Dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São
Paulo reforçam avaliação de que o crime com motivação de gênero é uma das
maiores causas da morte de mulheres.
Na última-sexta feira, 13, uma reportagem do jornal Folha de
S.Paulo (leia aqui) trouxe dados alarmantes sobre a violência em São Paulo:
12,5% de um total de 1.606 vítimas de homicídios dolosos de janeiro a abril
deste ano foram motivados por conflitos entre familiares e casais, segundo
dados do governo. Esses crimes levaram à triste estatística de que, a cada 2
dias, 3 pessoas foram mortas em briga de família no Estado.
A reportagem, porém, não informava quantas vítimas deste
percentual eram homens e quantas eram mulheres – o que, para especialistas
ouvidas pela Agência Patrícia Galvão, desconsidera um dado importante da
realidade. “Uma peculiaridade nos crimes que acontecem dentro da família é que,
no Brasil e internacionalmente, a maior parte das vítimas são mulheres”,
contextualiza a médica Ana Flávia d’Oliveira, pesquisadora da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo, especialista em violência de gênero e
professora no Departamento de Medicina Preventiva da USP.
“Se observarmos os dados disponíveis sobre os homicídios de
mulheres, como o Mapa da Violência e o Dossiê Mulher do Rio de Janeiro, vamos
ver que os crimes em família têm uma característica feminina. As mortes das
mulheres por pessoas que não são da sua intimidade, da sua família, por
exemplo, são bastante inferiores aos homicídios praticados contra as mulheres
no espaço doméstico. Da mesma forma, a grande maioria das vítimas de estupro
são mulheres e o peso da violência sexual contra as mulheres e meninas é mais
alto no espaço familiar”, compara a advogada Leila Linhares Barsted,
coordenadora executiva da ONG Cepia – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e
Ação, que integrou o consórcio de organizações que elaborou o anteprojeto da
Lei Maria da Penha.
Especialista no enfrentamento da violência contra as
mulheres, Leila Linhares aponta: “sem os dados desagregados por sexo ficamos
sem saber o peso da violência contra as mulheres neste quadro de São Paulo.
Podemos inferir apenas que a maioria das vítimas nas brigas entre casais sejam
mulheres”.
Os dados desagregados obtidos pela Agência Patrícia Galvão
junto à Secretaria de Segurança Pública (disponíveis na íntegra neste link)
mostram que as análises das especialistas estão corretas. De janeiro a abril,
63,2% das vítimas de homicídio motivado por conflitos entre casais eram
mulheres. Nos conflitos entre familiares, 39,8% das vítimas eram do sexo
feminino.
Isso quer dizer que dos cerca de 90 assassinatos motivados
por briga de casal, 57 foram de mulheres. Se adicionados a estes dados os
números relativos a outro tipo de crime também frequentemente associado à
violência de gênero – o de mortes com sinais de violência sexual – o percentual
de vítimas mulheres é ainda maior: 83,3%, ou seja, mais 8 homicídios.
Estima-se que a cada dois dias uma mulher seja assassinada
por razão de gênero somente no Estado de São Paulo
Contudo, esses dados ainda podem estar ocultando a real
gravidade do fenômeno da violência de gênero, uma vez que consideram só os
homicídios dolosos que constam nos boletins de ocorrência registrados pela
Polícia Civil no Estado em que foi apontada que a motivação do assassinato
enquadra-se em “conflitos entre casais” e aqueles em que o crime foi praticado
com violência sexual – duas das condicionantes que segundo o Projeto de Lei do
Senado 292/2013 caracterizam o feminicídio (ou o assassinato de uma mulher pela
condição de ser mulher, quase sempre cometido por homens e motivado pelo ódio,
o desprezo ou o sentimento de perda da propriedade sobre a vítima).
SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DE SÃO PAULO: Distribuição
de vítimas de homicídio doloso no Estado segundo sexo e contexto ou possível
motivação, com base no Registro Digital de Ocorrências (Jan. a Abr/2014 – em %)
Se também forem considerados os homicídios de mulheres
motivados por conflitos intrafamiliares, o número subiria para praticamente um
assassinato a cada dia. A Secretaria de Segurança Pública informa ainda que em
28% dos BOs a motivação ou o contexto do homicídio não foi apontado
previamente.
“As mulheres são assassinadas por serem mulheres. E não é
por acaso que a violência doméstica e a sexual são denunciadas pelos movimentos
de mulheres há décadas, é porque elas são uma realidade empírica, um fato no
cotidiano das mulheres. E vale lembrar que os casos em que ocorrem mortes são
só o pico do iceberg, uma vez que não contemplam muitos mais episódios em que
não há morte, mas há danos à saúde física, mental e aos direitos das mulheres”,
destaca a médica e pesquisadora Ana Flávia D’Oliveira, diante das estatísticas
da Secretaria de Segurança de São Paulo.
