sábado, 6 de agosto de 2016

"Venci a pobreza, a depressão e me tornei maratonista olímpica”

(Foto: Getty Images)
A maratonista Adriana da Silva começou a correr aos 12 anos para ajudar a família. Mas sua trajetória dentro do esporte foi marcada por muito obstáculos - pobreza, lesão depressão e a quase desistência. Hoje, ela celebra recordes mundiais e é a líder brasileira das Olimpíadas de 2016.


Para ajudar a família, Adriana da Silva, 35 anos, começou a correr. Com os prêmios, comprou a casa em que mora e foi contratada como atleta profissional. O futuro promissor, no entanto, sofreu uma reviravolta quando uma lesão no tornozelo a tirou de cena. A atleta perdeu os patrocínios e ficou meses sem andar. Entrou em depressão profunda e quase desistiu da carreira. Com um pouco de sorte – e a ajuda de um treinador –, conseguiu se recuperar e deu a volta por cima. Foi bicampeã dos Jogos Pan-Americanos, bateu recordes e é a líder brasileira das Olimpíadas de 2016.

"Nasci em uma família pobre de Cruzeiro, interior de São Paulo. Sou a terceira de quatro filhos, a única menina. Meu pai saiu de casa quando eu tinha 3 anos. Deixou minha mãe, Jandira, com as crianças e sem condição de sustentar a casa. Ela lavava roupas para fora e não podia arcar com tantas despesas. Apesar de viver apertado, meu tio nos ofereceu dois cômodos no terreno onde morava. O lugar era tão improvisado que, quando chovia, entrava água até pelos buracos da parede. Lembro da minha mãe, de madrugada, nos cobrindo com sacos plásticos para ninguém sentir frio. Comer também não era fácil. Muitas vezes, batíamos na casa dos vizinhos pedindo sobras. Quando não tinham nada para repartir conosco, ela colocava a gente para dormir mais cedo. Achava que o sono enganaria a fome. Era precário, mas era o que tínhamos.

Nossa diversão sempre foi na rua. Aguinaldo, meu irmão dois anos mais novo, era meu parceiro de aventuras. Vivíamos inventando coisas para fazer. Gostávamos de tocar a campainha das casas e fugir, ou brincar no parque com a turminha do bairro. Apesar da dureza, minha mãe fazia questão de que todos os filhos frequentassem a escola e acompanhava os resultados com firmeza. Um dia,  de bobeira, Aguinaldo lembrou que haveria uma corrida entre os moradores de Cruzeiro, em comemoração ao aniversário de uma empresa da cidade, e insistiu para participarmos. Eu tinha 12 anos. Dei risada. Pensei: ‘Nunca vou aguentar correr 5 quilômetros’. Mas ele me convenceu de que poderia ser divertido.

Mal acreditei quando me vi no centro do pódio, segurando o troféu dourado quase maior do que eu. Sem nunca ter corrido, venci a competição. Cheguei em casa toda contente, sem fazer ideia do que era atletismo. No mesmo dia, o treinador de Cruzeiro, Carioca [Jorge Luiz Ribeiro], me convidou para correr no Papa-Léguas, o time da cidade. Não estava levando muito a sério, mas fui. No interior, qualquer novidade é uma alegria. Subi ao pódio logo na primeira competição e, junto com a medalha de ouro, recebi R$ 50. Entrei em casa ainda mais eufórica do que da vez anterior. Minha mãe, que não tinha dia certo para receber, nunca podia comprar tudo o que precisávamos. Saímos imediatamente e, pela primeira vez, entramos no supermercado empurrando um carrinho de compras. Foi naquele momento que decidi deixar a infância para trás e me dedicar totalmente ao esporte.

