Djalmila Ribeiro, mestre em
filosofia política, ativista feminista e secretária-adjunta de Direitos Humanos
de São Paulo. RICARDO MATSUKAWA
Djamila Ribeiro pesquisadora em filosofia política e ativista
feminista, fala sobre a importância de combinar a luta contra o machismo e o
racismo .“Se eu luto contra o machismo mas ignoro o racismo, eu estou
alimentando a mesma estrutura” .“É preciso discutir por que a mulher negra é a
maior vítima de estupro no Brasil” “O Brasil todo está falando da cultura do
estupro hoje, mas ainda é pouco”.
O estupro coletivo de uma
adolescente de 16 anos no Rio de Janeio provocou um intenso debate sobre a
cultura do estupro, além de uma série de manifestações pelo país contra o
machismo —e também contra o racismo. O motivo: a violência contra mulheres
negras disparou e, embora há quem queira desqualificar o debate (chamando-o de
um mimimi feminista), além desse episódio (a vítima era uma jovem negra e
pobre), dados do Mapa da Violência de 2015 confirmam o problema. Para Djalmila
Ribeiro, 35 anos —uma das mais conhecidas ativistas do movimento feminista
negro atual—, somente desconstruindo o mito de país harmônico livre de racismo
é que será possível criar políticas eficazes para enfrentar a violência de
gênero.
Djalmila é pesquisadora e mestre
em filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),
blogueira, mãe de uma menina de 11 anos, e que há dois meses é também a
secretária-adjunta de Direitos Humanos da cidade de São Paulo. Em entrevista ao
EL PAÍS, ela falou sobre as diferentes lutas dentro do movimento feminista e o
racismo enraigado em nossa cultura.
Pergunta. O caso do estupro
coletivo no Rio, em maio, provocou uma reação feminina muito forte no país. E
também levantou um debate sobre a questão do racismo e da cultura do estupro.
Qual a relação entre esses dois problemas?
Resposta. A cultura do estupro
ficou evidente porque houve um ato brutal no Rio. Mas ficou claro como a maior
parte da sociedade vê isso como um fenômeno, algo pontual. Essa discussão feita
pelo movimento feminista é importante para mostrar que isso faz sim parte de
uma cultura, um desdobramento do machismo. Na questão racial, a gente precisa
discutir por que as mulheres negras são as que mais sofrem esse tipo de
violência. Uma pesquisa da Unicef chamada Violência Sexual mostra que as mulheres
negras são as mais vitimadas por essa violência. Não é um fenômeno. Faz parte
de uma estrutura. Se for pegar o contexto histórico do Brasil, a gente tem um
país com mais de 300 anos de escravidão, uma herança escravocrata. E que no
período da escravidão as mulheres negras eram estupradas sistematicamente pelos
senhores de escravo. Quando a gente fala de cultura do estupro é necessário
fazer essa relação direta entre cultura do estupro e colonização. Tudo está
ligado, um grupo que combina a dupla opressão: além do machismo, sofre o
racismo. Claro que todas as mulheres estão vulneráveis, suscetíveis a essa
violência sexual. Mas quando a gente fala da mulher negra existe esse
componente a mais que é o racismo. Existe também essa questão de ultra-sensualizar
a mulher negra, colocar ela como objeto sexual, como lasciva... São tão
desumanizadas que até a violência contra elas de alguma forma se quer
justificar. Se eu luto contra o machismo, mas ignoro o racismo, eu estou
alimentando a mesma estrutura.
P. Existe uma falha no diálogo
dentro do movimento feminista?
R. Dentro do feminismo, existe
uma discussão que as mulheres negras tentam levantar desde os anos 70, que as
mulheres brancas, de certo modo, acabaram universalizando a categoria mulher,
não percebendo que existem varias possibilidades de ser mulher: a mulher negra,
a mulher branca, a mulher indígena, a mulher lésbica, a mulher pobre... Mas
quando a gente não pensa nessas diferenças entre nós, deixamos um grupo grande
de mulheres de fora desse diálogo. O movimento feminista, durante muito tempo
foi um movimento de mulheres brancas da classe média que estavam preocupadas
com as opressões que atingiam somente a elas, ignorando as opressões que as
outras mulheres, numa posição ainda mais vulnerável, sofriam. Não ter esse entendimento
de que somos diferentes faz com que muitas vezes as mulheres que têm algum
privilégio fiquem reproduzindo opressões sobre as que estão numa posição mais
vulnerável. Essa é a discussão que o movimento feminista negro traz. A gente
também quer ser representada. A gente não pode pensar somente naquilo que nos
atinge, senão vamos perpetuar o mesmo poder que queremos combater. Então é
preciso que as mulheres que têm algum privilégio se abram para o debate. Não
vejam isso como uma afronta ou como briga.
