quarta-feira, 3 de agosto de 2016

‘As mulheres vítimas acham que causaram a violência’, diz juíza

 Maria Domitila Manssur é juíza da 16ª Vara Criminal da Barra Funda. G1 ouviu 10 personagens para abordar os 10 anos da Lei Maria da Penha.
Tem agressões muito sutis. E muitas mulheres têm muita culpa. Muitas mulheres têm vergonha. E, se você me perguntar o que eu aprendi nesse período todo, é não julgar. É uma questão extremamente interessante, né? Porque as pessoas falam: ‘ah, apanhou tanto, foi lá e voltou’. Ninguém pode julgar. Nós temos que mostrar a essas vítimas de violência que existem saídas. E nossa obrigação é fazer cada vez mais aquela saída se iluminar. Como? Mostrando que a justiça funciona. É assim que a gente tem que agir, não julgando. O papel de julgamento é do Fórum.


O G1 ouviu 10 personagens para abordar diferentes pontos de vista sobre a Lei Maria da Penha, que completa 10 anos. A seguir, leia o depoimento de Maria Domitila Prado Manssur, de 44 anos, juíza da 16ª Vara Criminal do Fórum da Barra Funda e integrante da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário do Estado de São Paulo (Comesp):

“Sou juíza há 18 anos, sempre feliz na carreira, sempre tentando verificar onde podemos prestar um serviço melhor à comunidade. Também onde posso ser mais feliz. Acho que o trabalho, além de enobrecer a pessoa, faz com que a gente se sinta mais viva. E, nesse trabalho, as vítimas de violência doméstica me chamaram muito a atenção.


Nessa trajetória toda, eu sempre falo que estava no momento certo e no local certo quando me deparei com essa questão toda da violência doméstica contra a mulher. Eu sempre falo que todo mundo já teve um contato com alguma vítima de violência doméstica em algum momento da vida. Ou foi em alguma conversa informal, ou foi lendo alguma noticia de jornal, ou foi vendo um episódio em que teve a possibilidade de participar ou de tomar alguma providência.

É algo muito próximo da gente, pois nossa sociedade ainda é machista e patriarcal. O que é isso? É uma sociedade em que o homem tem uma situação de preponderância ou se entende em uma situação em que ele se acha mais forte que a mulher. E a mulher está sempre lutando para mostrar que está em uma situação de igualdade. E as leis tentam que ela esteja.

Peguei aquele começo que achavam que a Lei Maria da Penha era inconstitucional. O tribunal pensava assim: ‘ah, será que é necessário instalar uma vara?’. Então fizemos as contas. Há nove anos, tínhamos 37 processos. Hoje, nesse mesmo fórum, temos 30 mil processos. Esse número comprovou que havia uma demanda represada, pois as mulheres, os familiares e as pessoas próximas não sabiam que existia uma lei eficiente, uma lei moderna, uma lei protetiva, uma lei com características fortes e com possibilidades amplas.

É uma lei muito forte, que, hoje, 98% da população conhece. É uma lei que colou, e colou porque ela é muito importante. E assim nós fomos caminhando.


Juíza (Foto: Arte/G1)

Nós vimos também, no ano passado, a aprovação da Lei do Feminicídio. É importante porque uma questão de violência doméstica familiar não bem resolvida acaba beirando uma tentativa de feminicídio ou infelizmente um femicidio, que corre nas varas do júri. Essa é uma tentativa nossa muito forte de interligar esses trabalhos das varas de violência doméstica com as varas do júri.

Também trabalhamos com a questão da conscientização da comunidade. Nós acreditamos no Brasil  e nós queremos mostrar as ações positivas. Nós tivemos ações que não deram certo? Nós tivemos. Mas nós tivemos também ações que deram muito certo também, e queremos replicá-las.

