Olhe bem à volta: quem sabe você, hoje, cruza com um santo. Na aparência, um porteiro de edifício, um trocador de ônibus, uma idosa debruçada na janela de casa, um palhaço que diverte as crianças na praça. Santo é assim. Igual a gente. Mas bem diferente, pela graça de Deus.
Santo não é a pessoa muito religiosa. É a mais amorosa. Aquela que é capaz de sair de si para cuidar dos outros
Por Frei Betto
A Igreja católica
consagra cada dia do ano a um santo. Há santo para todas as devoções, apelos e
apertos. Santa Edwiges cuida dos endividados; Luzia, dos olhos; Judas Tadeu,
das causas impossíveis etc.
Como dizia Hélio Pellegrino, santo é o nosso pistolão no
céu. Apadrinha causas junto a Deus. Mas se Deus anda muito ocupado, convém
recorrer à Maria. Filho sempre ouve a mãe. Pelo menos ela não precisa entrar na
fila. O Espírito Santo faz passá-la à frente.
O primeiro dia deste mês foi dedicado a festejar todos os
santos, conhecidos e esquecidos, famosos e anônimos. É festa de santa Bertula,
a cozinheira de minha família, que viveu e morreu em estado de santidade; de
são Padre Cícero, que ensinou o nordestino a confiar em Deus; de são Tito de
Alencar Lima, que resistiu à ditadura militar em nome da liberdade e morreu
mártir; de Santo Dias, trabalhador assassinado por defender os direitos de sua
classe; de são Frei Damião, que perambulava pelo Nordeste distribuindo bênçãos
e a misericórdia divina; de santa Irmã Dulce, que cuidava dos pobres e doentes
da Bahia; de santo Alceu Amoroso Lima, que iluminou a inteligência brasileira.
E de tantos outros que passaram a vida fazendo o bem.
Olhe bem à volta: quem sabe você, hoje, cruza com um santo.
Na aparência, um porteiro de edifício, um trocador de ônibus, uma idosa
debruçada na janela de casa, um palhaço que diverte as crianças na praça. Santo
é assim. Igual a gente. Mas bem diferente, pela graça de Deus.
Santo não é a pessoa muito religiosa. É a mais amorosa.
Aquela que é capaz de sair de si para cuidar dos outros. Seu coração é
globalizado: se uma criança passa fome em algum lugar do mundo, ela sofre como
se fosse seu filho. Ama como Jesus amava, sem preconceitos e com muita fome de
justiça.
Ninguém se faz santo. Deus é quem nos faz santos, como a
argila vira jarro nas mãos do oleiro. Aliás, aspirar a santidade pode ser um
sintoma de orgulho espiritual. Dispor-se a fazer a vontade de Deus é reconhecer
a própria fraqueza, confiante na graça divina. Mineiro, sempre desconfiei
daqueles exemplos catequéticos, como o de são Luís Gonzaga, que não fitava
mulheres, nem a própria mãe. Isso me parece mais próximo do divã de
psicanalista que do altar dos devotos.
O modelo de santidade cristã é um só: Jesus de Nazaré. Nele,
amor e justiça são indivisíveis, a opção pelos pobres é nítida, bem como a
indiferença frente aos juízos dos poderes deste mundo. Jesus nunca quis
"ficar bem com todos". Numa sociedade tão desigual como a brasileira,
querer agradar a todos significa, quase sempre, não desagradar aos que estão
por cima.
Jesus denunciou os fariseus e os saduceus, calou-se diante
de Pilatos, xingou o governador de "raposa" (Lucas 13, 32). Morreu
assassinado pelos poderes judaico e romano. Todos nós, cristãos, somos
discípulos de um prisioneiro político.
Quais as características mais marcantes da santidade de
Jesus? Primeiro, a radical fidelidade à vontade de Deus, com quem
"perdia" longos tempos em oração. Depois, a defesa intransigente da
vida, dom maior de Deus, o que explica sua preferência aos pobres. Jamais
emitiu juízo negativo sobre um deles. No entanto, mostrava-se exigente com os
abastados e poderosos, inclusive os que se propunham a segui-lo, como Zaqueu e
o homem rico.
Para Jesus, a prática é o critério da verdade, como o
confirma a parábola do Bom Samaritano, onde ele critica a omissão do levita e
do sacerdote, religiosos aparentemente piedosos. Destituído de moralismo, Jesus
não condena a samaritana que estava no sexto marido. Humilde e ecumênico, acede
aos apelos da mulher sírio-fenícia, bem como do centurião que pede a cura de
seu servo.
A diferença entre a santidade proposta por Jesus e aquela
que exige o fariseu é que o primeiro funda-a no amor; o segundo, na lei. Jesus
tem como projeto o Reino de Deus; o fariseu, a exaltação do Templo. O primeiro
vê-se na face dos que têm fome. O segundo, considera os pobres incapazes e
inferiores.
O grande paradoxo do cristianismo é que ele nos convoca à
santidade sem pretender que deixemos de ser pecadores, o que demonstra que a
santidade cristã nada tem a ver com o modelo do herói grego. Antes, ela decorre
da graça divina, que inunda o coração de quem ousa viver amorosamente. Se a
vida é terna, a alegria é eterna.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff,
de "Mística e Espiritualidade" (Rocco), entre outros livros.
Fonte: www.correiocidadania.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário