quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Entrevista com uma sobrevivente da prostituição

 "Nós somos campeões mundiais em relaҫão ao abuso sexual infantil, e os nossos corpos são considerados parte da paisagem turística. Não se deixem enganar pela apresentaҫão de prostituiҫão como algo glamouroso. Vejam a realidade. Ela não é como aparece na televisão".


Por Ingrid Halvorsen,  27 anos, norueguesa e apaixonada pelo Rio de Janeiro

*Esta entrevista foi publicada originalmente em norueguês em um blog feminista da Noruega. Foi escrita em relação aos Jogos Olímpicos atualmente ocorrendo no Rio de Janeiro e o aumento na procura de prostituiҫão devido ao incremento de turistas nesse período. Foi modificado só o ingresso na (re-)traduҫão para português.

"Só tenho cliente daqui a duas horas, então não temos pressa", diz Tatiane Sattin. A mulher de 29 anos está abrindo e preparando o salão de beleza onde ela trabalha em Cotia, São Paulo, enquanto fala comigo no telefone. Tatiane é sobrevivente de prostituiҫão, e digo a ela que quero comeҫar a entrevista perguntando um pouco sobre o seu passado. Antes que eu consiga fazer uma pergunta, ela comeҫa a contar:

"Cresci em Campinas, São Paulo, e minha família era pobre. Na época era lésbica assumida, mas quando tinha 17 anos e um homem ofereceu me pagar para fazer sexo com ele, eu aceitei porque precisava do dinheiro. Depois me levaram a um boate em Itatinga para me prostituir lá. No comeҫo achei até meio glamouroso. Ganhei mais do que em outros trabalhos, mas gastei muito em drogas e para cuidar da aparência.

Um dia um cliente, político, me trancou em um local junto com mais oito amigos dele. Todos eles me estupraram durante sete horas. Seguiram-se quatro anos com tentativas de sair da prostituiҫão sem sucesso. Trabalhei um tempo na rua depois de brigar com o cafetão. Mandei dinheiro para a família, mas tentei me afastar para não trazer as problemas da rua para dentro de casa, minha irmã era pequena.

Nessa época uma amiga travesti me estuprou depois de ter consumido muito crack, e durante a mesma época mataram uma amiga minha do Paraná, mas como ela era prostituída não foi investigado. Eu me drogava muito depois disso, e após sofrer uma overdose, minha mãe me falou para eu sair de Campinas. Ela temeu que eu pudesse morrer se eu ficasse em Itatinga. Fui para Belo Horizonte e continuei me prostituindo lá. Queria sair, mas não era fácil. Você tenta fugir, mas fica presa".

IH: Conheҫo histórias de cafetões ameaҫando ou trancando prostituídas que querem sair. Você tinha experiências desse tipo, ou haviam outras razões para que você não conseguiu sair?

TS: Recebi ameaҫas de morte, sim, mas eu não tive medo. Não tinha muito amor pela vida, e respondi para eles «então me mata, já estou fudida mesmo». Acho que eles perceberam que não dava em nada ir atrás de mim. Mas estava viciada em drogas e não tinha nada para o que voltar. Não conseguiria trabalho, não tinha nem Ensino Médio. Outra coisa é que você se afunda cada vez mais até que chega um momento em que você é tão apática que nada te surpreende mais. Eu era muito acostumada com coisas ruins, e nem me abalava mais.

Depois de quatro anos conheci um cliente que me ofereceu ajuda para sair, mas teria que ficar com ele depois. Não queria dever nada a ninguém, e não aceitei. Mas depois fiquei grávida, e não vi outra soluҫão. Foi o comeҫo do caminho para sair da prostituiҫão para mim. Muitas mulheres saem desse jeito, mas o abuso continua porque ficam devendo os homens que as ajudaram. Eu tinha muito medo de ficar pobre e ter que voltar a me prostituir, e continuei com esse tipo de relaҫões por vários anos. Hoje nos sustentamos sozinhas [Tatiane e a filha], por mais que às vezes a gente tenha que vender o almoҫo pra comprar a janta.

Tenho meu trabalho no salão e uma economia estável e estou vivendo como lésbica pela primeira vez desde a adolescência.

IH: Por que você escolheu falar abertamente sobre as suas experiências de prostituiҫão, e como é recebida quando conta a sua história?

TS: Decidi falar abertamente sobre o meu passado ao conhecer feministas radicais. Elas tinham uma visão crítica da prostituiҫão, como eu. Estava cansada de mentir, e senti que tinha uma responsabilidade de usar o que me aconteceu para ajudar a outras que estejam na mesma situaҫão. Todo mundo tem passado, e ninguém tem o direito de julgar, e quem me julgar, que se foda. Se a gente não conta, nada muda. Por isso digo a outras sobreviventes que elas têm que contar as suas histórias e mostrar ao mundo que prostituiҫão não é nem um pouco glamouroso, mas muitas delas têm medo e vergonha.

