terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

As mulheres e o futuro da Igreja


Por  Joseph Moingt (a tradução é de Benno Dischinger)
Um traço importante da civilização ocidental no início do século XXI– seguramente o mais significativo há diversos milênios – se refere à condição da mulher que, após ter adquirido os seus direitos civis e se ter emancipado da tutela paterna e marital na segunda metade do século passado, está conquistando – porque a luta está bem longe de seu término – a igualdade com os homens no tratamento profissional e está abrindo para si um acesso equânime aos postos de responsabilidade mais altos em todos os âmbitos, econômico, cultural e político da vida social. 

Outro traço da evolução, - entre os mais importantes, - que apareceu no mesmo período e no mesmo espaço cultural, é o declínio da Igreja católica, cujo número de fiéis diminuiu tão velozmente quanto o de seus quadros pastorais, e que está perdendo aquele pouco que lhe resta da influência que exercia há 2.000 anos sobre a sociedade e sobre os indivíduos, a ponto de seu futuro próximo levantar questões angustiantes.
Há uma correlação entre estes dois aspectos da evolução que estamos vivenciando e, se é assim, qual deveria ser a condição da mulher na Igreja para interromper o declínio da Igreja e devolver esperança para o seu futuro? É este o objeto da presente reflexão.
Conflito no âmbito dos costumes
A Igreja se gaba de ter ela própria ensinado o respeito da mulher ao mundo pagão ou bárbaro, de sempre tê-la defendido e sustentado e de professar a eminente dignidade da mulher, chamada à mesma santidade do homem e, como prova deste fato universal, a Igreja elevou muitas mulheres às honras dos altares e também declarou diversas doutoras da Igreja, com o mesmo título de bispos e teólogos famosos. Esta dignidade está ligada, aos seus olhos, àquilo que define a dignidade da mulher no estado conjugal segundo a lei do Criador: a castidade, que exclui as relações sexuais antes e fora do matrimônio, e a maternidade, que destina a mulher à procriação, à educação dos filhos, ao apoio do marido, à união das famílias e ao bom governo da casa. A Igreja oferece como modelo Maria, Mãe de Jesus que conciliou em si, num grau extraordinariamente eminente, a castidade e a maternidade, e cujo destino mostrou claramente a dignidade que o cristianismo reserva à condição feminina.
Ora, aquela condição era a mesma prevista para a mulher pelos costumes das sociedades patriarcais e tradicionais, nas quais o povo da Bíblia havia meditado e transcrito a lei do Criador e no qual a Igreja nascera e depois se desenvolvera, sem procurar transformá-la, a não ser no sentido que ela sempre empregou – é justo reconhecê-lo -, de defender as mulheres contra os maus tratos que as ameaçavam, de proteger as famílias, favorecer a instrução das meninas e também, mais recentemente, o seu ingresso na vida profissional e civil. Isso não desdiz que aquela condição limitava fortemente os seus horizontes de vida e suas ambições mais legítimas e as mantinha em clara situação de inferioridade em relação aos homens.
Mas, a mulher da era moderna acabou por emancipar-se disso, beneficiando-se da evolução da cultura, das ciências e das técnicas, em particular com a ajuda – ou ao preço? – da “libertação sexual” e do controle dos nascimentos. E é sobre este ponto que a emancipação da mulher se chocou com a viva resistência da Igreja católica, que multiplicou os apelos à lei natural e divina que liga, segundo ela, o ato sexual à procriação, e as condenações do uso de qualquer preservativo ou método anticoncepcional. Sentindo-se incompreendidas, desprezadas ou atacadas pela Igreja, muitas mulheres começaram então e continuam sempre mais a deixá-la, enquanto a confiança daquelas que lhe permaneciam fiéis, - embora endereçando sua vida sexual segundo sua própria consciência -, era e permanece consideravelmente abalada.
Após ter perdido grande parte do mundo operário e depois do mundo intelectual, a Igreja perdia, no terreno dos costumes, amplas faixas do mundo feminino que, em todo o caso, fornecera no século passado a maior parte de suas tropas. Desde quando estabelecera a regra de batizar as crianças desde o seu nascimento, era papel da mulher despertá-las para a fé e para a devoção e depois educá-las na obediência às regras da moral e às práticas religiosas. No lugar do padre que instruía os catecúmenos adultos nos séculos precedentes, era a mulher que então assegurava o crescimento da Igreja na sociedade através do fluxo das gerações. Mas, eis que a mulher da época moderna, - emancipada das estruturas nas quais a aprisionavam as sociedades tradicionais, - foge à vocação de gerar pequenos cristãos que lhe era assinalada pela tradição da Igreja. Esta última tende, então, a opor-se o mais possível à emancipação da mulher, que chega, então, a ver na Igreja o maior obstáculo à própria promoção social. Esta hostilidade recíproca compromete gravemente o futuro do catolicismo (1).
