quarta-feira, 20 de abril de 2016

Os meninos foram ao circo... Uma crônica sobre o impeachment -por Ivone Gebara-

Ivone Gebara, teóloga, comenta a sessão da Câmara dos Deputados, realizada no domingo, 17-04-2016, aprovando a admissibilidade do impeachment da Presidente Dilma Rousseff.

Senhoras e senhores entrem, entrem que a grande apresentação vai começar... Entrem sem pressa e assumam seus lugares. Há espaço para todos! Em breve as portas serão fechadas e a comunicação exterior poderá ser feita apenas pelos celulares. São admitidos ‘selfis’, fotos em conjunto, filmagens do evento... Todos nós aqui presentes seremos parte do espetáculo.


O circo espuriamente democrático faz jus à apresentação feita dele. O picadeiro é comandado por um senhor branco de aparência séria que se apresenta como sendo capaz de engolir ‘sapos e lagartos’ apoiado por uma torcida organizada que embora fora da lei do circo lhe dá apoio e o ladeia constantemente com exclamações de apoio ou negações quando alguém parece se apresentar destoando do coro. Seus olhos e sua voz controlam a organização do espetáculo como se fossem chibatadas bem dadas. As televisões do país disputam espaços para mostrar as melhores cenas focalizando o jogo dos meninos irrequietos e de suas falas muitas vezes desarticuladas e barulhentas.



Um espetáculo único que poderia se chamar “a condenação de Joana d’Arc” ou “o vale das fantasias” e até “o incêndio do circo”. Os leitores poderão escolher ou inventar outros nomes sugestivos para o espetáculo que se revelou também um lugar único para aparecer na televisão. Não faltaram o: “Meu povo eu estou aqui”. “Mãe sua benção”. “Meu voto vai para meus filhos e netos”. “Um alô especial para minha querida esposa”. “Minha voz se levanta para apoiar o falecido compadre...” Parecia um programa de auditório onde cada um, ‘narciso’ de si mesmo queria aparecer e ser visto pelo “povo de sua terra” através da imagem transmitida pela televisão.

O mestre do picadeiro levou à frente a apresentação com maior fôlego do que o do Faustão. Parecia dono do espetáculo e provavelmente o era dada a forma como o conduzira antes e durante a sessão.
Era, para muitos, angustiante acompanhar o desenrolar do espetáculo...

De repente do lado de cá, em minha casa o telefone tocou e uma amiga de Pernambuco me diz “Você não acha que esse espetáculo faz pensar num texto do Evangelho de Marcos”? Qual é, pergunto eu? E ela diz: “tudo o que está escondido deverá ser manifesto e tudo o que está em segredo deverá ser descoberto. Se alguém tem ouvidos para ouvir ouça e olhos para ver, que veja” (Mc 4,22-23). Vou pensar lhe respondi e logo nos despedimos para não perder nenhuma cena do circo.

Essa noite quase insone, o espetáculo que assisti dos meninos no circo me vinha ao espírito entremeado com as palavras do Evangelho que minha amiga havia evocado. Não sei como, mas encontrei uma possível chave de compreensão do acontecimento da noite revelada ou inspirada pelo texto...

O espetáculo circense, sem dúvida de má qualidade, pode revelar a incompetência dos artistas do circo. Todos amadores em política e aparentemente incompetentes nos seus cargos. Amadores que nem querem ser aprendizes do povo que os elegeu, das revelações da história presente, dos problemas e desafios colocados ao país pelo complexo mundo globalizado. Fizeram da Política, aquela que deveria ser servidora do bem comum, um convescote de torcidas organizadas, um desfile de meninos envolvidos com a bandeira nacional que mais do que patriotismo escondia sua inépcia em ocupar um lugar público. Triste espetáculo, tristemente revelado ou proclamado não “sobre os telhados”, mas a todo o povo que no aconchego de suas casas ou nos telões das cidades assistia ao espetáculo da ‘condenação de Joana d’Arc’.

Os meninos travessos, salvo algumas exceções, embora envolvidos na bandeira estavam nus. Nus porque estavam mostrando sua ignorância e sua incapacidade de entender a complexidade do momento político. Nus porque muitos não sabiam do que falavam, mas falavam aos gritos revelando a estupidez da ignorância humana. Queriam apenas brincar de “mocinho e bandido” ou de “caçadores do lobo que engolira chapeuzinho vermelho” ou de “apedrejadores da mulher adúltera”. Triste espetáculo! Meninos contra uma mulher com história de vida e de política, com acertos e erros como qualquer pessoa...

Triste espetáculo! Mas real espetáculo revelador de nossa nudez política tomando aqui a nudez como símbolo do despreparo para exercer uma função pública para beneficiar a vida de muitos, sobretudo dos mais necessitados. Os meninos travessos de muitas idades faziam caras de consternação como num jogo de “fazer caretas”, “faziam suspense” e finalmente gritavam seu veredicto para condenar ou matar a mulher. Era seu momento de glória, seu êxtase político, seu orgasmo de palavras apoiados pela torcida enlouquecida e insubmissa... Não havia respeito, apenas gracejos e ironias, acusações infundadas, mas inflamadas de ódio e crueldade... Triste espetáculo circense! Os falsos palhaços e acrobatas, os mágicos e dançarinos desconheciam a arte do serviço público!


Sim, agora “o que estava escondido se tornara manifesto”... Mas não apenas está manifesta a ignorância dos meninos no circo, mas a nossa. Pois é contra nós que usando o voto, permitimos que os meninos fizessem da política um jogo em benefício próprio. Somos nós que por nosso silêncio de anos, ignorância, preguiça ou outras razões permitimos que eles vivessem sua “vida oculta” de desserviços à nação como se ninguém os visse e ninguém cobrasse deles o serviço que deveriam fazer. Somos nós que talvez até sem querer não levantamos a nossa voz e nem prestamos atenção para o que acontece no picadeiro do circo e com os funcionários pagos com nosso suor e sangue. Somos nós que estamos nus, nós que até nos esquecemos do nome de quem demos nosso voto! Nudez que mostra mais uma vez nossa ignorância e alienação política!

Sim agora “o que estava em segredo está descoberto”... Fica clara nossa responsabilidade comum no apedrejamento da mulher. Fica claro que permitimos que se acumulassem pedras e ódios dentro de nós. Fica evidente que não nos convocamos mutuamente para repensar a vida comum e nem propor entre nós, novas “políticas públicas” que comecem nos pequenos grupos de bairro e que atuem primeiro localmente.

E então, o espetáculo dominical chegou ao final... Os meninos de uma das torcidas apedrejaram a mulher embora muitos tivessem tentado impedir... Seus corações já estavam endurecidos com as palavras de ordem, com os interesses pessoais, com alguns escusos tesouros escondidos que não foram ainda revelados. Suas mentes estavam embriagadas pelo minuto da fama que buscavam...

E no final do espetáculo todos voltaram para casa...

Mas, alguns perdidos na noite escura choraram quando tomaram consciência das “revelações” a respeito de si mesmos. Que fazer agora?

É hora de voltar às muitas Jerusalém do país, é hora de voltar a encontrar o povo, de rever, conversar, estudar, pensar, programar, ajudar...

Antes que seja tarde demais é preciso voltar a acreditar que a vida está aí, está em nós e nos convocando a um hoje e um amanhã mais atento ao coração comum que deve ser ouvido e sentido por todas e todos nós. Afinal não somos todas, todos e tudo do mesmo pó de estrelas? Não somos nós filhas e filhos do mesmo barro?


Fonte: Ihu

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