Por Ingrid Halvorsen, 27 anos, norueguesa e apaixonada pelo Rio de
Janeiro
*Esta entrevista foi publicada
originalmente em norueguês em um blog feminista da Noruega. Foi escrita em
relação aos Jogos Olímpicos atualmente ocorrendo no Rio de Janeiro e o aumento
na procura de prostituiҫão devido ao incremento de turistas nesse período. Foi
modificado só o ingresso na (re-)traduҫão para português.
"Só tenho cliente daqui a
duas horas, então não temos pressa", diz Tatiane Sattin. A mulher de 29
anos está abrindo e preparando o salão de beleza onde ela trabalha em Cotia,
São Paulo, enquanto fala comigo no telefone. Tatiane é sobrevivente de prostituiҫão,
e digo a ela que quero comeҫar a entrevista perguntando um pouco sobre o seu
passado. Antes que eu consiga fazer uma pergunta, ela comeҫa a contar:
"Cresci em Campinas, São
Paulo, e minha família era pobre. Na época era lésbica assumida, mas quando
tinha 17 anos e um homem ofereceu me pagar para fazer sexo com ele, eu aceitei
porque precisava do dinheiro. Depois me levaram a um boate em Itatinga para me
prostituir lá. No comeҫo achei até meio glamouroso. Ganhei mais do que em
outros trabalhos, mas gastei muito em drogas e para cuidar da aparência.
Um dia um cliente, político, me
trancou em um local junto com mais oito amigos dele. Todos eles me estupraram
durante sete horas. Seguiram-se quatro anos com tentativas de sair da
prostituiҫão sem sucesso. Trabalhei um tempo na rua depois de brigar com o
cafetão. Mandei dinheiro para a família, mas tentei me afastar para não trazer
as problemas da rua para dentro de casa, minha irmã era pequena.
Nessa época uma amiga travesti me
estuprou depois de ter consumido muito crack, e durante a mesma época mataram
uma amiga minha do Paraná, mas como ela era prostituída não foi investigado. Eu
me drogava muito depois disso, e após sofrer uma overdose, minha mãe me falou
para eu sair de Campinas. Ela temeu que eu pudesse morrer se eu ficasse em
Itatinga. Fui para Belo Horizonte e continuei me prostituindo lá. Queria sair,
mas não era fácil. Você tenta fugir, mas fica presa".
IH: Conheҫo histórias de cafetões
ameaҫando ou trancando prostituídas que querem sair. Você tinha experiências
desse tipo, ou haviam outras razões para que você não conseguiu sair?
TS: Recebi ameaҫas de morte, sim,
mas eu não tive medo. Não tinha muito amor pela vida, e respondi para eles
«então me mata, já estou fudida mesmo». Acho que eles perceberam que não dava
em nada ir atrás de mim. Mas estava viciada em drogas e não tinha nada para o
que voltar. Não conseguiria trabalho, não tinha nem Ensino Médio. Outra coisa é
que você se afunda cada vez mais até que chega um momento em que você é tão
apática que nada te surpreende mais. Eu era muito acostumada com coisas ruins,
e nem me abalava mais.
Depois de quatro anos conheci um
cliente que me ofereceu ajuda para sair, mas teria que ficar com ele depois.
Não queria dever nada a ninguém, e não aceitei. Mas depois fiquei grávida, e
não vi outra soluҫão. Foi o comeҫo do caminho para sair da prostituiҫão para
mim. Muitas mulheres saem desse jeito, mas o abuso continua porque ficam
devendo os homens que as ajudaram. Eu tinha muito medo de ficar pobre e ter que
voltar a me prostituir, e continuei com esse tipo de relaҫões por vários anos.
Hoje nos sustentamos sozinhas [Tatiane e a filha], por mais que às vezes a
gente tenha que vender o almoҫo pra comprar a janta.
Tenho meu trabalho no salão e uma
economia estável e estou vivendo como lésbica pela primeira vez desde a
adolescência.
IH: Por que você escolheu falar
abertamente sobre as suas experiências de prostituiҫão, e como é recebida
quando conta a sua história?
TS: Decidi falar abertamente
sobre o meu passado ao conhecer feministas radicais. Elas tinham uma visão
crítica da prostituiҫão, como eu. Estava cansada de mentir, e senti que tinha
uma responsabilidade de usar o que me aconteceu para ajudar a outras que
estejam na mesma situaҫão. Todo mundo tem passado, e ninguém tem o direito de
julgar, e quem me julgar, que se foda. Se a gente não conta, nada muda. Por
isso digo a outras sobreviventes que elas têm que contar as suas histórias e
mostrar ao mundo que prostituiҫão não é nem um pouco glamouroso, mas muitas
delas têm medo e vergonha.
Já aconteceu em debates que
pessoas acadêmicas gargalharam de mim, ficaram de deboche ou me acusaram de
vitimismo. Eles são da classe média ou média-alta e romantizam a prostituiҫão.
Aprendi a lidar com isso, mas era difícil no comeҫo. As pessoas da periferia,
de classe baixa, entendem mais a situaҫão, são mais abertas a ouvir e me
recebem bem.