No terreno da cidadania
As mulheres não eram e não são somente as mais numerosas entre os fiéis, eram e são também, mais do que nunca, as mais ativas em todos os âmbitos nos quais se edifica a Cidade de Deus em meio aos homens. Entre elas havia muitas religiosas, e ainda as há, mas sempre em menor número, vista a rarefação das vocações ao estado religioso, de modo que as mulheres laicas são, há muito tempo, as principais auxiliares do clero. Ocupam postos de responsabilidade na maior parte dos campos da vida da Igreja: catequese e catecumenato, movimentos de Ação Católica e de espiritualidade, ensino religioso e também teológico, obras missionárias, serviços pastorais de animação litúrgica, de preparação ao batismo, ao matrimônio, às exéquias... Em muitos lugares elas ainda são, vista a distância e a raridade de padres, o único sustento da vida paroquial. – São? Eu me apresso a corrigir-me: elas eram e não são mais “responsáveis” de nada, porém tudo continua a depender delas em ampla medida.
Na esteira do Vaticano II não se hesitara confiar-lhes responsabilidades em todos os níveis, paroquial, diocesano, regional, nacional. Conheço até um caso (sem dúvida houve outros) no qual uma mulher (por certo qualificada no plano teológico) recebera devido mandato de seu bispo para assegurar a homilia e a animação da eucaristia dominical. Mas, uma reviravolta teve lugar desde os anos 80 e só se acentuou desde então. Ah! Conta-se sempre e mais do que nunca com a ajuda das mulheres: como se poderia deixar de fazê-lo? Mas, que permaneçam em seu lugar de servas dóceis, bem enquadradas em equipes “pastorais” sob responsabilidade “sacerdotal”.
Um pouco por toda parte e em todos os setores elas tem sido afastadas, não – uma vez mais – das atividades que lhes tinham sido confiadas, mas de sua animação, direção e orientação. De quanto pude ler e ouvir dizer, o motivo era a vontade de restaurar a “identidade” dos padres, perturbada, se pensava, pela perda de funções que lhes haviam sido confiadas até aquele momento, e da consideração que lhes estava ligada, a perda de identidade que se considerava pudesse explicar também a trágica diminuição das vocações ao estado presbiteral. Em todas as dioceses foram multiplicados os apelos ao “diaconato permanente” para reconduzir, sob a obediência e a especificidade do sacramento da ordem, o máximo possível das responsabilidades que haviam caído no âmbito do laicato. Esta motivação referia-se, pois, tanto aos homens como às mulheres, mas estas últimas eram as primeiras a serem atingidas, já que eram mais numerosas no serviço da Igreja.
Todavia, manifestou-se a vontade da hierarquia de afastar as mulheres, elas em particular, de tudo aquilo que se refere ao serviço do altar e dos sacramentos, a ponto, um pouco ridículo, de proibir a tendência de escolher coroinhas entre as meninas. O motivo, claro ou realmente admitido, era o temor de encorajar nas mesmas o desejo do sacerdócio. Com efeito, ordenações de mulheres ao presbiterado tinham ocorrido, muito oficialmente, em diversas Igrejas anglicanas que se vangloriavam precedentemente de permanecerem fiéis ao rito romano, e também mulheres católicas tinham conseguido fazer-se ordenar padres de maneira “selvagem” em diversos países: a questão preocupava a opinião pública católica e teólogos sérios sustentavam a possibilidade de se proceder a tais ordenações. O papa João Paulo II considerara fechar o debate com uma recusa “definitiva” (2), e seu sucessor o recordou recentemente, uma prova de que o debate não está efetivamente encerrado (3).
