quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Saúde e Salvação: Duas irmãs inseparáveis


Maria Clara Bingemer
E chegou a Quarta-Feira de Cinzas, parece que finalmente o ano vai começar. No Brasil, o Carnaval é o marco que finaliza a série de festas, férias e viagens iniciadas no Natal.  O Carnaval é o selo que diz: “Ao trabalho”. Mas, para nós, que vivemos a fé em Jesus Cristo, diz algo mais: “Convertei-vos e crede no Evangelho”.

 Ao receber a cruz feita de cinzas sobre a testa, milhares, milhões de católicos no mundo inteiro estão comprometendo-se a entrar num caminho de conversão, na penitência, na prática mais intensa da ascese e das virtudes, no deixar para trás os velhos hábitos e revestir-se dos novos em Cristo.
A Conferência dos Bispos do Brasil a cada ano procura marcar esse tempo qualificado de viver a conversão ao Evangelho com a Campanha da Fraternidade.  Com um tema central e materiais diversos disponíveis para os fiéis refletirem e se aprofundarem é um serviço inestimável ao povo de Deus, para viver melhor e mais qualificadamente os 40 dias que o separam da Páscoa, mistério maior da sua fé.
 Este ano o tema é a saúde. E pode-se pensar: o que tem a Igreja a ver com o tema da saúde?  É algo que compete ao governo e à iniciativa privada.  Com todo o respeito, saúde é um dos temas mais teológicos que existem.  E isso radica em sua própria etimologia.  A palavra latina para dizer saúde é “salus”, que se traduz por “salvação, conservação da vida”.
O tema da saúde nos conduz de maneira bela e profunda a entender o coração da nossa fé.  Aprendemos no catecismo que Jesus Cristo é nosso salvador, que veio nos trazer a salvação.  Mas quantas vezes nossa compreensão do que seja salvação é algo meio curto e mecânico!  Parece que Deus criou tudo bem, nós estragamos, e o Verbo se encarnou para “remendar” nosso estrago.
Não é isso, não é só isso, graças a Deus é muito mais que isso! A Encarnação, centro indiscutível de nossa fé, é mistério de vida e vida em plenitude.  Não foi apenas para reparar estragos ou lacunas que Deus enviou seu filho na plenitude dos tempos, nascido de mulher.  Foi para revelar-nos que o desejo mais profundo desse Deus que ele nos ensinou a chamar de Pai é conduzir-nos à vida, e vida em abundância.
 E essa vida abundante, que jorra generosamente do coração de Deus, toca e integra todas as dimensões do ser: corporeidade, psiquismo, sensibilidade, espiritualidade. Não se trata, pois, do fato de que cuidar da saúde física é algo material que não interfere nada com a saúde espiritual.  Pelo contrário, todas essas dimensões devem ser cultivadas com igual carinho, dedicação, para que não sejamos pessoas hipertrofiadas em um dos polos do ser e atrofiadas em outro.
Isso é mais importante ainda quando vivemos uma época que tem como obsessão certa concepção de saúde. O culto ao corpo, a malhação incessante nas academias e ginásios, a busca exaustiva pela forma perfeita, na verdade não conduz à saúde plena. Pelo contrário, leva à atrofia de outras partes do ser que ficam reduzidas e diminuídas.  Não leva, pois, à saúde plena, por mais que pareça o contrário.
 Da mesma forma, o não cuidado do corpo, às vezes por negligência própria mas às vezes por não encontrar no atendimento público de saúde condições dignas e mesmo mínimas de manter a saúde, é desastroso.
A Campanha da Fraternidade enfoca todos estes aspectos.  Não apenas deseja “disseminar o conceito de bem viver e sensibilizar para a prá­tica de hábitos de vida saudável” como também “despertar nas comunidades a discussão sobre a realidade da saúde pública, visando à defesa do SUS e a reivindicação do seu justo financiamento”.         Buscando uma saúde que se entenda não apenas, nem somente, nem principalmente como ausência de doenças ou como padrão estético, chega-se mais perto da salvação. Não é à toa que o Evangelho nos mostra por muitas vezes Jesus muito próximo dos doentes, dando-lhes conforto e curando-os de suas enfermidades. Mas sua prática não se detinha aí. A partir da cura, ensinava-lhes que Deus, além de curar doenças, perdoa pecados; além de restaurar a saúde corporal, restaura também a totalidade da pessoa, reintegrando-a na comunidade para que possa louvá-lo e servi-lo plenamente.
Saúde e salvação são, portanto, duas irmãs inseparáveis.  Não se busca uma sem buscar a outra, e não se alcança verdadeiramente uma sem, ao mesmo tempo e inseparavelmente, ser alcançado pela outra.
Fonte: Jornal do Brasil

Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'Simone Weil - A força e a fraqueza do amor' (Ed. Rocco)

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