sexta-feira, 24 de abril de 2015

Porque a Igreja aceitará a “teoria do gênero”

"A sexualidade (natureza) e o gênero (cultura) não são sempre necessariamente a mesma coisa: se para a maioria dos seres humanos vale “sexo = gênero”, para outros sexo e gênero são diversos, e isto porque o ser humano é um fenômeno complexo feito de um corpo biológico, de uma psique e de uma dimensão espiritual, cujas relações não são sempre lineares", escreve Vito Mancuso, teólogo italiano.

A tradução é de Benno Dischinger.

Segundo o teólogo italiano, "há homens que têm um corpo masculino e uma psique masculina e são atraídos pelas mulheres: há outros que têm um corpo masculino e uma psique masculina e são atraídos pelos homens; há ainda outros que têm um corpo masculino e uma psique feminina de modo que interiormente não se sentem homens, mas mulheres; e os exemplos poderiam continuar" E pergunta: "Agora, a questão é: como definir as pessoas que entram nas últimas duas categorias? Enfermos? Pecadores? Criminosos?"

"Vivemos a última revolução social surgida no Ocidente, em prossecução do processo de legitimação das minorias oprimidas - conclui Mancuso. Esta revolução faz compreender que a sexualidade não é encerrada somente pela identidade biológica, mas atende também à psique e ao espírito. Por isso ela não é um destino, mas uma chamada à liberdade e à responsabilidade que todo ser humano deve forjar de si, fazendo as contas com a irrepetível singularidade com a qual veio ao mundo (para os que creem: criado por Deus)".


Eis o artigo.

Não obstante as duras palavras das hierarquias católicas, o Papa compreendeu que um dia a Igreja chegará a aceitar a substância daquilo que ela define como “teoria de gênero” e que hoje tanto combate. Qual é o autêntico questionamento de tal suposta teoria? E por que a Igreja chegará a aceitar sua substância? Convém, antes de tudo, esclarecer que a teoria de gênero, nos termos em que dela fala a Igreja católica, é uma construção polêmica que na realidade não existe.

Na audiência de 15 de abril o Papa Francisco declarou: “Eu me pergunto se a assim dita teoria de gênero não seja também expressão de uma frustração e de uma resignação, que visa cancelar a diferença sexual porque não sabe mais confrontar-se com ela. Sim, corremos o risco de dar um passo para trás. A remoção da diferença é, de fato, o problema, e não a solução”.

Segundo estas palavras, que retomam quanto foi declarado por outros expoentes das hierarquias católicas, haveria uma teoria dita precisamente teoria de gênero que “visa eliminar a diferença sexual”. Mas, existe verdadeiramente algo do gênero? Quem, afinal, pretende propor tal “remoção da diferença”?

Além dos particulares episódios ligados ao mundo do espetáculo onde se faz de tudo para emergir, na realidade ninguém no mundo LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transgênero) pretende abolir o dado do masculino e do feminino. Sustenta-se, antes, que um ser humano, no que diz respeito à sua sexualidade, não é definido unicamente pelo corpo biológico. A sexualidade, de fato, além de ser um dado biológico, é também um constructo social, e este constructo social dito “gênero” pode chegar, para alguns, a ser diverso da nativa identidade sexual e representar, portanto, uma espécie de jaula.

A sexualidade (natureza) e o gênero (cultura) não são sempre necessariamente a mesma coisa: se para a maioria dos seres humanos vale “sexo = gênero”, para outros sexo e gênero são diversos, e isto porque o ser humano é um fenômeno complexo feito de um corpo biológico, de uma psique e de uma dimensão espiritual, cujas relações não são sempre lineares. Há homens que têm um corpo masculino e uma psique masculina e são atraídos pelas mulheres: há outros que têm um corpo masculino e uma psique masculina e são atraídos pelos homens; há ainda outros que têm um corpo masculino e uma psique feminina de modo que interiormente não se sentem homens, mas mulheres; e os exemplos poderiam continuar. Agora, a questão é: como definir as pessoas que entram nas últimas duas categorias? Enfermos? Pecadores? Criminosos?