P. Você escreve em um dos seus
artigos sobre essas diferentes lutas dentro do movimento feminista. Que em
determinado momento da história, as mulheres brancas lutavam pelo direito ao
voto, ao passo que as mulheres negras lutavam para serem vistas como seres
humanos pela sociedade. Trazendo para os dias de hoje, quais as principais
diferenças entre as bandeiras atuais dentro do movimento?
R. Acho que o diálogo melhorou
bastante de uns anos pra cá. Mas vamos pegar por exemplo a questão da violência
doméstica. A pesquisa Mapa da Violência 2015 mostrou que nos últimos dez anos,
período desde o qual existe a Lei Maria da Penha, diminuiu em 9,6% o
assassinato de mulheres brancas no Brasil e aumentou em 54,8% o de mulheres
negras. É um número absurdamente alto. Se for pegar a questão do mercado de
trabalho, por exemplo, o número de empregadas domésticas: mulheres negras ainda
são maioria. A questão do aborto: as mulheres negras são as que mais morrem,
porque sendo o aborto um crime, as mulheres que têm uma condição financeira
melhor fazem com segurança, e essas mulheres que não têm estão morrendo... É
necessário ver que as mulheres negras precisam de um olhar específico para
elas. É romper com esse olhar de política universal, que muitas vezes só atinge
a um grupo especifico. Se há um grupo que é mais vulnerável, aquele grupo
precisa de mais atenção. É uma minoria dentro da minoria.
P. O fato de não reconhecermos
que as mulheres negras são mais vulneráveis vem da dificuldade de o brasileiro
reconhecer que é racista? Isso vem da nossa educação?
R. É uma ótima pergunta. Porque o
Brasil é um país de maioria negra, mas a gente não debate racismo de forma
efetiva. E acho que é muito por conta desse mito da democracia racial que foi
criado no Brasil. De acreditar que aqui não existia racismo. De que racismo é o
que existia nos Estados Unidos ou na África do Sul, porque lá estava na
Constituição, enquanto que aqui no Brasil não tinha isso... Mas não
reconhecendo que aqui você tem o racismo institucional. Eu sempre dou o exemplo
da USP [Universidade de São Paulo], que acho um clássico: se você chega lá e vê
qual a cor das pessoas que estão limpando e qual a cor das pessoas que estão
dando aula? Então existe uma segregação no Brasil muito marcada, mas o que nos
falta é discutir de maneira mais efetiva, porque a gente foi criado num mito de
harmonia das raças, de que a gente se dá bem, de que estamos num país
miscigenado. Não dizendo que parte dessa miscigenação foi fruto do estupro de
mulheres negras, das mulheres indígenas... Onde querem louvar muito as pontes
que existem, mas não quer falar dos muros que nos separam. E isso está muito
por conta dessa dificuldade de ver o Brasil como um país racista. A gente
precisa trabalhar isso de forma mais efetiva na educação.
P. Qual deve ser o papel do homem para ajudar a acabar o machismo?
R. Eu acho que é sobretudo
discutir masculinidade. Essa masculinidade hegemônica como foi construída está
diretamente ligada à questão da violência e da agressividade. Desde muito cedo
o menino foi criado para ser o macho, pra ser o provedor, o violento, o
agressivo. Se a gente vive em uma sociedade onde os homens estupram as
mulheres, é porque a gente está criando homens que acham que podem fazer isso.
