segunda-feira, 18 de abril de 2016

Um trabalho como qualquer outro? Precisamos falar sobre trabalho doméstico

Babá passeia com carrinho de bebê no "Parque das Babás" em área nobre de São Paulo. Foto de Felipe Souza/BBC Brasil.
Carregamos a herança de séculos de escravidão, uma ferida que não será cicatrizada, porque tentamos abafa-la, esconde-la. Há uma relação de desigualdade que é muito forte nessa relação que HOJE é uma relação trabalhista.

Por Lisandra Moreira para as Blogueiras Feministas.

Em meio ao atual clima de manifestações, lembro que há algum tempo houve uma polêmica foto de uma família (branca) que foi às manifestações com a empregada doméstica (negra) carregando o carrinho das crianças. Chuva de comentários extremistas para os dois lados.

Uma vontade incontrolável de escrever sobre isso me leva a tentar construir esse texto. Essas reflexões se iniciaram muito antes, colecionando cenas incômodas sobre o tema. Os incômodos nascem de alguns atravessamentos que tornam essa temática tão espinhosa: a diferenciação e a regulamentação recente dessa ocupação, o racismo, a desigualdade econômica, a questão de gênero e o cuidado infantil. Vamos primeiro às cenas, selecionei três:

1. Numa cena acadêmica, uma professora se pergunta se seria possível uma sociedade sem o trabalho doméstico remunerado. Se levarmos ao extremo essa afirmativa: “É impossível uma família que possui outras ocupações viver sem empregadA”, estamos querendo dizer que a vida da família de quem é empregada, é uma vida impossível, ou indigna?

2. Numa cena escolar, onde algumas crianças ao retratar a família haviam incluído a figura da babá, a professora chama atenção dizendo que elas são empregadas e não membros da família. Interessante posição para desconstruir o velho conto de fadas de que são “quase” membros da família. Entretanto, a professora finaliza dizendo que nenhuma babá está ali por escolha, mas por falta de opção, falta de formação. Se alguma daquelas crianças um dia desejou ser cuidadora de crianças naquele momento aprendeu que essa não é uma ocupação digna de escolha.

3. Nas regras de utilização de um Clube Universitário, consta a “permissão” da entrada de babás, desde que devidamente uniformizadas e sem a utilização das dependências do clube. Qual a necessidade dessa demarcação? Ou há a necessidade de uniforme e uso de EPI quando alguma mãe ou pai cuidam do seu filho (se bem que em alguns dias um protetor auricular seria salutar)?
De forma geral, há na discussão dessa temática um grande esforço por parte de quem contrata serviços domésticos de se mostrar como “bom patrão/boa patroa”. Esse esforço só acontece porque a regulamentação do trabalho doméstico equiparado aos outros trabalhadores urbanos é uma conquista extremamente recente. Nesse sentido, o trabalho doméstico não é como qualquer outro trabalho. Basta ver o quanto a PEC das domésticas causou alvoroço ao equiparar a esse trabalho os direitos já conquistados para o restante dos trabalhadores, via CLT. É somente com a regulamentação que se minimizam as diferenças individuais entre determinados patrões, porque estamos falando de direitos coletivos conquistados e não mais da boa vontade e da simpatiza de determinada família.

É preciso contextualizar historicamente não apenas a regulamentação dessa ocupação, mas a construção histórica dessa categoria. “A empregada doméstica” é na sua maioria, ou pelo menos no imaginário social: uma mulher; tem pouca escolaridade, é negra, é pobre. Essa ideia é também uma construção, mas produz efeitos. Parte-se do princípio que é um emprego que paga pouco e com tarefas que ninguém quer fazer e portanto, somente num cenário de poucas escolhas seria aceito.

Carregamos a herança de séculos de escravidão, uma ferida que não será cicatrizada, porque tentamos abafa-la, esconde-la. Há uma relação de desigualdade que é muito forte nessa relação que HOJE é uma relação trabalhista. Não é apenas um empregador e um empregado, não é o contratante de um serviço e o prestador de serviço. Ninguém deixa de escovar os dentes para ir ao dentista, mas as pessoas são capazes de sujar deliberadamente para que a empregada limpe. É nessa lógica que se enquadra a necessidade de diferenciação, de uniforme, marcando quem manda e quem obedece. Aliás, quem manda é porque pode, quem obedece é porque precisa? Não é essa a síntese da desigualdade? Numa sociedade como a nossa em que a fábula da meritocracia diz que quem tem dinheiro é porque mereceu e tem direito de mandar, logo quem não tem dinheiro merece ser mandado.

Um outro incômodo que está nessas questões diz respeito ao gênero e ao cuidado infantil. Ainda vejo muito as acusações quanto à contratação do trabalho doméstico recair sobre as mulheres. Tanto as patroas, quanto as empregadas. Como se assunto feminino fosse. Quando essa questão envolve crianças, fica tudo ainda mais complicado. O canal Porta dos Fundos fez uma crítica a forma como endeusamos as crianças hoje em um de seus vídeos. Numa das cenas, a babá apresenta o filho aos pais quando esse completa 18 anos, porque até então, os pais não sabiam o que fazer com as crianças. E por que hoje não se sabe o que fazer com uma criança? Num mundo em que todas as ações de mães e pais são analisadas e apontadas como causadoras de futuros problemas e traumas para esse sujeito, é bem complicado assumir essa função. Não a toa, as tarefas são rapidamente terceirizadas e desloca-se o bode expiatório para a boa e velha empregada doméstica.

Nesse sentido, a cena da babá com os patrões na manifestação causa mal-estar. Não são aquelas pessoas em si, que inclusive precisam ser respeitadas nas suas escolhas. São as marcas que essa cena carrega. São as cenas que cada um coleciona ao observar a forma como a relação entre empregador e empregado doméstico costuma acontecer. Definitivamente, não é um trabalho como qualquer outro.


Autora

Lisandra Moreira é psicóloga, mestre e doutora em Psicologia. Gaúcha, um pouco nordestina e agora também mineira. Feminista, com mais dúvidas do que respostas.


Fonte: Blogueiras feministas

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