Já aconteceu em debates que pessoas acadêmicas gargalharam de mim, ficaram de deboche ou me acusaram de vitimismo. Eles são da classe média ou média-alta e romantizam a prostituiҫão. Aprendi a lidar com isso, mas era difícil no comeҫo. As pessoas da periferia, de classe baixa, entendem mais a situaҫão, são mais abertas a ouvir e me recebem bem.

Eu fico brava com algumas alegaҫões sobre a prostituiҫão. Em Itatinga as mulheres não têm alternativa. São vendidas por 40 reais, e metade já vai direto para o cafetão. Como isso é empoderador? Cadê a escolha livre? Quando me prostituía em Itatinga, tinha por volta de 12 clientes durante 14 horas de trabalho por dia. Estava doente tempo todo, e quando ia para minha casa no fim de semana, meu corpo estava pedindo arrego. A maioria das pessoas que estão na prostituiҫão tem essa vida, elas vivem doentes, estão gripadas, têm viroses, vivem com dores no corpo, vivem cheias de doenҫa. É uma vida minúscula.

IH: Você escreveu que considera o que aconteceu com você na prostituiҫão como estupros. Por que você vê assim o que ocorreu?

TS: Quando comecei ir à minha psicóloga, eu me culpava por todo que tinha ocorrido. Me senti burra, pensei que era uma pessoa sem escrúpulos e que ninguém ia querer ter um relacionamento sério comigo porque tinha transado com mais homens do que posso contar. Minha psicóloga tinha muita experiência com sobreviventes, e me ajudou entender que eu não fiz isso por vontade própria. Quando transava com homens na prostituiҫão, eu me sentia sendo estuprada. Coerҫão é estupro. Quando você paga uma pessoa para transar com você, está coagindo ela a transar com você, porque não se pode comprar consentimento. Consentimento não tem preҫo.

IH: Você já descreveu seu primeiro encontro com o feminismo como negativo, e diz que a sua crítica maior do feminismo de hoje é que ele virou muito acadêmico e teórico e que não chega às mulheres marginalizadas que mais precisam dele. Pode elaborar?

TS: Meu primeiro encontro com feminismo foi com o feminismo liberal na internet e na televisão, esses que fazem manifestaҫões peladas com protestos escritos no corpo. Eles falaram sobre «meu corpo, minhas regras», mas não é bem assim que funciona. Eu tinha que ceder para ter as coisas que eu precisava. Eu nunca senti que meu corpo me pertencia. Eu tinha uma impressão ruim de feministas, e é assim para muitas mulheres marginalizadas.

Hoje me considero feminista radical, mas não deixo de criticar o movimento. Espero que as feministas radicais não falem só para os acadêmicos privilegiados de como as pessoas são exploradas na prostituiҫão, mas que eles em maior medida encontrem as prostituídas. São essas pessoas quem precisam ouvir que o que está acontecendo com elas é exploraҫão e abuso. Quando você está na prostituiҫão, você não tem ideia de como é a violência que sofre. A intelectualizaҫão do debate de prostituiҫão acaba passando por cima das pessoas diretamente afetadas.

IH: Qual é a melhor soluҫão legalmente pra pessoas prostituídas no Brasil hoje?

TS: O primeiro passo é criminalizar quem compra e explora as pessoas prostituídas. As filas para as casas grandes de prostituiҫão aqui em São Paulo são quilométricas. Assim que a procura esteja reduzida, têm que ser oferecidas programas de saída para reinserir as pessoas prostituídas na sociedade. Quando você está na prostituiҫão você perde o contato com o mundo lá fora. Você usa muito droga, se prostitui dia todo ou a noite toda e dorme o resto do dia por exaustão. É difícil o alcance dessas pessoas porque elas têm muito medo. Temos que reintegrar essas pessoas na sociedade de forma digna. Nosso trabalho não pode acabar enquanto ainda tiver uma mulher na prostituiҫão que quiser sair.

IH: Como seriam esses programas de saída na prática?

TS: Primeiramente teriam que ser oferecidos cursos de profissionalizaҫão gratuitos. A grande maioria das pessoas prostituídas são socialmente e economicamente marginalizadas, e muitas delas nem terminaram o ensino fundamental. Não têm opҫões reais fora da prostituiҫão, então como é que se pode esperar que elas consigam sair sem ajuda? É obrigaҫão do Estado proteger essas pessoas para que não caiam de novo naquela situaҫão vulnerável que de início as levou à prostituiҫão. E as pessoas falam que seria caro demais para implementar, mas é uma questão de prioridades. Seria um investimento no futuro, e iria prevenir que outros, principalmente crianҫas, caiam na prostituiҫão.

Daqui a pouco serão duas horas da tarde, e a primeira cliente do dia entra pela porta do salão de beleza em Cotia. Nós temos que terminar a entrevista, e a palavra final é de Tatiane:

"Nós somos campeões mundiais em relaҫão ao abuso sexual infantil, e os nossos corpos são considerados parte da paisagem turística. Não se deixem enganar pela apresentaҫão de prostituiҫão como algo glamouroso. Vejam a realidade. Ela não é como aparece na televisão".

Fonte: http://www.festivalmarginal.com.br/

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