Tem agressões muito sutis. E
muitas mulheres têm muita culpa. Muitas mulheres têm vergonha. E, se você me
perguntar o que eu aprendi nesse período todo, é não julgar. É uma questão
extremamente interessante, né? Porque as pessoas falam: ‘ah, apanhou tanto, foi
lá e voltou’. Ninguém pode julgar. Nós temos que mostrar a essas vítimas de
violência que existem saídas. E nossa obrigação é fazer cada vez mais aquela
saída se iluminar. Como? Mostrando que a justiça funciona. É assim que a gente
tem que agir, não julgando. O papel de julgamento é do Fórum.
O G1 ouviu 10 personagens para
abordar diferentes pontos de vista sobre a Lei Maria da Penha, que completa 10
anos. A seguir, leia o depoimento de Maria Domitila Prado Manssur, de 44 anos,
juíza da 16ª Vara Criminal do Fórum da Barra Funda e integrante da
Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder
Judiciário do Estado de São Paulo (Comesp):
“Sou juíza há 18 anos, sempre
feliz na carreira, sempre tentando verificar onde podemos prestar um serviço
melhor à comunidade. Também onde posso ser mais feliz. Acho que o trabalho,
além de enobrecer a pessoa, faz com que a gente se sinta mais viva. E, nesse
trabalho, as vítimas de violência doméstica me chamaram muito a atenção.
Nessa trajetória toda, eu sempre
falo que estava no momento certo e no local certo quando me deparei com essa
questão toda da violência doméstica contra a mulher. Eu sempre falo que todo
mundo já teve um contato com alguma vítima de violência doméstica em algum
momento da vida. Ou foi em alguma conversa informal, ou foi lendo alguma
noticia de jornal, ou foi vendo um episódio em que teve a possibilidade de
participar ou de tomar alguma providência.
É algo muito próximo da gente,
pois nossa sociedade ainda é machista e patriarcal. O que é isso? É uma
sociedade em que o homem tem uma situação de preponderância ou se entende em
uma situação em que ele se acha mais forte que a mulher. E a mulher está sempre
lutando para mostrar que está em uma situação de igualdade. E as leis tentam
que ela esteja.
Peguei aquele começo que achavam
que a Lei Maria da Penha era inconstitucional. O tribunal pensava assim: ‘ah,
será que é necessário instalar uma vara?’. Então fizemos as contas. Há nove
anos, tínhamos 37 processos. Hoje, nesse mesmo fórum, temos 30 mil processos.
Esse número comprovou que havia uma demanda represada, pois as mulheres, os
familiares e as pessoas próximas não sabiam que existia uma lei eficiente, uma
lei moderna, uma lei protetiva, uma lei com características fortes e com
possibilidades amplas.
É uma lei muito forte, que, hoje,
98% da população conhece. É uma lei que colou, e colou porque ela é muito
importante. E assim nós fomos caminhando.
Juíza (Foto: Arte/G1)
Nós vimos também, no ano passado,
a aprovação da Lei do Feminicídio. É importante porque uma questão de violência
doméstica familiar não bem resolvida acaba beirando uma tentativa de
feminicídio ou infelizmente um femicidio, que corre nas varas do júri. Essa é
uma tentativa nossa muito forte de interligar esses trabalhos das varas de
violência doméstica com as varas do júri.
Também trabalhamos com a questão
da conscientização da comunidade. Nós acreditamos no Brasil e nós queremos mostrar as ações positivas.
Nós tivemos ações que não deram certo? Nós tivemos. Mas nós tivemos também ações
que deram muito certo também, e queremos replicá-las.
Claro que o nosso país é muito
diferente. As realidades são muito diferentes. E toda mulher pode ser vítima de
violência doméstica e familiar. Então no estado x, existe a situação de uma
mulher que é vítima de violência doméstica e tem uma situação financeira
precária, e nós temos aqui em São Paulo uma mulher que tem uma situação de
estudo diferente e também é vítima de violência doméstica. Todas as mulheres
podem ser vítimas. Inclusive transexuais. É uma questão de gênero.
Tem agressões muito sutis. E
muitas mulheres têm muita culpa. Muitas mulheres têm vergonha. E, se você me
perguntar o que eu aprendi nesse período todo, é não julgar. É uma questão
extremamente interessante, né? Porque as pessoas falam: ‘ah, apanhou tanto, foi
lá e voltou’. Ninguém pode julgar. Nós temos que mostrar a essas vítimas de
violência que existem saídas. E nossa obrigação é fazer cada vez mais aquela
saída se iluminar. Como? Mostrando que a justiça funciona. É assim que a gente
tem que agir, não julgando. O papel de julgamento é do Fórum.
Juíza (Foto: Arte/G1)
Isso é um aprendizado. É muito
fácil a pessoa julgar quando não está dentro da situação. E é muito fácil a
pessoa julgar também quando não tem o entendimento desse caminho tão duro que é
pra mulher. É um caminho muito difícil. O caminho na delegacia é difícil, o
caminho na Justiça é difícil, o caminho no plantão é difícil, o caminho na
Defensoria Pública é difícil, no Ministério Público… Tudo é difícil. O caminho
da repetição é difícil, quando volta para casa é difícil. O caminho no
supermercado, quando você vai lá e vê algo que aquela pessoa que você já amou
gostava e você não vai mais comprar porque ela não está mais na sua casa… Tudo
são lembranças. É aquele caminho da decepção. Porque tudo isso mexe com
sentimentos.
E a mulher vítima… É
impressionante. Elas têm responsabilidade por tudo. Ela tem culpa por tudo. Tem
culpa porque, por alguma razão, elas acham que causaram a violência. Ou porque
o arroz não estava bom, ou porque não estava tão bonita, ou porque o filho está
indo mal na escola, ou porque o marido não teve tranquilidade para trabalhar ou
até porque o time dele não ganhou. E elas ainda têm responsabilidade pelo
processo. Então eu já falei muitas vezes: ‘a responsabilidade de julgamento não
é sua, a responsabilidade é minha’. Não foi você que processou: foi o
Ministério Público. Não foi você que condenou: foi o juiz.
É difícil ouvir essas histórias,
mas posso falar uma coisa? Nós somos acostumados a fazer isso. O que acho
importante é: primeiro, não fugir do que a lei estabelece e, segundo, querer
fazer o bem, mas não querer achar soluções impossíveis. Sonhar com soluções
possíveis. E não pode levar os casos para casa. Nós também temos que ter nossos
momentos de lazer. Nós também temos que ter nosso tempo para falar: ‘agora,
chega, não vou pensar mais nisso’.
E eu acredito demais na Justiça.
Hoje, eu estava brincando com as minhas filhas. Tenho três. Estava um sol tão
gostoso, aí eu comprei um monte de figurinha e elas ficaram lá, colando. E eu falei
assim: ‘ai, gente, sabe o que a mamãe estava pensando? Que gostoso, vou parar
de trabalhar, vou pedir minha demissão hoje’. E elas: ‘não, mamãe!’. E eu
falei: ‘como assim não?’. E elas: ‘não, mamãe, sabe por quê? A gente gosta
muito de falar que você é juíza. E a gente sabe que você gosta muito de ser
juíza’. E meu coração se encheu tanto. Elas sabem o quanto isso importa. E eu
fiquei olhando e pensando: ‘tomara que elas sejam três menininhas muito
bacanas, que elas façam alguma coisa que elas gostem muito de fazer e que elas
façam a diferença de alguma forma’, né? É isso que a gente espera.”
Clique na imagem e assista ao
vídeo:
Fonte: Globo
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