domingo, 24 de julho de 2016

‘Diga-nos, Maria Madalena, o que viste no caminho?’

“Duas vezes a tradição popular encobriu as características pessoais a Maria Madalena, confundindo-a primeiro com uma prostituta - daqui, todas as representações "carnais" da santa na história da arte - e, em seguida, com a mais pura Maria de Betânia. Enquanto isso, porém, Maria Madalena chegou, de fato, em Jerusalém, na sequela de Jesus, para viver com ele e os discípulos, suas últimas horas trágicas. Todos os evangelistas, na verdade, concordam em registrar sua presença no momento da crucificação e do sepultamento de Cristo”, analisa o cardeal Ravasi.


Por: Gianfranco Ravasi


Em 1989, o escritor e crítico de arte italiano Giovanni Testori pediu-me para prefaciar, com perfil bíblico, seu livro sobre Maria Madalena na história da arte (tema que entrelaça “sagrado” e “erótico”, segundo uma tipologia prezada pelo escritor). Escolhi como título: "Uma santa caluniada e glorificada". O título tornou-se ainda mais apropriado, nos últimos anos, devido às fantasias do Código Da Vinci , de Dan Brown , que apresentam Madalena, a santa protagonista, como amante de Jesus.

O título, portanto, sempre funcionou como uma espécie de clichê, equivocadamente tomado como histórico, cravado nas mentes de tantos leitores. Procuramos reconstruir, então, as razões da deformação do rosto desta mulher proveniente de Magdala, cidadezinha situada na costa oeste do Mar da Galileia, considerada, então, um centro comercial de peixes, tanto que em grego era chamada Tariqueia, ou seja, "peixe salgado".

Pois bem, a partir desse local, Maria aparece, de repente, no Evangelho de Lucas (8,1-3), numa lista de discípulos de Cristo. O retrato é esboçado numa única pincelada, "Maria Madalena, da qual tinham saído sete demônios". O "demônio", na linguagem do evangelho, não é somente a raiz de um mal moral, mas também físico, que pode permear uma pessoa. O número de "sete", então, é o número simbólico da plenitude. Não sabemos muito, portanto, sobre o grave mal moral, psíquico ou físico que atingiu Maria e que Jesus eliminara.

As Madalenas “inventadas”

A tradição popular, no entanto, nos séculos posteriores, não hesitou, e fez de Maria Madalena uma prostituta. Por quê?

A resposta é simples: na página anterior, em Lc 7, conta-se a história de uma anônima pecadora "conhecida naquela cidade (cujo nome não é mencionado)". A aplicação foi fácil, mas infundada: esta “pecadora” pública devia ser Maria Madalena, apresentada logo em seguida, algumas linhas depois! A ela foi atribuída toda a história contada pelo evangelista. Tendo sabido que Jesus estava num banquete, na casa de um fariseu notável, realizou um gesto de veneração e amor, particularmente apreciado por Cristo: aspergiu com óleo perfumado os pés do rabi de Nazaré, banhando-os com suas lágrimas e enxugando-os com seus cabelos.

Com esta primeira identificação injustificada, preparava-se já uma segunda, numa espécie de jogo de sobreposições. Sabe-se, de fato, que no capítulo 12 de João, Maria, irmã de Marta e Lázaro, amigos de Jesus, realiza o mesmo gesto - que, por sinal, era um sinal de hospitalidade e exaltação pelos hóspedes – da anônima pecadora de Lucas. De fato, durante o almoço, "unge os pés de Jesus com uma libra de bálsamo de nardo muito valioso e genuíno e seca-os com seus cabelos". A tradição cristã, assim, transformou Maria de Magdala em Maria de Betânia, subúrbio de Jerusalém!

Duas vezes a tradição popular encobriu as características pessoais a Maria Madalena, confundindo-a primeiro com uma prostituta - daqui, todas as representações "carnais" da santa na história da arte - e, em seguida, com a mais pura Maria de Betânia. Enquanto isso, porém, Maria Madalena chegou, de fato, em Jerusalém, na sequela de Jesus, para viver, com ele e os discípulos, suas últimas horas trágicas. Todos os evangelistas, na verdade, concordam em registrar sua presença no momento da crucificação e do sepultamento de Cristo. E é exatamente do lado daquele túmulo, na luz ainda pálida do amanhecer da Páscoa, que o Evangelho de João (20,11-18) ambienta o famoso encontro de Cristo com Maria Madalena.

Testemunha da ressurreição

Como é sabido, Maria confunde Cristo com o jardineiro do cemitério. Ora, a "cegueira" é típica de algumas aparições do Ressuscitado: basta pensar nos discípulos de Emaús, caminhando juntos por horas, sem reconhecê-lo (Lc 24,13-35). O significado é claramente teológico: embora sendo ainda o mesmo Jesus de Nazaré, o Cristo glorioso pascal transcende as coordenadas humanas, históricas e físicas. Para poder reconhecê-lo é necessário num canal de conhecimento transcendente, o canal da fé. É por isso que, somente quando ouve o chamado pelo nome, num diálogo pessoal, Maria o "reconhece", chamando-o em aramaico Rabbuni, "meu mestre".

