Quem não conhece o livro “Hilda Furação” de Roberto Drummond
? Conta a história de Hilda Gualtieri Müller, a "Garota do Maiô
Dourado", uma belíssima e recatada moça da família mineira, que no dia de
seu casamento, em 1.º de abril de 1959, abandona o noivo e vai viver em um
prostíbulo na zona boêmia de Belo Horizonte. A verdadeira Hilda Furação atualmente
mora na Argentina e aos 83 anosa relembra seu relacionamento com o marido, o
jogador de futebol Paulo Valentim.
“A Hilda Furacão, onde ela estiver…”. Essa é a última das
muitas dedicatórias que Roberto Drummond (1939-2002) faz no livro Hilda Furacão
(1991, Geração Editorial). Pois a verdadeira personagem, viúva do jogador de
futebol Paulo Valentim, ídolo do Atlético, Botafogo, Boca Juniors – jogou ainda
no Atlante (México) –, batizada Hilda Maia Valentim, está viva, com 83 anos.
Solitária, mora em um asilo, o Hogar Guillermo Rawson, no Bairro Jujuy, em
Buenos Aires. Quem paga as despesas é o município portenho. Não há mais o
glamour e o luxo dos tempos dourados na capital argentina, nem resquícios da
vida na zona boêmia de Belo Horizonte, que a tornou famosa nos anos 1950. A
realidade da mulher, que na obra de ficção de um dos maiores escritores
mineiros se chamava Hilda Gualtieri von Echveger, é outra, completamente
diferente da personagem da literatura. Ela, aliás, nunca frequentou o Minas
Tênis Clube. Nem sequer sabe onde fica.
Da cama para a cadeira de rodas. Empurrada por enfermeiros,
rumo a uma sala-refeitório onde há uma TV. Lá ela passa a manhã e almoça. À
tarde, lanche. À noite, jantar. No avançar das horas, a volta para a cama. Na
cabeceira, sobre uma espécie de criado-mudo – um pequeno armário do tipo comum
a hospitais –, um velho caderno grande, preto, de capa dura. Dentro, recortes
da vida passada, do grande amor, o atacante e goleador Paulo Valentim. Vez ou
outra, antes de dormir, ela dá uma folheada. Relembra os bons tempos, os
momentos românticos. Essa é a rotina diária da octogenária Hilda Furacão ou Hilda
Maia Valentim, revelada com exclusividade pelo Estado de Minas.
Pode-se dizer que foi um lance de sorte Hilda ver, de
repente, em seu caminho, uma brasileira, a capixaba Marisa Barcellos, de 59
anos, assistente social do Hogar Dr. Guillermo Rawson, que antes trabalhou na
rua ajudando os sem-teto. Um dia, Marisa recebeu o relato de que uma mulher
estava se recuperando de uma queda, num hospital municipal, sem apoio e sem ter
para onde ir. Entrou em ação a assistente social. Foi à paciente e recolheu os documentos
que estavam à mão para começar a ajudá-la: uma carteira de identidade requerida
em Recife e uma autorização, em espanhol, que lhe permite viver na Argentina.
Só.
A assistente chegou à história de Hilda e se surpreendeu com
o passado da mulher, que foi famosa em Buenos Aires, personagem de reportagens
em jornais e revistas. Era tratada como primeira-dama do Boca Juniors, mulher
de um dos maiores astros do clube, apontado como um dos principais responsáveis
pelos títulos de campeão argentino nos anos de 1962 e 1964. Uma dama que
conheceu o luxo vive agora na miséria, de favores. Antes de ser recolhida ao
asilo, Hilda morava com a ex-companheira de um dos filhos que teve com
Valentim, Ulisses, que morreu no ano passado.
É na sala de TV e refeições que Hilda recebe o Estado de
Minas para, em um dos momentos de lucidez, contar que viveu uma vida de luxo,
falar de venturas e desventuras. “Com o Paulo, conheci 25 países. Onde o Boca
jogava eu estava. Ele era o único que tinha permissão para levar a mulher. Eu
ia a todos os lugares. O Jose Armando foi presidente do Boca e gostava muito do
Paulinho (Paulo Valentim) e por isso eu era a única a viajar.”
Hilda força a memória e volta aos tempos de adolescência e a
Belo Horizonte. Conta que chegou muito nova à capital mineira com o pai, José,
a mãe, Joana Silva, e quatro irmãos. Isso, no entanto, não é possível
confirmar, pois nesse momento ela parece confusa. Volta a falar da união com
Valentim. Vê uma foto dela, tirada logo depois do casamento com o jogador, e
diz: “Estava embarazada (grávida)”.
A foto pertencia ao falecido jornalista mineiro Jáder de
Oliveira, que chegou a morar em Buenos Aires, vizinho do casal. Foi feita no
apartamento onde Hilda e Paulinho moravam. O comentário de Hilda surpreende,
pois na época o casal já tinha um filho: Ulisses. Seria, então, o segundo
filho. Uma foto confirma que eles tiveram dois e o mais novo teria morrido e
foi enterrado na capital argentina. Desde então, ela evita tocar no assunto.
Quando percebe que falou o que não pretendia, disfarça.
Na verdade, Hilda criou algumas fantasias que a ajudam a
esconder o que considera ruim na vida, como a história do segundo filho. A
outra fantasia é para esconder a vida que levava em BH. Os tempos da zona
boêmia, do Hotel Maravilhoso, na Rua Guaicurus, não existem na memória dela. “O
meu apelido, de Furacão, é antigo, porque eu era brigona. Se mexessem comigo
estourava, discutia, queria bater. Sou assim desde pequena.”
De repente, entra na sala de TV e refeitório Jose Francisco
Lallane, de 80 anos, um torcedor do Boca, que também vive no Hogar Dr.
Guillermo Rawson. Ela está sentada onde gosta: bem perto da telinha. Da porta,
avista Hilda e grita: “Tim, Tim, Tim, gol de Valentim”. Esse era o canto da
torcida para reverenciar o ídolo dos anos 1960. Jose caminha em direção a
Hilda, ainda cantando. Ela sorri. Ele pega a mão dela e a beija. Então, começa
a falar de Valentim. “Era um craque. Era demais. Não passava jogo sem fazer
gol. Uma vez, o Carrizo, goleiro do River Plate, já havia levado um gol de
falta dele. Então, houve uma segunda falta e, antes que ele batesse e fizesse o
segundo gol, Carrizo fingiu estar machucado e pediu substituição.” Hilda sorri,
está feliz porque falam do marido, um dos orgulhos de sua vida.
Fonte: Estado de Minas
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