Claro que o nosso país é muito diferente. As realidades são muito diferentes. E toda mulher pode ser vítima de violência doméstica e familiar. Então no estado x, existe a situação de uma mulher que é vítima de violência doméstica e tem uma situação financeira precária, e nós temos aqui em São Paulo uma mulher que tem uma situação de estudo diferente e também é vítima de violência doméstica. Todas as mulheres podem ser vítimas. Inclusive transexuais. É uma questão de gênero.

Tem agressões muito sutis. E muitas mulheres têm muita culpa. Muitas mulheres têm vergonha. E, se você me perguntar o que eu aprendi nesse período todo, é não julgar. É uma questão extremamente interessante, né? Porque as pessoas falam: ‘ah, apanhou tanto, foi lá e voltou’. Ninguém pode julgar. Nós temos que mostrar a essas vítimas de violência que existem saídas. E nossa obrigação é fazer cada vez mais aquela saída se iluminar. Como? Mostrando que a justiça funciona. É assim que a gente tem que agir, não julgando. O papel de julgamento é do Fórum.


Juíza (Foto: Arte/G1)

Isso é um aprendizado. É muito fácil a pessoa julgar quando não está dentro da situação. E é muito fácil a pessoa julgar também quando não tem o entendimento desse caminho tão duro que é pra mulher. É um caminho muito difícil. O caminho na delegacia é difícil, o caminho na Justiça é difícil, o caminho no plantão é difícil, o caminho na Defensoria Pública é difícil, no Ministério Público… Tudo é difícil. O caminho da repetição é difícil, quando volta para casa é difícil. O caminho no supermercado, quando você vai lá e vê algo que aquela pessoa que você já amou gostava e você não vai mais comprar porque ela não está mais na sua casa… Tudo são lembranças. É aquele caminho da decepção. Porque tudo isso mexe com sentimentos.

E a mulher vítima… É impressionante. Elas têm responsabilidade por tudo. Ela tem culpa por tudo. Tem culpa porque, por alguma razão, elas acham que causaram a violência. Ou porque o arroz não estava bom, ou porque não estava tão bonita, ou porque o filho está indo mal na escola, ou porque o marido não teve tranquilidade para trabalhar ou até porque o time dele não ganhou. E elas ainda têm responsabilidade pelo processo. Então eu já falei muitas vezes: ‘a responsabilidade de julgamento não é sua, a responsabilidade é minha’. Não foi você que processou: foi o Ministério Público. Não foi você que condenou: foi o juiz.

É difícil ouvir essas histórias, mas posso falar uma coisa? Nós somos acostumados a fazer isso. O que acho importante é: primeiro, não fugir do que a lei estabelece e, segundo, querer fazer o bem, mas não querer achar soluções impossíveis. Sonhar com soluções possíveis. E não pode levar os casos para casa. Nós também temos que ter nossos momentos de lazer. Nós também temos que ter nosso tempo para falar: ‘agora, chega, não vou pensar mais nisso’.

E eu acredito demais na Justiça. Hoje, eu estava brincando com as minhas filhas. Tenho três. Estava um sol tão gostoso, aí eu comprei um monte de figurinha e elas ficaram lá, colando. E eu falei assim: ‘ai, gente, sabe o que a mamãe estava pensando? Que gostoso, vou parar de trabalhar, vou pedir minha demissão hoje’. E elas: ‘não, mamãe!’. E eu falei: ‘como assim não?’. E elas: ‘não, mamãe, sabe por quê? A gente gosta muito de falar que você é juíza. E a gente sabe que você gosta muito de ser juíza’. E meu coração se encheu tanto. Elas sabem o quanto isso importa. E eu fiquei olhando e pensando: ‘tomara que elas sejam três menininhas muito bacanas, que elas façam alguma coisa que elas gostem muito de fazer e que elas façam a diferença de alguma forma’, né? É isso que a gente espera.”

Clique na imagem e assista ao vídeo:




Fonte:  Globo

Nenhum comentário: