Elas são palco de uma segunda
violência contra as vítimas, com policiais despreparados, um descaso imenso e
um tom quase de deboche.
por Clara Averbuck
Uma amiga virou estatística e foi
agredida pelo companheiro. Pensei: direto pra Delegacia da Mulher, lá ela vai
ter o acolhimento necessário pra essa situação tão delicada. E foi aí que comecei
a descobrir que essa delegacia não é NADA do que a gente imagina. Relatarei,
pois, o suplício que foi para conseguir fazer um simples boletim de ocorrência.
Que dobrem a língua aqueles que dizem à mulher agredida que é “só ir à
Delegacia da Mulher e fazer um B.O.”. Passamos pelo inferno, colegas, um
inferno que eu não só não vou esquecer como vou fazer tudo que estiver em meu
poder e além para que esse panorama mude. Este post é o primeiro de uma série
em que tratarei do assunto.
Começa pelo fato de que a DDM não
abre nos fins de semana. Manda avisar os agressores que só pode bater em dia de
semana, viu? Mas a real é que não faz diferença. Eu achava que faria, achava
que não seria como uma delegacia comum, onde sabidamente muitos policiais fazem
pouco caso com abuso, culpam as vítimas de estupro, enfim, toda aquela coisa da
cultura machista que já sabemos como funciona.
Nada me tira da cabeça que aquele
lugar foi feito para que as mulheres desistam de fazer denúncia. Havia um homem
na triagem, um investigador de meia idade que olhou bem na nossa cara e
perguntou: mas o que aconteceu? Ali mesmo na recepção, sem nenhum acolhimento,
nenhum tato, bem alto, sem nenhuma privacidade. Só de ficar ali sentada fiquei
sabendo das histórias das mulheres que chegavam lá e que encolhiam cada vez que
ouviam essa pergunta. Sei que o procedimento padrão de uma delegacia é esse,
mas em uma DDM deveria ser diferente, a mulher não vai lá relatar roubo de
celular ou furto de carro; é uma delegacia voltada exclusivamente a tratar da
violência contra a mulher, não é?
Deveria ser. O que eu vi
acontecer lá foi uma segunda violência contra as vítimas, policiais
despreparados, um descaso imenso e um tom quase de deboche quando comentavam
outros casos.
Havia lá um grupo de bolivianas
esperando pra fazer B.O., pois uma delas estava sendo ameaçada pelo marido, que
dizia que ia meter uma bala na cabeça dela e levar o filho pequeno, de um ano e
meio, embora do País. O homem estava ameaçando também as tias e primas dela,
todas presentes na delegacia. Ocorre que a escrivã não falava espanhol e não
tinha NENHUMA paciência pra ouvir a mulher, apenas fazia “HEIN?” com cara de
asco. Asco. Olhava pra o menininho, o filho, um bebê, com asco. Minha amiga,
que fala espanhol, tentou intermediar a conversa, e a boliviana ameaçada contou
a ela que já tinha estado outra vez lá, mas a escrivã tinha se recusado a fazer
o B.O. pois não quis nem se esforçar pra entender.
Esperamos mais de uma hora nesse
primeiro dia e tivemos que ir embora, pois precisávamos buscar o filho da minha
amiga na creche.
Voltamos no dia seguinte e, ao
chegar lá, senti um alívio: agora eram duas mulheres na recepção da DDM.
Empatia, finalmente, pensei. Mal sabia eu que seria ainda pior do que ser
atendida por um homem. A investigadora também não tinha um pingo de tato, assim
como a escrivã.
Minha amiga estava nervosa e
fragilizada, como estão todas as mulheres que procuram uma DDM. Era nossa
terceira vez lá, ela estava ansiosa e a investigadora resolveu que o tom dela
não era o correto para ser usado, já criando um atrito totalmente desnecessário
em uma situação delicada.
Essa mesma investigadora e uma
outra mulher lá de dentro resolveram que era ok falar mal de bolivianos,
precisamente: “Boliviano é uma raça desgraçada” e outros impropérios. Até onde
sei, xenofobia é crime, né não? E lá estava uma investigadora da polícia
cometendo este crime.
O pesadelo seguiu e minha amiga
entrou para dar o depoimento. Acredito que jamais vi uma mulher ser tão
maltratada por alguém que deveria ajudá-la. Eu não pude entrar com ela na sala,
mas ouvi de fora; a escrivã chegou a dizer que a agressão que o sujeito cometeu
não era crime. Mesmo com ela conhecendo a lei e batendo o pé, a escrivã se
recusava a escrever exatamente o que minha amiga relatava, mudando os fatos e
suavizando o ocorrido e ainda teve a manha de falar que as mulheres que “juntam
os trapos” com um homem com histórico de agressor têm culpa pelas agressões que
seguem. Ela teve que chamar a delegada na sala para conseguir que o B.O. fosse
feito direito.
Eis que ocorreu uma coincidência
que só me deixou mais bolada e mais puta: uma conhecida entrou na delegacia e,
por sua vez, era conhecida da delegada. Ela disse: você conhece a Clara? Ela é
uma das maiores blogueiras de direitos das mulheres do Brasil.
E aí tudo mudou, minha gente. Foi
um tal de "o que você precisa, está tudo bem, foram bem atendidas? Têm
alguma dúvida, precisam de alguma coisa?".
Quis dizer: preciso sim, Doutora
Delegada: preciso que vocês parem de tratar as mulheres com descaso, que parem
de fazê-las passar por uma segunda violência. Preciso que suas escrivãs
conheçam a lei, que não culpem as mulheres pela violência que sofrem, que não
constranjam essas mulheres fazendo-as relatar suas histórias sem nenhuma privacidade,
na frente de todo mundo, e eventualmente para homens, que não deveriam sequer
estar nessa delegacia pra começo de conversa.
Contei sobre esse tratamento no
Facebook e muitas das minhas amigas tinham histórias similares à nossa. Resolvi
pedir depoimentos anônimos para escrever um texto e foi como abrir a caixa de
pandora do horror da ineficiência policial: é uma história pior do que a outra.
Não foi uma, duas, ou três. Até
agora tenho 27 depoimentos de mulheres que foram tratadas com descaso na
delegacia que deveria orientar, acolher e
ajudar punir quem comete um crime. Em praticamente todos os casos os
policiais tentam dissuadir a vítima de fazer B.O., dizem que não vai dar em
nada, e questionam como se a culpada fosse a vítima, redigem os boletins de
ocorrência como bem entendem e chegam ao cúmulo, como foi o nosso caso, de
distorcer a Lei Maria da Penha para que a mulher agredida ache que seu caso não
se encaixa ali.
Isso NÃO PODE ocorrer. Não pode.
Não pode em lugar algum e menos ainda em um País onde a violência contra a
mulher tem dados tão alarmantes que existe uma delegacia só para atender esses
casos. Mas não adianta apenas existir, tem que funcionar, e o que presenciei
foi apenas ineficiência e descaso para com as mulheres que deveriam estar sendo
acolhidas.
Não “é assim mesmo”. Não pode ser
e tem que mudar.
Fonte: blog Lugar de Mulher.
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