Elas são fisgadas na região de Rio Preto com propostas
tentadoras no mercado do sexo europeu: o ganho em euros, lucro mensal de até R$
10 mil e a oportunidade de conhecer a Europa. Mas basta pisar em solo
estrangeiro para encontrar uma realidade bem diversa. Endividadas, mulheres e
travestis logo tornam-se escravas de cafetinas no Exterior e passam a sofrer
agressões físicas e ameaças de morte. Muitas ficam até três anos enclausuradas
em prostíbulos, quando não morrem e acabam em cemitérios de indigentes.
O Noroeste paulista tem conexão direta com a máfia
internacional que explora o tráfico de pessoas para fins de prostituição. Nos
últimos oito anos, 35 pessoas foram presas acusadas de integrar esquema de
aliciamento de mulheres na região para a prostituição na Europa. Desses, 12
eram de Rio Preto, Jales e Ilha Solteira, dos quais seis foram condenados pela
Justiça por tráfico de mulheres, formação de quadrilha e rufianismo. Foram
identificadas pela polícia 43 vítimas na região.
Apesar da ação policial, o esquema persiste: segundo a
travesti Amanda, 33 anos, pelo menos cinco pessoas em Rio Preto ganham mil
euros para cada mulher ou travesti que aliciam no Noroeste paulista. “Por ser
um centro econômico importante no País, Rio Preto e região acabam atraindo a
atenção desses grupos”, diz o delegado Fernando Augusto Nunes Tedde, titular da
Delegacia de Investigações Gerais (DIG) local.
Em 2004, ele coordenou operação que terminou com a prisão de
quatro pessoas, das quais duas eram rio-pretenses, uma paulistana e um
argentino, que aliciavam mulheres em Rio Preto com destino a uma casa de
prostituição nas Ilhas Canárias, Espanha, controlada por Margarita Domingues.
As investigações, segundo o delegado, duraram dois meses.
“Eles prometiam maravilhas aqui no Brasil, mas chegando lá, as mulheres tinham
os passaportes retidos para evitar fuga e ficavam anos até pagar as dívidas que
contraíam com as passagens aéreas, hospedagem e alimentação”, diz Tedde.
Os quatro foram presos em flagrante no pedágio da rodovia
Washington Luís (SP-310) em Catiguá, quando viajavam de ônibus com quatro
garotas de programa que embarcariam no aeroporto de Guarulhos com destino à
Espanha. Uma delas era M.F.A. “Estava em dificuldade financeira, então
mergulhei de cabeça. Disse para a minha família que iria trabalhar em um
instituto de cabeleireiro. Só depois da prisão dos quatro é que me toquei do
perigo que corria”, lembra.
Segundo M., antes da viagem elas passaram por seleção. “O
argentino analisava cada parte do corpo, inclusive os dentes.” Os quatro
acabaram condenados à prisão por tráfico de mulheres e formação de quadrilha. Todos
já cumpriram as penas, convertida em prestação de serviço.
Quando o grupo foi preso na região, a rio-pretense Thaís
(nome fictício), 27 anos, já estava nas Ilhas Canárias, aliciada pelo esquema
no início de 2004. “Trabalhava como cabeleireira em Rio Preto quando fui
convidada por um rapaz de Araçatuba para fazer programas na boate da Margarita.
Só depois soube que ela era líder de um grande esquema de prostituição
internacional.”
Com dívida de 3 mil euros decorrente da viagem, Thaís, assim
como as demais brasileiras aliciadas, era impedida de sair do prostíbulo e
ficava 24 horas à disposição dos clientes. Todo o dinheiro dos programas era
destinado à casa. Para suportar a rotina e incentivada pelos clientes, ela
começou a cheirar cocaína. Até que, após dois meses, fugiu.
Dias depois, o rapaz de Araçatuba foi à casa da mãe de
Thaís, em Rio Preto. “Ele disse que, se eu não pagasse o que devia, só voltaria
para o Brasil em um caixão.” Thaís retornou e denunciou o aliciador à polícia.
Mas ele não chegou a ser preso, diferentemente da cafetina Margarita, presa com
outros 23 na Espanha em janeiro de 2006.
Meses depois, Thaís retornou à Espanha, desta vez para
programas em sites, ou mesmo boates de luxo em Madri, Barcelona e Zaragoza.
Chegou a ganhar R$ 30 mil mensais, mas a crise europeia forçou a retornar a Rio
Preto no início do ano. Hoje, oito anos depois, ela ainda guarda lições de sua
primeira passagem pela Espanha. “Era ingênua, acreditei na palavra deles. Hoje,
jamais cairia nesse golpe.”
‘Quero meninas que fazem tudo’
Quatro anos após desvendar a conexão Rio Preto-Ilhas
Canárias do tráfico de pessoas, a polícia voltaria a encontrar um novo esquema
regional de aliciamento de prostitutas para a Europa. Em 2008, a Polícia
Federal desencadeou a Operação Europa e prendeu o empresário de Urânia, Adriano
Alves dos Reis, acusado de aliciar prostitutas na região para Eli Alves Pinto,
a Stela, uma transexual brasileira radicada em Roma.
Pelo menos cinco mulheres foram vítimas do esquema. Elas
permaneciam por três meses no Exterior, e ganhavam R$ 8 mil mensais - o excedente
era todo de Stela. Gravações obtidas com exclusividade pelo Diário demonstram
os detalhes do aliciamento. Em 12 de outubro de 2007, Reis comenta com a mãe de
Stela os lucros da transexual: pelo menos 15 mil euros livres no mês. “Eu não
sei o que a Stela faz com o dinheiro”, diz.
Quatro dias antes, a transexual telefona para o empresário e
o pressiona a enviar mulheres com o perfil desejado por ela. “Como é essas
menina? (...) Cê tem que falar a verdade como é aqui. (...) Tem que produzir.
(...) Em outro trecho, Stela reclama do desempenho das vítimas. “Eu quero
meninas completas (...) que fazem tudo.”
Reis e Stela foram condenados pela Justiça Federal de Jales,
respectivamente, a cinco anos e oito meses e a cinco anos e quatro meses por
tráfico de mulheres e rufianismo (exploração da prostituição). O Tribunal
Regional Federal (TRF) manteve a sentença do empresário e reduziu em um ano a
pena para a transexual. Reis recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), e
a transexual está em São Paulo aguardando ser intimada para começar a cumprir a
pena, segundo sua advogada.
Amanda diz que teve tratamento de ‘animal’
Aliciadas para se prostituírem na Europa, as travestis
Amanda, 33 anos, de Rio Preto, e Bruna, 23, de Catanduva - os nomes são
fictícios - sofreram por meses nas mãos da máfia do tráfico de pessoas em Roma,
Itália. “Ninguém te trata como ser humano lá. Eles te veem como um animal”, diz
Amanda.
Ela pagou a própria passagem, em abril de 2008, mas precisou
desembolsar 3 mil euros pelo ponto na avenida Emilio Longoni, em Roma. Foi por
indicação de outra travesti de Rio Preto, que dizia ter ganho dinheiro
suficiente para comprar uma casa e um carro no Brasil. Mas o que parecia uma
ótima oportunidade logo virou pesadelo.
Até pagar a dívida pela “compra” do ponto na rua, teve o
passaporte retido e era obrigada pela cafetina a ficar pelo menos sete horas em
busca de programas na rua, com roupas mínimas mesmo sob frio de 10 graus
negativos. Além disso, no período em que ficou na capital italiana, Amanda
morou em um cubículo de apenas dois quartos com outras 15 travestis e mulheres.
Como no Brasil, prostituição na Itália não é crime. Mesmo
assim, Leandra passou duas noites atrás das grades. Com tantos percalços, o
tempo no estrangeiro encurtou: a meta era ficar dois anos na Europa, mas a
travesti permaneceu apenas um. “Só volto pra lá a passeio”, afirma.
Dívidas
Bruna teve vida ainda pior. Trabalhou quatro meses de graça
na capital da Itália para uma cafetina carioca, apenas para pagar as despesas
com a viagem, 13 mil euros no total. Nos outros cinco meses em que ficou por
lá, era pressionada pela cafetina a fazer programas sem preservativo, mais
rentáveis - 50 euros, contra 30 dos programas com camisinha.
Ela diz que não chegou a ser agredida fisicamente, mas
presenciou várias mulheres e travestis sendo surradas no meio da rua por
desviar dinheiro dos programas que deveria ser entregue às cafetinas. “Eles
batem e deixam a pessoa nua no meio da rua. É crueldade demais”, diz.
A droga é outro risco que ronda as vítimas do esquema. Duas
travestis amigas de Bruna, de Rio Preto e José Bonifácio, acabaram se viciando
em cocaína e contraíram o HIV. Morreram em novembro do ano passado e foram
enterradas como indigentes em Roma, devido ao custo para o traslado do corpo -
12 mil euros.
No início deste mês, as cafetinas de Amanda e Bruna na
Itália foram presas em uma operação da polícia romana contra uma rede de
prostituição na cidade. No total, 28 foram detidos, acusados de associação para
o tráfico de seres humanos e incitação à prostituição.
O tráfico em ‘Salve Jorge’
O aliciamento de mulheres no Brasil para exploração sexual
na Europa é tema da novela “Salve Jorge”, que estreou há duas semanas na TV
Globo. A protagonista é a carioca Morena, interpretada pela atriz Nanda Costa,
moradora do Complexo do Alemão, que cai em um esquema comandado por Lívia
(Cláudia Raia) e viaja ao Exterior acreditando que trabalhará como garçonete -
quando, na verdade, será encaminhada a uma casa de prostituição.
Jéssica (Carolina Dieckmann) e Rosângela (Paloma Bernardi)
estão entre as outras jovens enganadas pela vilã e suas comparsas Irina (Vera
Fischer) e Wanda (Totia Meirelles). “A novela é a oportunidade de se discutir
com mais profundidade no Brasil um tema tão complexo e preocupante”, diz a
deputada Flávia Morais (PDT-GO), relatora da CPI do Tráfico de Pessoas.
Segundo ela, os grandes grupos que traficam pessoas já
aliciaram 2,5 milhões pelo mundo e movimentam US$ 30 bilhões por ano, atrás
apenas do tráfico de drogas. Além da prostituição, as máfias também se valem do
tráfico de seres humanos para o trabalho escravo e transplante de órgãos.
Fonte: diarioweb
Nenhum comentário:
Postar um comentário