Eu fico brava com algumas
alegaҫões sobre a prostituiҫão. Em Itatinga as mulheres não têm alternativa.
São vendidas por 40 reais, e metade já vai direto para o cafetão. Como isso é
empoderador? Cadê a escolha livre? Quando me prostituía em Itatinga, tinha por
volta de 12 clientes durante 14 horas de trabalho por dia. Estava doente tempo
todo, e quando ia para minha casa no fim de semana, meu corpo estava pedindo
arrego. A maioria das pessoas que estão na prostituiҫão tem essa vida, elas
vivem doentes, estão gripadas, têm viroses, vivem com dores no corpo, vivem
cheias de doenҫa. É uma vida minúscula.
IH: Você escreveu que considera o
que aconteceu com você na prostituiҫão como estupros. Por que você vê assim o
que ocorreu?
TS: Quando comecei ir à minha
psicóloga, eu me culpava por todo que tinha ocorrido. Me senti burra, pensei
que era uma pessoa sem escrúpulos e que ninguém ia querer ter um relacionamento
sério comigo porque tinha transado com mais homens do que posso contar. Minha
psicóloga tinha muita experiência com sobreviventes, e me ajudou entender que
eu não fiz isso por vontade própria. Quando transava com homens na
prostituiҫão, eu me sentia sendo estuprada. Coerҫão é estupro. Quando você paga
uma pessoa para transar com você, está coagindo ela a transar com você, porque
não se pode comprar consentimento. Consentimento não tem preҫo.
IH: Você já descreveu seu
primeiro encontro com o feminismo como negativo, e diz que a sua crítica maior
do feminismo de hoje é que ele virou muito acadêmico e teórico e que não chega
às mulheres marginalizadas que mais precisam dele. Pode elaborar?
TS: Meu primeiro encontro com
feminismo foi com o feminismo liberal na internet e na televisão, esses que
fazem manifestaҫões peladas com protestos escritos no corpo. Eles falaram sobre
«meu corpo, minhas regras», mas não é bem assim que funciona. Eu tinha que
ceder para ter as coisas que eu precisava. Eu nunca senti que meu corpo me
pertencia. Eu tinha uma impressão ruim de feministas, e é assim para muitas
mulheres marginalizadas.
Hoje me considero feminista
radical, mas não deixo de criticar o movimento. Espero que as feministas
radicais não falem só para os acadêmicos privilegiados de como as pessoas são
exploradas na prostituiҫão, mas que eles em maior medida encontrem as
prostituídas. São essas pessoas quem precisam ouvir que o que está acontecendo
com elas é exploraҫão e abuso. Quando você está na prostituiҫão, você não tem
ideia de como é a violência que sofre. A intelectualizaҫão do debate de
prostituiҫão acaba passando por cima das pessoas diretamente afetadas.
IH: Qual é a melhor soluҫão
legalmente pra pessoas prostituídas no Brasil hoje?
TS: O primeiro passo é
criminalizar quem compra e explora as pessoas prostituídas. As filas para as
casas grandes de prostituiҫão aqui em São Paulo são quilométricas. Assim que a
procura esteja reduzida, têm que ser oferecidas programas de saída para
reinserir as pessoas prostituídas na sociedade. Quando você está na
prostituiҫão você perde o contato com o mundo lá fora. Você usa muito droga, se
prostitui dia todo ou a noite toda e dorme o resto do dia por exaustão. É
difícil o alcance dessas pessoas porque elas têm muito medo. Temos que
reintegrar essas pessoas na sociedade de forma digna. Nosso trabalho não pode
acabar enquanto ainda tiver uma mulher na prostituiҫão que quiser sair.
IH: Como seriam esses programas
de saída na prática?
TS: Primeiramente teriam que ser
oferecidos cursos de profissionalizaҫão gratuitos. A grande maioria das pessoas
prostituídas são socialmente e economicamente marginalizadas, e muitas delas
nem terminaram o ensino fundamental. Não têm opҫões reais fora da prostituiҫão,
então como é que se pode esperar que elas consigam sair sem ajuda? É obrigaҫão
do Estado proteger essas pessoas para que não caiam de novo naquela situaҫão
vulnerável que de início as levou à prostituiҫão. E as pessoas falam que seria
caro demais para implementar, mas é uma questão de prioridades. Seria um
investimento no futuro, e iria prevenir que outros, principalmente crianҫas,
caiam na prostituiҫão.
Daqui a pouco serão duas horas da
tarde, e a primeira cliente do dia entra pela porta do salão de beleza em
Cotia. Nós temos que terminar a entrevista, e a palavra final é de Tatiane:
"Nós somos campeões mundiais
em relaҫão ao abuso sexual infantil, e os nossos corpos são considerados parte
da paisagem turística. Não se deixem enganar pela apresentaҫão de prostituiҫão
como algo glamouroso. Vejam a realidade. Ela não é como aparece na
televisão".
Fonte: http://www.festivalmarginal.com.br/
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