Quando, por exemplo, uma família prestes a crescer ouve de um médico que a nova pessoa será uma menina, surgem expectativas quanto a roupas e brinquedos, comportamentos, ocupações e afetos futuros: pai e mãe podem desejar ver a filha casada e com filhos, bonita de salto e brincos nas orelhas, habilidosa em tarefas domésticas. Mas pode ser que a menina cresça e se descubra talentosa para esportes, que decida não ser mãe, que encontre felicidade na vida compartilhada com outra mulher, ou mesmo que perceba que é identificando-se como menino que a vida faz sentido. Pode ser que, tentando construir uma vida feliz, essa pessoa sofra violência e discriminação. Isso não é justo, e tem que mudar. Por isso insistimos em falar sobre gênero.
Este texto é parte de uma série
especial do blog Vozes da Igualdade, da Anis – Instituto de Bioética. Gênero
está longe de ser tema novo por entre nós, mas percebemos que nem sempre se
compreende do que é, afinal, que estamos falando. Queremos aprofundar a
conversa. Por isso, essa é a semana do “Gênero fala de todo mundo”.
“Precisamos falar sobre gênero” é
quase um slogan do blog Vozes da Igualdade. A violência, a discriminação e a
desigualdade vividas por mulheres, pessoas LGBT e outras minorias nos indignam
e mobilizam. Falar sobre gênero nas escolas, nas práticas institucionais, no
enquadramento de notícias e nas políticas públicas é uma de nossas demandas por
transformação. Não acreditamos que as pessoas nasçam preconceituosas ou
agressivas: se aprendemos a reproduzir ódio – as vezes sem sequer nos darmos
conta disso –, podemos desaprender e podemos ensinar diferente. Por isso, a
educação e o debate aberto são nossas apostas para uma sociedade igualitária e
justa.
Mas o que é isso que chamamos de
gênero? Nas teorias sociais, existem formas diferentes de entender esse
conceito. Algumas, por exemplo, falam de ‘gêneros’ no plural, como forma de
fazer perguntas e buscar entender como homens e mulheres se relacionam, no que
são considerados diferentes, e para que essas diferenças importariam. Para nós,
o gênero, assim com artigo definido e no singular, é um regime político, isto
é, uma forma de organizar a vida, com regras e estruturas de poder.
Diferentes formas de entender
gênero têm em comum a compreensão de que a forma como habitamos os corpos não
gera destinos: não há experiências que sejam obrigatórias ou necessárias por
causa de nossas anatomias. Mulheres podem ou não ser mães; homens podem ou não
ter cabelos curtos ou serem fisicamente fortes; homens e mulheres podem ou não
querer formar família com outros homens e mulheres, podem se identificar com a
forma como seus corpos foram classificados quando nasceram, ou podem organizar
suas vivências de formas distintas. Falar sobre gênero é reconhecer a
diversidade de formas de vida boa para os corpos.
Dizemos que gênero é político
porque ele é transformável: desacreditamos que nossas formas de viver são
determinadas por ideias de natureza – que mudam historicamente –, por crenças
divinas – que são muitas e variadas – ou mesmo por maiorias sociais. Não há uma
pessoa ou um grupo delas que determine as regras do gênero: todas e todos nós
as fazemos e desfazemos diariamente. Quando, por exemplo, uma família prestes a
crescer ouve de um médico que a nova pessoa será uma menina, surgem
expectativas quanto a roupas e brinquedos, comportamentos, ocupações e afetos
futuros: pai e mãe podem desejar ver a filha casada e com filhos, bonita de
salto e brincos nas orelhas, habilidosa em tarefas domésticas. Mas pode ser que
a menina cresça e se descubra talentosa para esportes, que decida não ser mãe,
que encontre felicidade na vida compartilhada com outra mulher, ou mesmo que
perceba que é identificando-se como menino que a vida faz sentido. Pode ser
que, tentando construir uma vida feliz, essa pessoa sofra violência e
discriminação. Isso não é justo, e tem que mudar. Por isso insistimos em falar
sobre gênero.
Mas a insistência não é nova.
Falamos sobre e transformamos o regime do gênero há muito tempo: há pouco mais
de oito décadas, mulheres brasileiras não podiam votar e participar das
decisões políticas do país; hoje aprendemos isso nas aulas de história.
Nos anos 1970 e 1980, movimentos
de mulheres precisavam gritar o óbvio, que “quem ama não mata”, porque havia
tribunais que absolviam homens que matavam suas companheiras, e ainda hoje
lutamos para que o sistema de justiça leve a violência contra mulheres a sério.
A Constituição Federal de 1988
reconheceu diferentes formas de constituir família, e, há anos, pares do mesmo
sexo contam com proteções legais para casar e adotar crianças. Há alguns meses,
pais passaram a ter mais tempo de licença-paternidade para conhecer e cuidar de
suas crias recém-chegadas.
Falamos e falaremos sobre gênero
porque reconhecemos um legado de lutas por igualdade e direitos que não pode
ter fim em uma sociedade justa.
Sinara Gumieri é advogada e
pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética. Este artigo é parte do falatório
Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e
conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga
https://www.facebook.com/AnisBioetica.
Fonte: http://justificando.com/2016/07/18/precisamos-falar-sobre-genero/
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