Sob a bandeira da luta contra a
“hipersexualização da negra”, muitas vezes perigamos reforçar outro estereótipo
racista e sexista: a da negra que precisa ser policiada e controlada pela
sociedade (geralmente através da polícia) “para seu próprio bem”.
E essa? Pois é. Mas o dinheiro de
seus impostos foi gasto para reprimir somente uma dessas imagens (a do Bonde
das Maravilhas)…. É bom lembrar que é a AGÊNCIA feminina, negra, que é a
verdadeira ameaça à sociedade racista e machista.
Vemos um grande problema com o
discurso da hiperssexualização das negras: na nossa opinião, ele não dá conta
do recado de como uma sociedade racista trata a sexualidade negra.
Sim, obviamente existe a
hiperssexualização. Mas isto é só um lado da questão. Tem, minimamente, mais
dois: a DE-sexualização de determinadas negras: as mais velhas, as menos
bonitas, a turma LGBT negra (que nem o movimento negro, nem as feministas, nem
o movimento LGBT quer tocar, em geral) e a “sinhá negra”. Pois se é verdade que
a sociedade racista e machista sexualiza para discriminar, um custo disto é,
que espera-se que as mulheres negras “sérias” e “profissionais” NÃO expressem
nenhuma sexualidade, para serem levadas a sério.
É
a assim-chamada, “política da respeitabilidade”, que uma série de feministas negras
anglo-americanas – mais notoriamente Patrícia Hill Collins – têm discutido.
O buraco é mais embaixo, segundo
nosso olhar: não é a hiperssexualização que é tanto o problema quanto, o mito
da sexualidade feminina negra como algo que precisa ser mantida sob os mais
fortes controles sociais para não virar ameaça social. No fundo disto – e
particularmente no Brasil, com sua história da eugenia através do
“branqueamento” – encontra-se o medo da mitológica capacidade
sexual-reprodutiva da mulher negra.
Em nossa opinião – mas também
baseada em nossas leituras em feministas negras, como Patrícia Hill Collins e Ângela Davis – isto cria uma faca de dois gumes quando queremos falar da
sexualidade negra, e, só um lado da questão costuma ser retratada pelos
movimentos feministas e negras: a hiperssexualização.
Vemos, então, uma enorme gritaria
contra as moças do Bonde das Maravilhas por seu suposto reforço do estereótipo
“hiperssexualizado” da mulher negra… mas não ouvimos quase nada quando as moças
foram investigadas pelo Ministério Público e proibidas de dançar, como se esse
tipo de censura fosse aceitável ou aplicada de forma democrática a todas as
moças brasileiras, independente de cor.
Na Copa, vimos imagens de
mulheres negras que namoram estrangeiros
associadas, sempre, com tráfico de pessoas e turismo sexual. Enquanto isto, nos
mesmos jornais e noticiários da grande mídia, mulheres BRANCAS que interagiram
com estrangeiros eram tratadas como espertas, inteligentes e aproveitadoras de
boas oportunidades para namorar.
A sexualidade das jovens negras
está sendo cada vez mais colocada sob uma ótica disciplinar e repressora em
nome do “combate a exploração sexual”. Enquanto isto, quando a filha
adolescente branca da Xuxa (celebridade que tentou-se renovar como militante
anti-exploração sexual) começou um namoro com um ator adulto, não houve nenhuma
discussão sobre se isto constituía “exploração sexual”: sendo jovem e branca,
você tem o direito de desenvolver sua sexualidade do jeito que quiser, desde
que não machuca ninguém e não viola a lei. Sendo negra…
Ou seja, sob a bandeira da luta
contra a “hipersexualização da negra”, muitas vezes perigamos reforçar outro estereótipo
racista e sexista: a da negra que precisa ser policiada e controlada pela
sociedade (geralmente através da polícia) “para seu próprio bem”.
É particularmente preocupante
essa tendência quando olhamos para como os movimentos negros e feministas lidam
com a questão da sexualidade negra que não cai nos moldes da
heteronormatividade. Nas semanas antes de Natal, quatro travestis negras foram
brutalmente assassinadas no Rio, mas a única voz que ouvimos levantar em
protesto foi a do pessoal de Jean Wyllys… representante gay que, ultimamente,
parece ser o saco de pancadas favorito para certas facções dos movimentos
negros e feministas (plurais) brasileiros.
Precisamos ter um diálogo
importante e imediato sobre o que é, exatamente, a “hipersexualização” e como
isto difere da simples expressão da sexualidade. Segundo nossas observações,
existem muitos preconceitos e pressuposições acerca de tal sexualidade e o que
ela “deve” ser dentro das fileiras dos
movimentos. Acreditamos que esses devem ser claramente enunciados e discutidos,
abertamente.
Precisamos respeitar a AGÊNCIA de
mulheres negras no campo sexual e não transformar a luta contra a hiperssexualização
racista em mais um dispositivo para a repressão das negras.
Aqui é um artigo que toca no
centro desse debate nos EUA. Vale a pena olhar.
Eis a razão que ficamos preocupados quando certas
feministas negras criticam, corretamente, a representação hiperssexualizada da
mulher negra nas telas brasileiras mas, no próximo sopro, criticar certos tipos
de mulheres negras – particularmente as jovens e/ou pobres – que curtem
determinadas modas, músicas, ou comportamentos sexualizados. Nas palavras da autora
do artigo acima citado:
“[Não devemos afirmar] que a
maneira de neutralizar a nossa hiperssexualização por uma sociedade controlada
por supremacia branca é, com efeito, nos tornar assexuada, destruindo assim a
tela sobre a qual a supremacia branca projeta suas ideias sobre a sexualidade
feminina negra. Enquanto eu posso ver o valor teórico desse ponto de
vista, acho que sua falha fatal é que
coloca o ônus sobre as mulheres negras para reorientar, por meio do auto
policiamento, as imagens depreciativas
que está sendo criadas e disseminadas sobre nós.
“Somos humanos, (embora a nossa
humanidade seja muitas vezes questionada) e por isto as mulheres negras são, em
geral, pessoas sexuais, assim como todas as outras. Nossa sexualidade é algo
que é inerente à nossa pessoa, e isso é algo que devemos ser autorizadas a
reclamar livremente (ou rejeitar) sem medo de represálias ou repercussões.
Avançar de uma forma reacionária, recusando-se a ser sexual simplesmente por
causa daquilo que a sociedade pode esperar de nós (por causa de nossos corpos
femininos pretas), é negar a nós mesmos uma parte de nossa própria humanidade,
a fim de reivindicar a nossa humanidade. Na minha cabeça, isso é
contraintuitiva. Nenhuma pessoa deve ser obrigada a rejeitar a sexualidade no serviço
de sua humanidade, porque a sexualidade faz parte da humanidade.”
Fonte: Geledés
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