Isso deveria ser o ponto principal: como é que desconstrói essa masculinidade
violenta? Discutindo entre eles eu acho que seria fundamental. Eles podem e
devem ser parceiros e aliados apoiando nossas lutas, dando visibilidade... Se é
professor, debatendo o tema em sala de aula. Se é empregador, pagando o mesmo
salário para homens e mulheres na mesma função, criando maneiras de mulheres
que são mães de trabalhar. Se é professor de universidade pública, apoiando a
luta das alunas por creches nas escolas, porque creche também é permanência
estudantil. Está no meio dos amigos, o amigo assediou uma mulher, fala pro
amigo que aquilo é assédio, não é cantada. Está dentro de casa, divida as
tarefas domésticas, a responsabilidade pela criação dos filhos. Isso é uma
ajuda imensa ao movimento feminino, sem necessariamente ter que pegar um
microfone e falar por nós. Então parte muito dessa ação concreta que eles podem
fazer, que eles devem fazer, porque essa masculinidade hegemônica está matando
a gente. É importantíssimo que os homens estejam dispostos a desconstruir isso.
P. Existem várias mulheres que
têm medo de se assumir feministas, que acham que o feminismo é algo ruim. Como
você vê isso?
Djalmila Ribeiro, em entrevista
ao EL PAÍS, em São Paulo. RICARDO MATSUKAWA
R. Eu acho que ninguém nasce
sabendo da opressão que sofre. É uma consciência que a gente vai adquirindo ao
longo do tempo. Então tem um outro lado que o machismo conseguiu fazer muito
bem que é criar esses mitos em torno do feminismo, que foi mais uma forma de
impedir com que essas mulheres se juntem. Porque quanto mais as mulheres se
unirem, melhor é para que a ideologia seja manifestada. Então criou-se os mitos
de que feminista odeia homem, de que mulher feminista é uma mulher muito
agressiva... como um modo de afastar as mulheres dessa ação. Quando você
entende o que é feminismo, não tem razão nenhuma para você não querer ser
feminista. Se ser feminista é lutar para que mulheres tenham equidade, para que
mulheres sejam tratadas como seres humanos, para que a gente viva numa
sociedade igualitária e justa, não tem porque você não ser.
P. O que é a chamada
interseccionalidade do feminismo?
R. Os movimentos operam na mesma
lógica da sociedade. Ficam excluindo e elegendo o alvo que querem trabalhar.
Então o movimento negro que luta contra o racismo, por exemplo, tem um olhar
muito masculino; no movimento feminista, há um olhar muito branco; já o
movimento LGBT privilegia o homem gay branco... Então a interseccionalidade é
pensar como criar meios de pautar nossas políticas de modo que a gente dê conta
dessa diversidade. Senão vamos só continuar elegendo quais vidas são
importantes e quais vidas não são. (...) Na hora de pensar políticas eu preciso
ter um olhar interseccional, porque eu preciso atingir grupos mais vulneráveis.
Então se eu universalizo [um grupo ou uma luta] eu não nomeio o problema. E se
eu não faço isso, essas pessoas ficam na invisibilidade, os problemas delas
sequer são nomeados e, se eu não nomeio o problema, eu sequer vou conseguir
pensar numa solução.
P. Mudando um pouco de assunto, o
que você acha do movimento Escola Sem Partido?
R. É um retrocesso. Eu acho
engraçado esse argumento porque nada está isento de ideologia. A partir do
momento em que eles estão usando esse argumento, estão falando a partir de uma
ideologia, uma ideologia excludente. De uma ideologia que é o reforço da ordem
estabelecida, para que esses temas continuem na marginalidade. Debater esses
temas é justamente pra gente entender que essas pessoas existem, o quanto que é
necessário a gente educar para o respeito. Eu não gosto desse termo
“tolerância”. As pessoas tem que ser respeitadas. E o quanto é importante
tratar esses temas nas escolas, que podem ser um espaço muito importante de
transformação de mentalidade. Mas, da forma como está hoje de uma maneira
geral, acaba justamente sendo um local de reprodução de violência. Tem que
ensinar português e matemática, e tem que ensinar as questões de gênero, as
questões raciais... porque todos esses temas são transversais e têm que ser
trabalhados em todas as disciplinas. Quando a gente começa a estudar esses
temas, estamos empoderando grupos, dando voz a grupos que nunca tiveram,
pessoas que vão começar a reivindicar direitos. E tudo isso significa perda de
privilégio dessas pessoas que estão no poder.
Fonte: El Pais
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