A maioria das mulheres empenhadas na Igreja está bem longe de ter a ambição do presbiterado ou de reivindicar poder; isso não exclui que se sintam ofendidas pela desconfiança de que se sentem objeto, tanto que a imprensa, intervindo neste debate, recrimina frequentemente o papado uma discriminação entre os sexos, contrária aos direitos humanos. Estas mulheres, que tem podido ser o que ainda são, em postos de responsabilidade tanto na vida civil como profissional, vêm muito bem que a Igreja não está disposta a conceder-lhes os direitos e as competências equivalentes àqueles que tem adquirido na sociedade. Muitas delas, desencorajadas, vão embora e muitas outras, que freqüentavam a Igreja sem se terem posto ao seu serviço, humilhadas pelas proibições e pelas exclusões que golpeiam seu gênero, a abandonam e sua recusa de lhes reconhecer uma “cidadania” de pleno exercício não faz senão aumentar a hemorragia da qual a Igreja corre o risco de morrer.
 Ampliar os elos da tradição
Causar-nos-á estupefação uma conduta “suicida” que priva a Igreja do único apoio ativo à sua disposição, dissuadindo as mulheres de se ocuparem da educação religiosa dos filhos como no passado, e arruína sua credibilidade perante uma sociedade “definitivamente” convicta da promoção da mulher. Ao que ela opõe sua tradição imemorável que a proíbe de adaptar-se aos costumes e à evolução do mundo contrários à lei de Deus. Mas, não é o caso de identificar ambos, a mulher e o mundo?
No plano da moral, a Igreja conecta o uso da sexualidade ao matrimônio legítimo e à procriação, em virtude de uma lei natural que tem Deus como autor e de quem ela tem a custódia. Mas, os antropólogos sabem muito bem que as regras matrimoniais são um fato de convenções sociais que variam segundo as épocas e os lugares: o que os moralistas antigos consideravam como “lei natural” não era indene aos costumes sancionados pela lei civil. E, quando se faz apelo à “natureza”, se lhe submete o regime da razão comum.
Certamente esta última está sujeita a variações e erros, mas nem sequer a moral da Igreja é disso isenta e frequentemente é com sabedoria que ela soube tomar em conta certas evoluções dos costumes. Hoje, por exemplo, embora professe que os jovens casais não desposados “vivam em pecado”, os acolhe com bondade para prepará-los ao matrimônio sacramental ou para batizar os seus filhos. Vozes autorizadas sempre mais numerosas preconizam uma acolhida similar nas comunidades cristãs em benefício dos divorciados redesposados.
A Igreja deveria aceitar um livre debate sobre as questões éticas que interessam a todas as sociedades e participar dele ela própria, sem arrogar-se um direito exclusivo e absoluto de ensinamento. Sua condenação do uso dos preservativos, único meio unanimemente reconhecido de propagação da AIDS, tem fortemente denegrido seu crédito junto aos organismos internacionais que se preocupam por este flagelo (4); tristíssimos reatos sexuais cometidos por padres e “encobertos” por sua hierarquia deveriam incitá-la a revestir-se de maior modéstia. Que ela não queira debater com uma opinião pública hostil a quaisquer regras morais, se entende; mas, poderia dar confiança aos seus teólogos e aos fiéis instruídos também eles pelo Espírito Santo, acima de tudo às mulheres, as primeiras envolvidas. Sua consciência e experiência, sobre as quais mereceriam ser escutadas antes que se decida sobre sua sorte da parte de machos celibatários. A Igreja talvez tivesse medo de perder poder consultando os seus fiéis? A alternativa é perdê-los.
Ainda é uma questão de poder que a impede de fazer espaço, nos seus organismos dirigentes, às mulheres que trabalham para ela. Se sua tradição se abstinha delas, o motivo é o mesmo de outras sociedades que precisaram muito tempo para libertar-se do seu espírito patriarcal, feudal ou corporativo. Aqui não se trata somente da ordenação das mulheres ao presbiterado. Sem ser totalmente hostil à mesma, jamais a defendi, como também não a ordenação de homens casados ou a revogação da lei do celibato sacerdotal, pela única e simples razão que o poder da Igreja se conecta ao que é sagrado e que o interesse da fé não é o de estender o âmbito do sagrado, mas de temperar o poder e, por isso, de compartilhá-lo fora do sagrado. Com efeito, no nosso mundo laicizado e secularizado, isto é democrático, a fé só pode perecer se for privada da liberdade à qual Cristo chama todos os cristãos segundo as palavras de são Paulo (5), - o qual sem dúvida recordava que a única vez em que Cristo havia falado de poder, era para proibir aos seus apóstolos que o usassem à maneira dos poderosos que gostam de impor o seu domínio e fazê-lo ver e sentir (6).
