A política nacional de combate a
esse crime está sofrendo pesados ataques de grupos que perdem dinheiro com ela.
E apenas parte do governo federal está se dedicando a protege-la. Há três
projetos tramitando no Congresso Nacional para reduzir o conceito de trabalho
escravo.
Por Leonardo Sakamoto
Em tempos de polarização
infantil, a política brasileira de combate ao trabalho escravo, que completa
duas décadas neste ano, é um alento.
Criada por Fernando Henrique (que
teve a coragem de reconhecer diante das Nações Unidas a persistência de formas
contemporâneas de escravidão em nosso território), elevada à condição de
exemplo internacional por Lula (que ampliou os mecanismos de combate a esse
crime) e mantida por Dilma, ela tem sido uma política de Estado e não de
governo.
Tanto que já tivemos cenas de
salutar competição positiva. Em 2012, São Paulo criou uma lei para banir, por
dez anos, empresas que venham a ser condenadas por esse crime. O projeto partiu
de um deputado do PSDB.
No ano passado, finalmente foi
aprovada no Congresso Nacional a emenda constituição número 81, que prevê o
confisco de propriedades em que trabalho escravo for encontrado e sua
destinação à reforma agrária ou ao uso habitacional urbano. O projeto original
havia sido proposto por um deputado do PT.
Quase 50 mil pessoas foram
resgatadas desde 1995. Milhões de reais em condenações e acordos trabalhistas
foram pagos. Centenas de empresas aderiram ao Pacto Nacional pela Erradicação
do Trabalho Escravo, comprometendo-se a cortar negócios com que utiliza esse
tipo de crime. Temos um Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo,
além de estados e municípios engajados em planos regionais. O problema deixou
de ser visto apenas como algo do interior da Amazônia e ações de resgate
começarem a ser realizadas em oficinas de costura e canteiros de obra no centro
de grandes cidades. Programas de prevenção passaram a ser implementados
envolvendo de jovens que ainda não estão em idade laboral até adultos
resgatados.
O Brasil é visto como referência
nos fóruns internacionais e no sistema das Nações Unidas por conta disso.
Então, guardemos bem esse momento
na memória. Porque, a menos que algo mude e rápido, a vitrine irá se tornar
vidraça.
Porque a política nacional de
combate a esse crime está sofrendo pesados ataques de grupos que perdem
dinheiro com ela. E apenas parte do governo federal está se dedicando a
protege-la.
Há três projetos tramitando no
Congresso Nacional para reduzir o conceito de trabalho escravo.
Hoje, são quatro elementos que
podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado, servidão por
dívida, condições degradantes (trabalho sem dignidade alguma, que põe em rico a
saúda e a vida do trabalhador) e jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao
completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em
risco sua vida).
A bancada ruralista quer retirar
as condições degradantes e a jornada exaustiva. Dizem que é difícil conceituar
o que sejam esses elementos isso, o que gera “insegurança jurídica''.
Ao mesmo tempo, a “lista suja''
do trabalho escravo foi suspensa em decisão do ministro Ricardo Lewandowski, do
Supremo Tribunal Federal, no apagar das luzes do ano passado.
Desde 2003, esse cadastro público
que reúne empregadores flagrados com esse crime pelo Ministério do Trabalho e
Emprego tem sido uma das maiores ferramentas para o combate à escravidão. Ele
garante ao mercado transparência e informações para que empresas nacionais e
internacionais possam gerenciar os riscos de seu negócio. E, consequentemente,
proteger o trabalhador.
Por uma pedido da associação das
incorporadoras imobiliárias, ele está suspenso.
Por fim, caso seja aprovado do
jeito em que está o projeto que regulamenta a terceirização e está tramitando
no Congresso Nacional, o combate ao crime sofrerá um revés. Casos famosos de
flagrantes de trabalho escravo surgiram por problemas em fornecedores ou
terceirizados em que o governo federal e o Ministério Público do Trabalho
puderam responsabilizar grandes empresas pelo que aconteceu na outra ponta.
Consideraram que havia responsabilidade solidária por se constatar
terceirização de atividade-fim.
Com o projeto aprovado, isso será
mais difícil. Além do mais, os chamados “coopergatos'' (cooperativas de fachada
montadas para burlar impostos) irão se multiplicar e o nível de proteção do
trabalhador cair.
Considerando o perfil conservador
do Congresso Nacional, há uma chance real do conceito de trabalho escravo
mudar. E milhares de pessoas que, hoje, poderiam ser chamadas de escravos
modernos simplesmente vão se tornar invisíveis. Vamos resolver o problema chamando-o por outro nome.
E ao contrário dos que o
pensamento limitado acredita, a “lista suja'' é uma forma de proteção à nossa
economia. Sem ela, governos estrangeiros interessados em erguer barreiras
comerciais não tarifárias sob pretensas justificativas sociais vão ter sucesso
em seu intento. No passado, vendas brasileiras já foram salvas pela “lista
suja'', quando provou-se que as mercadorias não eram feitas com esse tipo de
mão de obra. Sem a lista, cuidem-se exportadores.
Há setores no governo federal, em
governos estaduais e municipais e em diversos partidos que têm atuado
firmemente no combate a esse crime. Contudo, há outros setores que fazem corpo
mole ou agem contra.
Nos corredores do Palácio do
Planalto e da Esplanada dos Ministérios, por exemplo, há quem defenda
reservadamente que melhor seria deixar o conceito de trabalho escravo
retroceder e a “lista suja'' ser derrubada porque a situação atual cria
problemas para setores econômicos, como o da construção civil, que tocam obras
do PAC. Ou doam recursos para campanha. Nesse sentido, o Ministério do Trabalho
e Emprego acaba tendo como “inimigos'' instituições que, em tese, deveriam
defendê-lo.
Isso derruba por terra uma
desculpa que tem sido muito ouvida em Brasília: “ah, mas com esse Congresso,
vai ser difícil''. Pois tentar e ser derrotado no voto é uma coisa. Nem tentar
é outra totalmente diferente.
O interessante das conquistas
sociais é que há mecanismos internacionais para que, uma vez garantidas, elas
não sejam sejam retiradas. Além da vergonha global de ser visto como um país
que revogou a proteção à liberdade e à dignidade de seus cidadãos, o Brasil
poderá ser acionado na Organização dos Estados Americanos, na Organização
Internacional do Trabalho e em uma série de outros espaços internacionais por
voltar atrás. Vai ser um vexame completo para um governo que se elegeu com a
plataforma de garantir direitos conquistados.
Ou seja, neste 28 de janeiro, Dia
Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, não temos o que comemorar. Pelo
contrário, a batalha mais importante está apenas começando.
Fonte: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/
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