Segundo Ana Flávia, a maior parte dos homicídios dolosos
acontece no espaço público, no Brasil e no mundo, e é tanto cometida quanto
dirigida aos homens. “Eles são a maioria das vítimas na idade reprodutiva, até
porque parte do legado da discriminação das mulheres foi colocar o espaço
público como um espaço masculino”, explica. No espaço privado, porém, a
estatística se inverte: a maior parte dos autores de agressões seguem sendo do
sexo masculino, mas a maior parte das vítimas são mulheres.
Nesse sentido, para a médica, ignorar a distribuição por
sexo nos crimes cometidos em relações íntimas é um problema, uma vez que não
permite a compreensão de que diferentes formas de homicídios necessitam de
políticas públicas distintas.
Causas da violência doméstica
Diferentemente do que aponta o psicólogo e professor da USP
Sérgio Kodato na reportagem da Folha de S.Paulo - para quem os fatores que
influenciam nesse quadro de violência na família vão de crise econômica a
desorganização familiar, causada em parte pela ausência da figura da
‘autoridade paterna’ - as especialistas em violência contra as mulheres
destacam que as causas dos crimes em relações íntimas são fruto de um padrão
histórico, mantido e atualizado justamente pela definição monolítica e
hierarquizada de supostos papéis de homens e mulheres, criando relações
desiguais de poder.
“É preciso enxergar que nos arranjos familiares há
desigualdades de valor e de poder e reconhecer que, se isso não for observado e
trabalhado, a violência continuará acontecendo”, avalia a médica Ana Flávia.
Em sentido semelhante, Leila Linhares lembra que a violência
contra as mulheres no ambiente doméstico de hoje é fruto da manutenção de um
padrão histórico de banalização destes crimes no âmbito da família. “Hoje em
dia temos mais estatísticas que mostram claramente que isso acontece, mas
vivemos num país em que, até recentemente, a violência contra a mulher era
banalizada”, comenta.
Para além da realidade das mulheres, ela aponta ainda outros
padrões de discriminação muito fortes no Brasil, que também estão associados ao
uso da violência e atingem outras parcelas da sociedade, como índios, negros,
homossexuais e moradores de rua.
“Não podemos esquecer que no nosso país milhões de pessoas
foram tratadas como ‘coisa’. Nós temos essa herança da escravidão, que nos
deixou padrões de desumanização do outro. Passamos ainda por ditaduras que
legitimaram a violência, como a ditadura militar que deixou um legado forte nas
instituições. Além disso, existe um padrão de competitividade muito forte na
sociedade hoje em dia, que favorece o não reconhecimento de mecanismos de
solidariedade ou de gentileza entre as pessoas. Temos que pensar e refletir
muito sobre esse tecido social brasileiro, olhando para o legado dessa história
de discriminação e desumanização do outro”, destaca Leila Linhares.
Família
As especialistas ressaltam ainda a importância do
reconhecimento dos múltiplos modelos de família para se pensar em políticas
públicas que possam diminuir essa violência. “Do ponto de vista sociológico,
você tem famílias de mãe com filhos, de avós com netos, tios, famílias
homoparentais, mães e pais solteiros – temos um mosaico de formações de família
muito forte na sociedade brasileira e esse mosaico não quer dizer que essas
novas formas de família vão gerar pessoas que vão cometer crimes. O fato de não
se ter pai, por exemplo, não significa que não há ali outras figuras que
exerçam a função de criação. Do mesmo modo, a presença do pai não é garantidora
de que não vão acontecer crimes. Nós temos criminalidade no mundo todo, por
diferentes fatores sociais e psíquicos”, frisa a advogada Leila Linhares.
Para a médica Ana Flávia, é muito perigoso associar os
crimes domésticos a normas tradicionais de gênero, como as de que seria papel
do homem ser o provedor e chefe da família, enquanto da mulher seria cuidar da
casa e dos filhos. “Essas normas só reiteram as desigualdades nas relações que
estão na base da maioria destes crimes”, destaca.
Em relação ao homicídio de mulheres, o caminho para reduzir
as tristes estatísticas, para a médica, está justamente na mudança de relações
desiguais e na efetivação dos direitos já previstos em Lei. “A Lei Maria da
Penha é um instrumento legal de política afirmativa para reduzir a violência
contra as mulheres que a política urbana não reduz. E o caminho que ela aponta
é o de valorização das mulheres na sociedade e a promoção da igualdade entre
homens e mulheres”, aponta.
Fonte: Agência Patrícia Galvão
Indicações de fontes
Anaflaviaoliveira 300x249Ana Flávia D’Oliveira – médica,
professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da
USP
(11) 3061.7085 ou 3061.7285 (Secretaria) - aflolive@usp.br
leilalinhares premioclaudia2011 300x213Leila Linhares
Barsted – advogada e coordenadora da Cepia – Cidadania, Estudo, Pesquisa,
Informação e Ação
(21) 2205.2136 / 2558.6115 / 98700.3106 -
barsted@cepia.org.br
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