Eis porque o remédio ao perecimento da Igreja na era presente parece-me que seja o de pôr resolutamente em ato as recomendações do Vaticano II, ao invés de olhar para ele com suspeita e de agir em sentido contrário (7). Ou seja: deixar maior liberdade de iniciativa e de experimentação às Igrejas locais: preocupar-se menos em reforçar as estruturas administrativas da instituição do que de fazer viver as comunidades de cristãos, mesmo pequenas, lá onde residem. Chamar os cristãos a assumirem a responsabilidade de seu serem-cristãos ou de seu viverem-na-Igreja;  e isso não individualmente nem somente entre eles, mas em comum e em concretização com a autoridade episcopal. Dar maior confiança a uma liberdade criativa antes do que à obediência passiva; fazer ingressar leigos, devidamente delegados por suas comunidades, nos lugares onde se tomam as decisões pastorais, em todos os níveis e em paridade com o clero, e não somente em grupos de simples consulta. E deixar entrar as mulheres nestes lugares de decisão em paridade com os homens.
Por que em paridade? Para não erigir a Igreja a símbolo de uma contracultura. – Portanto: para abrir-se ao espírito do mundo, malgrado São Paulo que exorta os cristãos a “não conformar-se ao século presente” (8)? Não, mas para melhor abrir o mundo à penetração no mesmo do espírito evangélico. Não é mais a época em que a Igreja instruía povos bárbaros ou populações incultas e iletradas. Agora ela se dirige a um mundo “adulto” e não pode mais amestrá-lo do alto da cátedra; deve reconhecer os seus valores para fazê-lo escutar sua palavra.
– Então: adaptar-se aos valores de um mundo secularizado? Não exatamente, porque muitos daqueles valores são o fruto de sementes evangélicas que a Igreja lançou no mundo no decurso de sua vida comum e, é sobretudo assim para as idéias de liberdade e de igualdade, das quais nasceu a emancipação da condição feminina, tem podido ser desviados do seu sentido original e produzir frutos disformes, o que não impede que a Igreja poderá reendereçá-los e regenerá-los somente reconhecendo sua proveniência evangélica, e pode fazê-lo somente deixando que aquelas mesmas idéias  produzam frutos no seu interior, do qual ela os havia expulsado. É assim que o reconhecimento efetivo da emancipação da mulher, na Igreja como no mundo, se tornou a condição de possibilidade de uma evangelização do mundo. E, já que a missão evangélica é a razão de ser da Igreja, a nova acolhida que ela reservará à mulher será o “símbolo” operante de sal presença evangélica no mundo de hoje, bem como a garantia de sua sobrevivência. A mulher não veste mais corpetes ou espartilhos, vestes que a constringem: também a Igreja deve emancipar-se da tradição que a liga às sociedades patriarcais do passado para dar-se, com o espaço que saberá dar às mulheres, o direito de sobreviver neste novo mundo (9).
Reler o evangelho no feminino plural
A Igreja está habituada a interpretar as Escrituras fazendo apelo à sua tradição. Em rigor teológico, tem maior legitimidade o contrário; e, quando a tradição não tem respostas a problemas novos e recusa as respostas que se propõem, o recurso às Escrituras se impõe com pleno direito. É isso que fez João Paulo II quando queria tomar uma decisão sobre a questão da ordenação das mulheres: notou que Jesus, querendo constituir o seu colégio apostólico no termo de uma noite de oração, não fez apelo à mais digna das criaturas, sua mãe, e deduziu que as mulheres tinham sido, por este fato, deliberadamente afastadas do sacerdócio (10). Mas, Jesus não nutria nenhum projeto no sentido de instalar sua Igreja na duração do tempo, ele que não a via senão em termos de Reino de Deus, e não havia dado aos seus apóstolos nenhuma instrução de tipo institucional, já que estes, na tarde de sua Ascensão, davam por certo seu próximo retorno para restaurar o reino de Israel (11). O Papa também havia notado que Jesus, rompendo neste ponto com o costume de sua época e de seu país, se circundava voluntariamente de companhia feminina: e esta observação merece ser tomada em consideração, mas em sentido posto às conclusões negativas que produzia.