Assim, aos 12 anos, magrela e de canelas finas, mergulhei de cabeça na carreira. Nada me dava tanta satisfação quanto chegar em casa com o bolso cheio. Com o patrocínio que a cidade me ofereceu, nossa vida deu um salto. Ganhava o tênis, o uniforme de corrida e R$ 300 mensais que dava direto para a minha mãe. Era uma fortuna para nós. Comecei a juntar os prêmios em dinheiro que recebia para no futuro, quem sabe, comprar uma casa para ela. Depois de 11 anos sem um único dia de folga, estava pronta para alcançar meu sonho: o pódio da São Silvestre [tradicional corrida de São Paulo, realizada todo 31 de dezembro]. O ano era 2004, meus irmãos já haviam casado e eu estava ainda mais agarrada à minha mãe. Era nela que pensava cada vez que ultrapassava alguém na pista. Por ela, treinava cada vez mais pesado. Fui a terceira a cruzar a linha de chegada, resultado que nunca pensei alcançar. O bronze trouxe mais dois patrocínios e a minha renda subiu de R$ 400, que era a ajuda de custo que o clube me dava, para R$ 3.200 mensais. Com o dinheiro do prêmio e mais o que tinha guardado, consegui comprar a casa tão desejada. Era uma virada grande na vida, estava cheia de energia e completamente entregue ao esporte.



Chegada no Pan-Americano de Toronto (Foto: Getty Images)


Jamais poderia imaginar que aquela alegria duraria menos de um ano. O excesso de esforço físico provocou uma torção no pé esquerdo e acabei numa mesa cirúrgica. Era uma inflamação no tendão que exigia seis meses de recuperação. Apesar de louca para voltar às pistas, estava tranquila. Ganhava bem e logo estaria curada. Mas nada aconteceu como havia imaginado. Já no primeiro treino após a reclusão, torci de novo o pé operado e vi meus sonhos se esvaindo. Em menos de cinco semanas, recebi o primeiro e-mail cancelando o patrocínio e, poucos dias depois, mais um. Só a cidade manteve o apoio financeiro de R$ 400. Parecia que eu havia voltado no tempo, à época de miséria. Com a diferença que, naquele momento, eu não podia fazer nada para reverter a situação. Me sentia inútil, um peso morto. Tinha dor até para andar do quarto à cozinha. Por causa da corrida, abri mão de tudo: nunca tive namorado, não fiz faculdade... Entrei em depressão. Passei um ano chorando noites seguidas, baixinho para não preocupar minha mãe. Até que, um dia, passei mal e não conseguia descrever o que sentia. Na hora, ela me levou a um clínico geral que me receitou três remédios tarja preta. Minha carreira estava no fim. E eu não sabia fazer mais nada além de correr.

Foi quando recebi uma ligação que mudou novamente a minha vida. Cláudio [Castilho] era treinador de Rosângela, a atleta com quem dividi o quarto na São Silvestre, e ficou sabendo por ela da situação. Marcamos de nos encontrar no Clube Pinheiros, em São Paulo, onde ele trabalhava e do qual, atualmente, é diretor de esportes. Chorei muito quando o vi no alto da escada, na pista de atletismo, à minha espera. Estava de muletas diante da minha salvação. Cláudio acreditava no meu potencial. Pediu autorização para eu ficar no alojamento e usar toda a estrutura de fisioterapia do clube, até me recuperar completamente.

Concentrei todos os esforços nisso. Era a chance de me reerguer. Durante um ano, passava 15 dias por mês lá e o resto em Cruzeiro. Sei que minha mãe sofria com a ausência, embora não demonstrasse. Dizia que só queria me ver bem. Todas as noites, antes de dormir, eu chorava de saudade dela. Para me recuperar da depressão, meu treinador exigiu que fizesse terapia com a Carla [Di Pierro], psicóloga do Pinheiros que me acompanha até hoje. Nas consultas semanais, ela me mandava fazer outras coisas para ocupar a cabeça e não pensar só na lesão. Passei a devorar livros de autoajuda, de esportes, e ouvia música sem parar. Mesmo sozinha, conseguia me distrair. Cláudio me passava treinos leves, acompanhava minha melhora e me enchia de esperança. Em um ano, pronta para competir de novo, virei atleta oficial do Pinheiros. Minha primeira prova foi um trajeto de 10 quilômetros em São Paulo. Não queria nem ganhar, só precisava correr de novo. Sentia uma vontade enorme de voltar e medo nenhum. Cheguei em quinto lugar, transbordando de emoção. Estava recuperada e só pensava em seguir em frente. Tudo parecia entrar nos eixos. Ganhei novo patrocínio, me matriculei na faculdade [de Educação Física da Unip] e minha vida voltou a se estabilizar.