Um tempo se pensava assim e se agia consequentemente. Hoje, no entanto, a consciência sente que era um erro tal condenação e o próprio Papa aos 28 de julho de 2013 declarou: “Se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la”? É preciso antes compreender de que modo estas pessoas determinam sua existência para viverem felizes. Nesta perspectiva, ninguém quer cancelar o masculino e o feminino, mas somente acrescentar novos modos de ser masculino e de ser feminino aos modelos tradicionais. Trata-se de ampliar as identidades, prefigurando novos constructos sociais mais respeitosos das diversas peculiaridades, fazendo, assim, que todos possam chegar àquela harmonia entre sexo e gênero que está na base de uma vida feliz.

A Igreja se opõe hoje duramente a esta posição, mas chegará a aceitá-la. Sobre o que fundamento a minha tese?

No século dezessete ocorreu a revolução astronômica à qual a Igreja se opôs constringindo o ancião Galileu a abjurar de joelhos à teoria copernicana: depois a Igreja mudou de ideia, adaptando-se à realidade.

A seguir, a revolução política levou os povos a determinar laicamente a própria forma de governo e a Igreja se opôs condenando em particular o Estado italiano: depois a Igreja mudou de ideia, adaptando-se à realidade.

Em seguida, a revolução social inaugurou direitos humanos como o sufrágio universal, a paridade homem-mulher, a instrução estatal obrigatória, a liberdade religiosa, contra o que também se insurgiu a oposição eclesiástica: a qual depois mudou de ideia, adaptando-se à realidade.

Contextualmente a revolução biológica darwiniana mostrava que as espécies são fruto de uma longa evolução e não de uma criação pontual: a Igreja, antes acérrima inimiga, depois mudou de ideia, adaptando-se à realidade.

A Igreja mudou de ideia também no terreno propriamente religioso. A revolução de Lutero era antes uma heresia, enquanto hoje é outra modalidade de viver o Evangelho. Os hebreus passaram de “pérfidos judeus” a “irmãos mais velhos”. Pio IX condenava a ideia que “os homens, no culto de qualquer religião, podem encontrar a via da salvação eterna”; hoje, ao invés, ela é amplamente aceita pela Igreja que não defende mais a condenação dos não católicos.

Análogas mudanças se referem à interpretação da Bíblia, à pena de morte e, em geral, ao uso da violência, primeiro considerada de todo legítima, vejam-se as cruzadas e as condenações á fogueira de homens e de mulheres.

A constatação de tais mudanças dá fastio à mentalidade eclesiástica, levada a considerar as próprias ideias como doutrina “como doutrina imutável e infalível”, mas se trata de inegáveis verdades históricas.

A Igreja é, portanto, uma hábil transformista? Não, é a lógica da vida que é assim e que transforma cada coisa. Na vida, o que não muda morre. Se a Igreja, após dois mil anos, ainda está aqui, é porque mudou amplamente. Em geral para melhor, pondo-se em condição de ser sempre mais “hospital de campo”, como a quer o Papa Francisco, isto é, inclinada sobre as feridas dos seres humanos para curar-lhes amoravelmente as feridas.

Hoje vivemos na encruzilhada entre duas revoluções: a revolução sexual e a revolução biotecnológica. A revolução sexual levou os homossexuais a definir-se “gays”, isto é, felizes de serem assim, assumindo a própria condição não mais como triste destino ou doença ou culpa moral, mas como condição natural do seu ser no mundo. A revolução biotecnológica permite a alguns seres humanos, para os quais a sexualidade é diversa do gênero, de transitarem num gênero mais condizente com sua verdadeira identidade sexual, dando vida ao fenômeno dito transgênero.

Ou seja, vivemos a última revolução social surgida no Ocidente, em prossecução do processo de legitimação das minorias oprimidas. Esta revolução faz compreender que a sexualidade não é encerrada somente pela identidade biológica, mas atende também à psique e ao espírito. Por isso ela não é um destino, mas uma chamada à liberdade e à responsabilidade que todo ser humano deve forjar de si, fazendo as contas com a irrepetível singularidade com a qual veio ao mundo (para os que creem: criado por Deus).

Outrora, a ideia de estado laico não confessional e de liberdade de consciência em matéria religiosa era considerada blasfêmia na Igreja católica: hoje ela compreende que a laicidade do Estado é um formidável ponto de força da sociedade e se declara a favor da liberdade de consciência em matéria religiosa. Hoje à Igreja católica parece blasfêmia uma família diversa daquela tradicional: numa época não distante ela entenderá que a pluralidades dos amores humanos é outro ponto de força da nossa sociedade, enquanto capaz de acolher todos.

Fonte: Ihu

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