Os encontros de Jesus com algumas mulheres não têm, de fato, nada de anódino, de casual, e é para a nossa instrução que eles tem sido referidos. Jesus manifesta sua glória pela primeira vez em Cana sob solicitação de sua mãe; em diversas ocasiões erige mulheres como modelos de fé e realiza curas que atribui à sua fé; da unção recebida de uma mulher na vigília de sua morte faz um memorial de sua paixão que prescreve seja transmitida às gerações futuras. Dá crédito às duas irmãs, suas amigas, Marta e Maria, como autênticas discípulas, recebendo de uma delas o melhor testemunho de sua divindade: “Tu és a Ressurreição e a Vida”, e apresentando a outra como o perfeito receptáculo de sua Palavra: “Maria escolheu a parte melhor, que não lhe será tirada”. Enfim, é a outra mulher, outra amiga, Maria de Mágdala, que aparece por primeira vez na saída do túmulo e a quem confia a mensagem de sua ressurreição, a fim de que ela comunique a Boa Nova as seus apóstolos (12).
Destes exemplos, por eloquentes que sejam (conviria, sem dúvida, procurar outros), evitarei deduzir argumentos em favor da ordenação das mulheres, já que Jesus jamais pronunciou a palavra sacerdócio; porém recebo a clara indicação de que ele acreditou nelas, que se confiou a elas, que confiou a elas seu Evangelho, como aos seus apóstolos, talvez de modo diverso: não as envia a percorrer o mundo, mas de modo não menos autêntico: faz delas transmissoras da missão que havia recebido do Pai d difundir a Vida no mundo. Desta forma, convidava sua Igreja a retirar recursos igualmente das mulheres para continuar sua obra. Em suma, não pode ser deduzido nenhum princípio de exclusão das palavras ou dos exemplos de Jesus, em nada diversos de uma insistente exortação a não temer de encarregar do ministério do Evangelho qualquer um, homem ou mulher, uma vez que tenha bastante fé nele para oferecer-se a esta tarefa: porque somente ele dá a força de levá-la em frente e de fazer que produza frutos.
São Paulo, não querendo mais conhecer Cristo “segundo a carne”, consciente que ele havia renovado a velha humanidade com sua morte e sua ressurreição, deduziu disso o único princípio fundador do cristianismo, a exclusão de qualquer exclusivismo: “Já não há judeu nem grego, já não há mais escravo nem livre, não há mais homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (13). Ele não querida dizer que não há mais diferença entre os dois termos de cada casal, mas que nenhuma dessas diferenças podia ser, no corpo de Cristo que é a Igreja, fonte de divisão ou de exclusão. Embora não tenha talvez podido ou sabido deduzir todas as consequências (14), Paulo enunciava assim o princípio fundador das sociedades abertas, liberadas das oclusões das sociedades antigas, o que permitiu à mulher dos tempos modernos livrar-se da opressão do homem e reivindicar a igualdade com ele. E a instituição eclesial não tem outra lei orgânica.
Por um pouco de sexo frágil...
O simples fato de pertencer ao “sexo frágil”, como o define uma tradição orgulhosamente “machista”, poderia ser motivo de discriminação e de eliminação numa Igreja que deduz o seu orgulho e sua força da debilidade da Cruz? Jesus não encontrava imagens suficientemente humildes, suficientemente comoventes para falar do seu Reino: as flores dos campos, o grão de trigo, uma moedinha perdida, a ovelha perdida, o dono da casa em vestes de serviço... Ele próprio não carecia de qualidades geralmente atribuídas ao sexo feminino: intuição, sensibilidade, compaixão, a arte de atrair as confidências, e também da debilidade: cedia às vezes à sua mãe, mas evitava seus seguimentos e lhe ocorria explodir de alegria, de cólera ou de encher-se de lágrimas, e sabia sofrer, esperar, suportar como poucos homens são disso capazes. Introduzir na Igreja um pouco de feminilidade, sob a condição de lhe garantir um espaço no qual ela possa resplandecer, será ampliar-lhe a parte de humanidade demasiado reduzida ou mascarada por um poder exclusivamente masculino e sacro, isto é, intolerante.
