Alguém lembrou de
avisar os tais meninos que nós seríamos assim? Que nós disputaríamos as vagas
de emprego com eles? Que nós iríamos querer jantar fora, ao invés de preparar o
jantar? Que nós iríamos gostar de cerveja, whisky, futebol e UFC? Que a gente
não ia ter saco pra ficar dando muita satisfação? Que nós seríamos criadas para
encontrar a felicidade na liberdade e o pavor na submissão?
Por RUTH MANUS
Às vezes me flagro imaginando um homem hipotético que
descreva assim a mulher dos seus sonhos:
“Ela tem que trabalhar e estudar muito, ter uma caixa de
e-mails sempre lotada. Os pés devem ter calos e bolhas porque ela anda muito
com sapatos de salto, pra lá e pra cá.
Ela deve ser independente e fazer o que ela bem entende com
o próprio salário: comprar uma bolsa cara, doar para um projeto social, fazer
uma viagem sozinha pelo leste europeu. Precisa dirigir bem e entender de
imposto de renda.
Cozinhar? Não precisa! Tem um certo charme em errar até no
arroz. Não precisa ser sarada, porque não dá tempo de fazer tudo o que ela faz
e malhar.
Mas acima de tudo: ela tem que ser segura de si e não querer
depender de mim, nem de ninguém.”
Pois é. Ainda não ouvi esse discurso de nenhum homem. Nem
mesmo parte dele. Vai ver que é por isso que estou solteira aqui, na luta.
O fato é que eu venho pensando nisso. Na incrível
dissonância entre a criação que nós, meninas e jovens mulheres, recebemos e a
expectativa da maioria dos meninos, jovens homens, homens e velhos homens.
O que nossos pais esperam de nós? O que nós esperamos de
nós? E o que eles esperam de nós?
Somos a geração que foi criada para ganhar o mundo.
Incentivadas a estudar, trabalhar, viajar e, acima de tudo, construir a nossa
independência. Os poucos bolos que fiz na vida nunca fizeram os olhos da minha
mãe brilhar como as provas com notas 10. Os dias em que me arrumei de forma
impecável para sair nunca estamparam no rosto do meu pai um sorriso orgulhoso
como o que ele deu quando entrei no mestrado. Quando resolvi fazer um breve
curso de noções de gastronomia meus pais acharam bacana. Mas quando resolvi
fazer um breve curso de língua e civilização francesa na Sorbonne eles inflaram
o peito como pombos.
Não tivemos aula de corte e costura. Não aprendemos a
rechear um lagarto. Não nos chamaram pra trocar fralda de um priminho. Não nos
explicaram a diferença entre alvejante e água sanitária. Exatamente como
aconteceu com os meninos da nossa geração.
Mas nos ensinaram esportes. Nos fizeram aprender inglês.
Aprender a dirigir. Aprender a construir um bom currículo. A trabalhar sem medo
e a investir nosso dinheiro. Exatamente
como aconteceu com os meninos da nossa geração.
Mas, escuta, alguém
lembrou de avisar os tais meninos que nós seríamos assim? Que nós
disputaríamos as vagas de emprego com eles? Que nós iríamos querer jantar fora,
ao invés de preparar o jantar? Que nós iríamos gostar de cerveja, whisky,
futebol e UFC? Que a gente não ia ter saco pra ficar dando muita satisfação?
Que nós seríamos criadas para encontrar a felicidade na liberdade e o pavor na
submissão?
Aí, a gente, com nossa camisa social que amassou no fim do
dia, nossa bolsa pesada, celular apitando os 26 novos e-mails, amigas nos
esperando para jantar, carro sem lavar, 4 reuniões marcadas para amanhã, se
pergunta “que raio de cara vai me querer?”.
“Talvez se eu fosse mais delicada… Não falasse palavrão. Não
tivesse subordinados. Não dirigisse sozinha à noite sem medo. Talvez se eu
aparentasse fragilidade. Talvez se dissesse que não me importo em lavar cuecas.
Talvez…”
Mas não. Essas não somos nós. Nós queremos um companheiro,
lado a lado, de igual pra igual. Muitas de nós sonham com filhos. Mas não só
com eles. Nós queremos fazer um risoto. Mas vamos querer morrer se ganharmos um
liquidificador de aniversário. Nós queremos contar como foi nosso dia. Mas não
vamos admitir que alguém questione nossa rotina.
O fato é: quem foi educado para nos querer? Quem é seguro o
bastante para amar uma mulher que voa? Quem está disposto a nos fazer querer
pousar ao seu lado no fim do dia? Quem entende que deitar no seu peito é nossa
forma de pedir colo? E que às vezes nós vamos precisar do seu colo e às vezes
só vamos querer companhia pra um vinho? Que somos a geração da parceria e não
da dependência?
E não estou aqui, num discurso inflamado, culpando os homens.
Não. A culpa não é exatamente deles. É da sociedade como um todo. Da criação
equivocada. Da imagem que ainda é vendida da mulher. Dos pais que criam filhas
para o mundo, mas querem noras que vivam em função da família.
No fim das contas a gente não é nada do que o inconsciente
coletivo espera de uma mulher. E o melhor: nem queremos ser. Que fique claro,
nós não vamos andar para trás. Então vai ser essa mentalidade que vai ter que
andar para frente. Nós já nos abrimos pra ganhar o mundo. Agora é o mundo tem
que se virar pra ganhar a gente de volta.
Fonte: www.blogs.estadao.com.br/ruth-manus
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