
evidenciado pela Bíblia cristã é o fato de que este Filho de Deus plenamente
humanizado assume a fragilidade humana na sua condição mais extrema que é o
despojamento, o rebaixamento humilhante, aceitando viver como escravo, morrer e
morrer da pior maneira possível para aquela época (Fl 2,6-8). Essa disposição
livre e soberana de Jesus de aceitar a condição de profunda humilhação,
expressa pelo termo grego kénosis (Fl 2,7), é que permite a Jesus cumprir a
vontade do Pai e realizar a libertação do universo e da humanidade. Não é a sua
condição de macho, de varão, que lhe dá essa possibilidade, mas a sua
disposição em assumir a condição humana também neste aspecto.
Fica, pois, bem evidente que não
se pode fundamentar a exclusão das mulheres das funções de poder e de decisão e
dos ministérios ordenados com a desculpa de que Jesus era do sexo masculino e
que, por isso, elas não estariam em condições de agir "in persona
Christi”. Também não vale aquelas desculpas, como a de que Jesus não teria
permitido que mulheres participassem de sua última ceia. Estudos sérios, que
levam em conta o contexto da narrativa e o contexto cultural da época, não
permitem chegar a tal conclusão. Seria simplesmente estúpido e ridículo que
Jesus, naquele momento significativo de sua existência e de seu ministério,
tivesse impedido as mulheres, que o acompanhavam desde a Galileia (Lc 8,1-3) e
que estavam com ele em Jerusalém no momento de sua crucifixão e sepultura (Lc
24,10; Mc 15,40), de participar de sua última ceia.
Não se trata de dar mais poderes
às mulheres, mas de, a partir da dignidade que vem do Batismo, abrir mais
espaços para elas nas Igrejas, de modo que possam exercer serviços eclesiais
que hoje estão reservados aos varões. Trata-se de reparar uma injustiça que
fere a dignidade cristã.
Havemos, portanto, de concluir
que a ampliação dos espaços da Igreja para uma presença feminina mais incisiva,
como pediu recentemente o papa Francisco (EG, 103), só acontecerá de fato
quando rompermos a barreira da exclusão das mulheres dos ministérios ordenados
e das funções de direção e de decisão. Enquanto isso não acontecer estaremos
apenas "dourando a pílula” ou tentando tapar o sol com uma peneira, uma
vez que todos os outros espaços já estão sendo ocupados pelas mulheres e sem
elas as Igrejas deixariam de existir. Mas para avançarmos nesta direção é
preciso deixar de fazer leitura machista da Bíblia. É preciso parar de fazer
leitura fundamentalista dos textos sagrados e aceitar, com mais serenidade e
verdade, as implicações de uma correta e honesta hermenêutica.
[José Lisboa Moreira de Oliveira
é filósofo, teólogo, escritor e professor universitário]
Fonte: Adital
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