Nem só de textão lacrador, das
brigas de internet e da irritabilidade de umas e outras vive a episteme
feminista
O feminismo não é uma marca: não
existe manual nem memorandos e muito menos decisões executivas que vêm de um
escritório central. Apesar dos muitos textos que
questionam a validade do feminismo, o fim do movimento não chegou, e felizmente
não está nem perto de chegar.
(Ou infelizmente: o fim do
feminismo, afinal de contas, só vai chegar depois do fim da desigualdade de
gênero, e como diz o famoso jargão de internet, "eu serei uma
pós-feminista no pós-patriarcado”)
Engana-se quem pensa que
feministas são feministas por amor ao feminismo. Arrisco dizer, mesmo não
almejando falar por todas nós, que se nutrimos sentimentos afetuosos em relação
ao movimento, é por causa de seu caráter libertador, e não por um apego cego à
palavra. Feministas, pensando bem, são pessoas que trabalham pelo fim do
feminismo – ou ao menos pelo fim da necessidade de sua existência.
O feminismo é resistência
organizada ao patriarcado. Relativamente organizada: grupos e organizações
feministas se arranjam em si mesmas e/ou em colaboração com outras, mas não no
sentido corporativo. O feminismo não é uma marca: não existe manual de
identidade nem memorandos com diretrizes operacionais, e muito menos decisões
executivas que vêm de um escritório central.
É exatamente por isso que há
tanta disputa entre feminismos – assim mesmo, no plural. Sem diretrizes
unificadoras, altercações sobre quem é mais ou menos feminista, ou sabe mais ou
menos sobre feminismo, são frequentes.
Também é por isso que
anti-feministas geralmente têm êxito em nos posicionar como o que não somos:
sem uma centralização institucional que nos oriente a todas, a estratégia de
"dividir e conquistar” se encontra já feita, e é fácil retratar o
movimento todo por sua parte constituinte menos engajada ou mais hipócrita ou
menos diplomática ou mais treteira.
Ainda assim, existem alguns
pilares fundamentais que informam todas as vertentes e correntes sem precisar
oferecer pareceres unificadores. É seguro afirmar que o patriarcado é um deles:
todos os feminismos o reconhecem como objeto de desconstrução.
A ideologia dominante (e de
dominação) patriarcal é um conceito organizador da produção tanto do pensamento
quanto de ações feministas. Com perdão da piada infame, o patriarcado é ponto
pacífico feminista, e sua dissolução é um dos principais focos do nosso
trabalho.
O feminismo é um movimento feito
por pessoas e grupos sociais diversos, e embora a experiência das mulheres
continue sendo o norte da empreitada, o feminismo reconhece que as experiências
de mulheres diferentes são necessariamente diversas, e variam em complexidade.
Ironicamente, é bastante por
causa do feminismo que a categoria "mulher" vem expandindo para além
do nosso entendimento tradicional do que significa "ser mulher”. Foi o
feminismo que questionou a categoria "mulher” e as restrições sociais
impostas a quem nela cabe. Foi o feminismo que apontou que somos o segundo
sexo, que expôs a mística feminina e que revelou o mito da beleza. Ao quebrar
as amarras que restringem as experiências das mulheres, acabamos por criar
novas possibilidades para sermos mulheres.
Assim, insistir que o feminismo
seja homogêneo apaga as complexidades e tensionamentos do movimento, e eclipsa
a possibilidade de aprender e evoluir com os debates entre suas vertentes e
correntes.
Um dos debates que causou
dissabores e conflitos recentemente foi acerca do PL Gabriela Leite, um projeto
de lei que visa regulamentar certos aspectos referentes ao trabalho de
profissionais do sexo.
Os corpos das prostitutas estão
no epicentro de muitas tensões sociais, e debates feministas sobre prostituição
sempre foram espinhosos por concentrarem em si (em ordem não hierárquica, e
para aquém e além do feminismo): sexo, dinheiro, relações de poder, direitos
trabalhistas, moralidade, legalidade, identidades sexuais e de gênero,
violência e linguagem.
Algumas feministas se opõem ao
PL, e argumentam que chamá-lo de "regulamentação da prostituição” seria
falacioso, pois ele não trata de legalizar a prostituição, ou de garantir
direitos às mulheres em situação de prostituição, mas sim de regulamentar a
cafetinagem.
Outras alegam que quem argumenta
contra o PL não conhece a realidade da maioria dos prostíbulos, muito menos a
vivência real das prostitutas, por isso deveria ser delas a voz mais ativa
desta conversa.
Uma terceira vertente assiste o
debate com angústia, propondo que se ampliem as plataformas de diálogo – afinal
as mulheres são múltiplas e plurais, e o feminismo também deve ser. A
libertação de uma mulher não pode partir dos termos de outra, e insistir nesta
premissa não deixa de ser uma violência.
No entanto não é somente
conflitos como esse – que tendem a dominar o discurso por períodos de tempo – o
que faz com que muita gente fique exasperada com o feminismo, mas sim a
sensação de que eles são todo o feminismo. E é geralmente em momentos
conturbados do movimento que ações anti-feministas fazem a festa.
Backlash: o contra-ataque na
guerra não declarada contra as mulheres é um livro de 1991, da jornalista
estadunidense vencedora do Prêmio Pulitzer Susan Faludi, que articula a
existência de reações midiáticas, deliberadas e orquestradas, contra avanços
feministas.
O livro é pautado em matérias e
reportagens da mídia norte-americana durante o feminismo da chamada
"segunda onda” da década de 1970, e de acordo com Faludi o backlash (um
contra-ataque organizado) postula que é o feminismo a fonte dos problemas que
afligem as mulheres.
Faludi argumenta que muitos dos
problemas levantados por articuladores do backlash são fantasiosos e
construídos por uma mídia machista que não tem evidência confiável para
substanciá-los, e também que o contra-ataque é uma tendência histórica,
recorrente quando as mulheres alcançam ganhos substanciais através dos nossos
esforços por equidade. Ela diz (em tradução livre minha): "O backlash
anti-feminismo é definido não pela concretização da plena igualdade das
mulheres, mas pelo aumento das possibilidades do que podemos conquistar. É um
ataque preventivo, que interrompe a corrida das mulheres muito antes que elas
atinjam a linha de chegada".
Teorias feministas e sobre gênero
representam bem a sofisticação da teoria social. Me seguro para declarar isso,
por achar a asserção meio arrogante. Mas o que é realmente arrogante é usar
argumentos anti-feministas, seja pautados na biologia ou em noções
positivistas, sem se dar conta de que é a partir deles que a esta episteme, que
é inerentemente crítica, se constrói.
Quem quer de fato dialogar e
aprender não goza com o prazer perverso de desqualificar e deslegitimar o que
não conhece. Reproduzir o que os declaradamente anti-feministas dizem sobre o
feminismo sem engajar com o que as próprias feministas têm a dizer sobre o
movimento revela uma antipatia prévia por ele que impede a pessoa de aprender a
partir do que não consegue admitir que não entende.
Nem só de textão lacrador, das
brigas de internet e da irritabilidade de umas e outras vive a episteme
feminista. A produção teórica e os debates entre vertentes são muito mais
cheios de nuance e muito mais dialógicos do que o pânico egóico das redes
sociais ou as mídias misóginas fazem parecer.
Aos arrogantes retrógrados e
mídias patriarcais, meu mais sincero boa sorte. O poder institucional para
produzir contra-ataques a partir das nossas próprias conversas ainda é de
vocês. Mas o mundo segue sendo de todos e todas, e o feminismo não somente não
chegou ao fim, mas só faz crescer.
Fonte: Carta Capital
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