Babá passeia com carrinho de bebê
no "Parque das Babás" em área nobre de São Paulo. Foto de Felipe
Souza/BBC Brasil.
Carregamos a herança de séculos
de escravidão, uma ferida que não será cicatrizada, porque tentamos abafa-la,
esconde-la. Há uma relação de desigualdade que é muito forte nessa relação que
HOJE é uma relação trabalhista.
Por Lisandra Moreira para as
Blogueiras Feministas.
Em meio ao atual clima de
manifestações, lembro que há algum tempo houve uma polêmica foto de uma família
(branca) que foi às manifestações com a empregada doméstica (negra) carregando
o carrinho das crianças. Chuva de comentários extremistas para os dois lados.
Uma vontade incontrolável de
escrever sobre isso me leva a tentar construir esse texto. Essas reflexões se
iniciaram muito antes, colecionando cenas incômodas sobre o tema. Os incômodos
nascem de alguns atravessamentos que tornam essa temática tão espinhosa: a
diferenciação e a regulamentação recente dessa ocupação, o racismo, a desigualdade
econômica, a questão de gênero e o cuidado infantil. Vamos primeiro às cenas,
selecionei três:
1. Numa cena acadêmica, uma
professora se pergunta se seria possível uma sociedade sem o trabalho doméstico
remunerado. Se levarmos ao extremo essa afirmativa: “É impossível uma família
que possui outras ocupações viver sem empregadA”, estamos querendo dizer que a
vida da família de quem é empregada, é uma vida impossível, ou indigna?
2. Numa cena escolar, onde
algumas crianças ao retratar a família haviam incluído a figura da babá, a
professora chama atenção dizendo que elas são empregadas e não membros da
família. Interessante posição para desconstruir o velho conto de fadas de que
são “quase” membros da família. Entretanto, a professora finaliza dizendo que
nenhuma babá está ali por escolha, mas por falta de opção, falta de formação.
Se alguma daquelas crianças um dia desejou ser cuidadora de crianças naquele
momento aprendeu que essa não é uma ocupação digna de escolha.
3. Nas regras de utilização de um
Clube Universitário, consta a “permissão” da entrada de babás, desde que
devidamente uniformizadas e sem a utilização das dependências do clube. Qual a
necessidade dessa demarcação? Ou há a necessidade de uniforme e uso de EPI
quando alguma mãe ou pai cuidam do seu filho (se bem que em alguns dias um
protetor auricular seria salutar)?
De forma geral, há na discussão
dessa temática um grande esforço por parte de quem contrata serviços domésticos
de se mostrar como “bom patrão/boa patroa”. Esse esforço só acontece porque a
regulamentação do trabalho doméstico equiparado aos outros trabalhadores
urbanos é uma conquista extremamente recente. Nesse sentido, o trabalho
doméstico não é como qualquer outro trabalho. Basta ver o quanto a PEC das
domésticas causou alvoroço ao equiparar a esse trabalho os direitos já
conquistados para o restante dos trabalhadores, via CLT. É somente com a
regulamentação que se minimizam as diferenças individuais entre determinados
patrões, porque estamos falando de direitos coletivos conquistados e não mais
da boa vontade e da simpatiza de determinada família.
É preciso contextualizar
historicamente não apenas a regulamentação dessa ocupação, mas a construção
histórica dessa categoria. “A empregada doméstica” é na sua maioria, ou pelo
menos no imaginário social: uma mulher; tem pouca escolaridade, é negra, é
pobre. Essa ideia é também uma construção, mas produz efeitos. Parte-se do
princípio que é um emprego que paga pouco e com tarefas que ninguém quer fazer
e portanto, somente num cenário de poucas escolhas seria aceito.
Carregamos a herança de séculos
de escravidão, uma ferida que não será cicatrizada, porque tentamos abafa-la,
esconde-la. Há uma relação de desigualdade que é muito forte nessa relação que
HOJE é uma relação trabalhista. Não é apenas um empregador e um empregado, não
é o contratante de um serviço e o prestador de serviço. Ninguém deixa de
escovar os dentes para ir ao dentista, mas as pessoas são capazes de sujar
deliberadamente para que a empregada limpe. É nessa lógica que se enquadra a
necessidade de diferenciação, de uniforme, marcando quem manda e quem obedece.
Aliás, quem manda é porque pode, quem obedece é porque precisa? Não é essa a
síntese da desigualdade? Numa sociedade como a nossa em que a fábula da
meritocracia diz que quem tem dinheiro é porque mereceu e tem direito de
mandar, logo quem não tem dinheiro merece ser mandado.
Um outro incômodo que está nessas
questões diz respeito ao gênero e ao cuidado infantil. Ainda vejo muito as
acusações quanto à contratação do trabalho doméstico recair sobre as mulheres.
Tanto as patroas, quanto as empregadas. Como se assunto feminino fosse. Quando
essa questão envolve crianças, fica tudo ainda mais complicado. O canal Porta
dos Fundos fez uma crítica a forma como endeusamos as crianças hoje em um de
seus vídeos. Numa das cenas, a babá apresenta o filho aos pais quando esse
completa 18 anos, porque até então, os pais não sabiam o que fazer com as
crianças. E por que hoje não se sabe o que fazer com uma criança? Num mundo em
que todas as ações de mães e pais são analisadas e apontadas como causadoras de
futuros problemas e traumas para esse sujeito, é bem complicado assumir essa
função. Não a toa, as tarefas são rapidamente terceirizadas e desloca-se o bode
expiatório para a boa e velha empregada doméstica.
Nesse sentido, a cena da babá com
os patrões na manifestação causa mal-estar. Não são aquelas pessoas em si, que
inclusive precisam ser respeitadas nas suas escolhas. São as marcas que essa
cena carrega. São as cenas que cada um coleciona ao observar a forma como a
relação entre empregador e empregado doméstico costuma acontecer.
Definitivamente, não é um trabalho como qualquer outro.
Autora
Lisandra Moreira é psicóloga,
mestre e doutora em Psicologia. Gaúcha, um pouco nordestina e agora também
mineira. Feminista, com mais dúvidas do que respostas.
Fonte: Blogueiras feministas
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