Dois anos depois, meu treinador me chamou para conversar. Disse que eu deveria correr maratonas, já que era mais resistente do que veloz [diferentemente das provas de velocidade que eu fazia, de 10 ou 21 km, a maratona tem 42 km]. Sua ideia era que eu estreasse na de Florianópolis para tentar uma colocação no mundial de Berlim. Decidi embarcar nessa e me preparei muito. No momento em que cruzei a linha de chegada em primeiro lugar, caí em prantos. Tremia e repetia para Cláudio: ‘Não acredito, não acredito’. E não acreditava mesmo. Venci a corrida e, com o tempo que fiz, automaticamente estava classificada para a prova na Alemanha. Era um mundo novo que se abria para mim. O próximo passo eram os Jogos Pan-Americanos, em Guadalajara, no México, em 2011. Treinei com vontade, pesado mesmo. Cláudio dizia que eu não só ganharia a corrida como bateria o recorde.

Mal sabia ele que havia uma mexicana com um tempo melhor do que o meu, tão querida que levou a torcida às ruas. Até o km 35, liderou a prova, seguida de uma peruana e comigo em terceiro lugar. Ultrapassei a segunda colocada e pensei: ‘A medalha de ouro está na minha frente’. O país inteiro gritava por ela. Até hoje ouço o coro no meu ouvido: ‘Sí, que puedo’ [em espanhol, ‘sim, você pode’]. ‘Essa gente vai me bater’, pensava, ‘mas vou ultrapassá-la.’ No km 38, enfim, consegui e, para minha surpresa, a plateia me aplaudiu. Nos 500 metros finais, vi Cláudio segurando uma bandeira do Brasil: ‘Vai dar recorde’, gritava. Dito e feito. Cruzei a linha de chegada e vi que, além de ganhar o ouro, havia batido a marca dos Jogos Pan­­Americanos. Em Cruzeiro, fui carregada pela cidade. Até desfile em carro de bombeiro teve!




A meta seguinte eram os Jogos Olímpicos de Londres, para os quais havia me classificado depois de bater os recordes brasileiro e sul-americano em Tóquio. A expectativa era grande. Nem em sonho achava que participaria de uma Olimpíada. Assim que pisei na pista, passou um filme da minha vida pela cabeça. Lembrava das muletas, dos dois anos em que acordei com dores, das crises de choro. ‘Consegui’, pensava. Eu, a única maratonista do Brasil no principal evento de esportes do mundo.

Na maratona, lida-se com a dor o tempo inteiro. Percorrer 42 quilômetros com chuva, sol, machucado é penoso. Mas consegui transformar minha experiência ruim em um trunfo: aprendi a superar a dor, física e psicológica, e decidi que ela jamais me venceria de novo. Fui a 47ª colocada em Londres e melhorei ainda mais minha marca. A próxima etapa seriam os Jogos Pan­Americanos de 2015, em Toronto, no Canadá. Já nem pensava no recorde, só no bicampeonato. Treinei até a exaustão, chegava a correr 215 quilômetros por semana e me sentia totalmente preparada. Subir ao pódio é sempre bom, mas confesso que senti uma pontinha de decepção ao receber a medalha de prata. Uma semana depois, recebi um telefonema da organização avisando que a vencedora havia sido desclassificada no exame antidoping. Em seu sangue, foi identificado o uso de diurético, que mascara outras substâncias ingeridas, e o bicampeonato era meu. Foi uma festa, Cláudio não cabia em si de felicidade.

Um mês depois, torci os dois pés durante o treino e passei sete meses parada. Era grave, havia rompido os ligamentos. Mas não me abati. Já conhecia os truques para superar momentos como aquele, não me afundaria outra vez. Após esse período, uma corrida em Hamburgo, na Alemanha, garantiu minha liderança nas Olimpíadas de 2016. Não vejo a hora de pisar na pista e, mais uma vez, mostrar a mim mesma que posso. Tenho certeza de que o calor da torcida brasileira vai me fazer reviver os Jogos PanAmericanos de Guadalajara. Só que, desta vez, a favorita serei eu.”

Fonte; Revista Marie Claire

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