Mas, repito, o primeiro problema não é dar poder às mulheres. Não nos embalemos em idéias idílicas: encontrar-se-iam facilmente mulheres extasiadas pela idéia de entrar no personagem do padre, transmitindo-nos igualmente uma dose de sedução da qual se sabe que torna o poder mais perigoso. Trata-se, acima de tudo, de renovar o terreno das comunidades cristãs, de nelas instaurar liberdade, alteridade, igualdade, corresponsabilidade, cogestão, de nelas deixar penetrar as preocupações do mundo exterior, de tornar as celebrações mais conviviais, à imagem das primeiras refeições eucarísticas nas quais se compartilhava o pão e os víveres sob a presidência benévola de um pai de família, sem esquecer o princípio paulino de excluir tudo aquilo que exclui. Nesta nova atmosfera o compartilhamento do poder apresentar-se-á sob nova luz. Ser-nos-á recordado que o “presbiterado” dos primeiros séculos, cujo nome tem sido reintroduzido, não tinha grande dose de algo sacerdotal, sendo então o sacerdócio reservado ao biso, e se será capaz de reinventá-lo, de selecionar a tremenda relação entre poder, sexo masculino e sagrado.
Não se correrá, então, o risco de subverter o poder monárquico sobre o qual a tradição construiu a organização da instituição eclesiástica? Talvez, mas devemos apavorar-nos em relação a isso antecipadamente? Não é, talvez, a propósito de uma mulher e de sua boca que foi profetizado: “Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes”? (15) Não se trata de subverter seja o que for, mas de exaltar o que é injustamente mortificado.
 A mulher é o futuro da Igreja? A mulher é e será o futuro da Igreja.
 Notas:
(1) A Revista Esprit de fevereiro de 2010 publicou dois artigos de grande interesse sobre “o declínio do catolicismo europeu” que tratam particularmente da relação da Igreja com as mulheres. O historiador Claude Langlois, em “Sexo, modernidade e catolicismo. As origens esquecidas”, analisa a evolução das Congregações romanas desde 1820, passando de uma “compreensão pastoral” pelas práticas sexuais ao “rigorismo” atual (p. 110.121). A socióloga Catherine Grémion, em “A decisão na Igreja. Contracepção, procriação assistida, aborto: três momentos-chave”, mostra a trágica consequência das decisões dos últimos três papas nesta matéria sobre o êxodo crescente dos fiéis para fora da Igreja (p. 122-133).
 (2) Com a Carta Ordinatio sacerdotalis de 1994 que requer “um assenso definitivo” à doutrina que exclui a mulher do sacerdócio, por motivos que expõe mais adiante. Eu analisara o alcance deste documento num Editorial intitulado “Sobre um debate encerrado”, da revista Recherche de Science Religieuse, nº 3 de 1994 (tomo 82) p. 321-333.
(3) La Croix de 14-07-2010 apresenta um documento da Congregação da Doutrina da Fé, publicado na véspera, que define toda tentativa de ordenar uma mulher como padre um “delito grave contra a fé”, enquanto “ofensa à ordem sagrada”.
(4) Um livro recente do papa Bento XVI, Luz do mundo, parece anunciar uma leve mudança da posição da Igreja sobre este ponto.
(5) Gálatas 5,1: “É para que fôssemos verdadeiramente livres que Cristo nos libertou”.
 (6) Lucas 22, 24-25: “Os reis das nações governam, e os que exercem poder são chamados benfeitores. Entre vós, todavia, não seja assim”.
(7) Ver os cap. II, “O povo de Deus” e IV, “Os leigos”, da Constituição Dogmática da Igreja.
(8) Romanos 12, 2.
(9) Leio numa entrevista do sociólogo Alain Touraine, publicada em Le Monde de 5 de setembro de 2010: “Há dois suportes de mudança já ativos. O primeiro é a ecologia [...]. O segundo é que estamos passando de um mundo de homens a um mundo de mulheres. As mulheres, tendo sido do lado do pólo frio de que falava Lévi-Strauss, querem passar à parte quente, para recolocar tudo junto, o corpo e o espírito, o homem e a mulher, os seres humanos e a natureza, etc. Tudo isto explode neste momento, embora não seja muito sentido pelo público [...].”
(10) O essencial da argumentação de João Paulo II (v. nota 2) deriva de uma intervenção de Paulo VI em 1975 e de uma declaração da Congregação para a Doutrina da Fé aprovada em 1976.
 
(11) Atos, I, 6.
(12) João 2, 1;  Mateus 9, 22; Marcos 14, 3-9; João 11, 27 e Lucas 10, 38-43; João 20, 11. 18.
(13) Gálatas 3, 28.
 (14) Não condenou a escravidão, nem rejeitou a submissão da mulher ao marido: era de sua época. Mas, excluía estas desigualdades da Igreja, e é assim que fez evoluir o costume.
 (15) Lucas 1, 52.


Fonte: Ihu

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