Em sua célebre Vida de Jesus , o historiador francês Ernest Renan , do século XIX, explicará racionalisticamente toda a cena como alucinação de uma apaixonada: "O amor de uma mulher realizou o milagre: Jesus ressuscitou para ela". Acrescentava-se, com isso, mais um elemento malicioso ao retrato de Maria, fazendo-a passar - sem nenhuma base textual - a amante secreta de Jesus (e Dan Brown irá calcar ainda mais esta linha de pensamento).

Para além dos Evangelhos canônicos

Esta deformação do rosto da Madalena, no entanto, tinha raízes mais antigas. É preciso sair dos Evangelhos canônicos e entrar no mundo, caótico e inseguro, dos textos apócrifos gnósticos, surgidos no cristianismo no Egito por volta do terceiro século. Antes de tudo devemos dizer que em alguns destes escritos Maria Madalena é identificada com Maria, a mãe de Jesus! Identificação nobre, é claro, mas, mais uma vez, impedia esta mulher de manter sua identidade pessoal.

A transfiguração, naqueles escritos, na verdade, chegará a um desenvolvimento tal, que dissolverá a figura de Maria Madalena, a ponto de torná-la quase uma ideia, um símbolo, a Sabedoria por excelência. Este resultado é alcançado, paradoxalmente, por meio de imagens, que a leitura posterior maliciosamente enriquecerá com alusões voluptuosas e eróticas. Lê-se, de fato, no Evangelho apócrifo de Filipe, descoberto em 1945, em Nag Hammadi, no Egito: “O Senhor amou Maria Madalena mais do que a todos os discípulos e, muitas vezes, beijou-a na boca. Os outros discípulos, vendo-o com Maria, perguntaram-lhe: ‘Por que a ama mais do que a todos nós?’”.

Aqui tem material suficiente para aqueles que, ignaros do simbolismo bíblico - a Sabedoria sai da boca do Altíssimo, segundo o Antigo Testamento -, querem semear suspeitas sobre Maria e sobre Jesus, imaginando uma relação sexual entre os dois (como, de fato, defende Dan Brown). Na verdade, como escrevia um estudioso daquele evangelho apócrifo, “em todos os escritos gnósticos cristãos, Maria Madalena é somente o exemplo perfeito do sábio e mestre da doutrina gnóstica", isto é, do conhecimento pleno dos mistérios divinos. Noutro texto gnóstico, no tratado Pistis Sophia, onde Maria Madalena aparece bem 77 vezes, ela se torna o emblema da humanidade redimida, de tipo andrógino (outra deformação de Maria!), porque, de acordo com Paulo, "não haverá mais nem homem nem mulher, mas todos serão um em Cristo Jesus" (Gl 3,28). Mas, também neste escrito, sua função de sinal da Sabedoria divina será explícita na bem-aventurança posta na boca de Jesus pelo autor gnóstico: "A ti, bem-aventurada Maria, farei perfeita em todos os mistérios do alto. Falas abertamente tu, cujo coração está voltado para o Reino dos céus, mais do que todos os teus irmãos!" (17, 2).

A discípula

Uma santa em busca de identidade e, depois, suspensa entre dois extremos: carnalmente abaixada a prostituta ou amante, espiritualmente elevada à Sabedoria transfigurada. Felizmente, como vimos, a única pessoa que a chamou pelo nome, Maria, reconhecendo-a e confirmando-a como discípula, foi o próprio Jesus de Nazaré, seu Mestre, o Rabbuni. E é com base naquele encontro pascal, precisamente, que sua presença reaparecerá, a cada ano, na liturgia católica, com a bela melodia gregoriana do Victimae paschali, e com aquele diálogo latino que nos permitimos não traduzir: Dic nobis, Maria, quid vidisti in via? Surrexit Christus spes mea!



Gianfranco Ravasi é cardeal, arcebispo católico e biblista italiano, teólogo e estudioso do hebraico. Desde 2007, é presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, da Pontifícia Comissão de Arqueologia Sacra e do Conselho de Coordenação das Academias Pontifícias, todos departamentos da cúria romana. Autor de vários livros populares sobre Bíblia e exegese, durante anos trabalhou com o jornal L'Osservatore Romano, Il Sole 24 Ore e Avvenire, o semanário Famiglia Cristiana e o mensal Jesus. Desde 2011, também edita alguns blogs. Entre seus livros mais recentes, estão L’uomo della Bibbia (EDB, 2014), Le meraviglie dei musei vaticani  (Mondadori, 2014), In compagnia dei Santi (Ecra-Edizioni del Credito Cooperativo , 2014) e Le pietre di inciampo del Vangelo. Le parole scandalose di Gesù, Collana Saggistica (Mondadori, 2015).







Fonte: Ihu

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