Ivone Gebara, teóloga, comenta a
sessão da Câmara dos Deputados, realizada no domingo, 17-04-2016, aprovando a
admissibilidade do impeachment da Presidente Dilma Rousseff.
Senhoras e senhores entrem,
entrem que a grande apresentação vai começar... Entrem sem pressa e assumam
seus lugares. Há espaço para todos! Em breve as portas serão fechadas e a
comunicação exterior poderá ser feita apenas pelos celulares. São admitidos ‘selfis’,
fotos em conjunto, filmagens do evento... Todos nós aqui presentes seremos
parte do espetáculo.
O circo espuriamente democrático
faz jus à apresentação feita dele. O picadeiro é comandado por um senhor branco
de aparência séria que se apresenta como sendo capaz de engolir ‘sapos e
lagartos’ apoiado por uma torcida organizada que embora fora da lei do circo
lhe dá apoio e o ladeia constantemente com exclamações de apoio ou negações
quando alguém parece se apresentar destoando do coro. Seus olhos e sua voz
controlam a organização do espetáculo como se fossem chibatadas bem dadas. As
televisões do país disputam espaços para mostrar as melhores cenas focalizando
o jogo dos meninos irrequietos e de suas falas muitas vezes desarticuladas e
barulhentas.
Um espetáculo único que poderia
se chamar “a condenação de Joana d’Arc” ou “o vale das fantasias” e até “o
incêndio do circo”. Os leitores poderão escolher ou inventar outros nomes
sugestivos para o espetáculo que se revelou também um lugar único para aparecer
na televisão. Não faltaram o: “Meu povo eu estou aqui”. “Mãe sua benção”. “Meu
voto vai para meus filhos e netos”. “Um alô especial para minha querida
esposa”. “Minha voz se levanta para apoiar o falecido compadre...” Parecia um
programa de auditório onde cada um, ‘narciso’ de si mesmo queria aparecer e ser
visto pelo “povo de sua terra” através da imagem transmitida pela televisão.
O mestre do picadeiro levou à
frente a apresentação com maior fôlego do que o do Faustão. Parecia dono do
espetáculo e provavelmente o era dada a forma como o conduzira antes e durante
a sessão.
Era, para muitos, angustiante
acompanhar o desenrolar do espetáculo...
De repente do lado de cá, em
minha casa o telefone tocou e uma amiga de Pernambuco me diz “Você não acha que
esse espetáculo faz pensar num texto do Evangelho de Marcos”? Qual é, pergunto
eu? E ela diz: “tudo o que está escondido deverá ser manifesto e tudo o que
está em segredo deverá ser descoberto. Se alguém tem ouvidos para ouvir ouça e
olhos para ver, que veja” (Mc 4,22-23). Vou pensar lhe respondi e logo nos
despedimos para não perder nenhuma cena do circo.
Essa noite quase insone, o
espetáculo que assisti dos meninos no circo me vinha ao espírito entremeado com
as palavras do Evangelho que minha amiga havia evocado. Não sei como, mas
encontrei uma possível chave de compreensão do acontecimento da noite revelada
ou inspirada pelo texto...
O espetáculo circense, sem dúvida
de má qualidade, pode revelar a incompetência dos artistas do circo. Todos
amadores em política e aparentemente incompetentes nos seus cargos. Amadores
que nem querem ser aprendizes do povo que os elegeu, das revelações da história
presente, dos problemas e desafios colocados ao país pelo complexo mundo
globalizado. Fizeram da Política, aquela que deveria ser servidora do bem
comum, um convescote de torcidas organizadas, um desfile de meninos envolvidos
com a bandeira nacional que mais do que patriotismo escondia sua inépcia em
ocupar um lugar público. Triste espetáculo, tristemente revelado ou proclamado
não “sobre os telhados”, mas a todo o povo que no aconchego de suas casas ou
nos telões das cidades assistia ao espetáculo da ‘condenação de Joana d’Arc’.
Os meninos travessos, salvo
algumas exceções, embora envolvidos na bandeira estavam nus. Nus porque estavam
mostrando sua ignorância e sua incapacidade de entender a complexidade do
momento político. Nus porque muitos não sabiam do que falavam, mas falavam aos
gritos revelando a estupidez da ignorância humana. Queriam apenas brincar de “mocinho
e bandido” ou de “caçadores do lobo que engolira chapeuzinho vermelho” ou de
“apedrejadores da mulher adúltera”. Triste espetáculo! Meninos contra uma
mulher com história de vida e de política, com acertos e erros como qualquer
pessoa...
Triste espetáculo! Mas real
espetáculo revelador de nossa nudez política tomando aqui a nudez como símbolo
do despreparo para exercer uma função pública para beneficiar a vida de muitos,
sobretudo dos mais necessitados. Os meninos travessos de muitas idades faziam caras
de consternação como num jogo de “fazer caretas”, “faziam suspense” e
finalmente gritavam seu veredicto para condenar ou matar a mulher. Era seu
momento de glória, seu êxtase político, seu orgasmo de palavras apoiados pela
torcida enlouquecida e insubmissa... Não havia respeito, apenas gracejos e
ironias, acusações infundadas, mas inflamadas de ódio e crueldade... Triste
espetáculo circense! Os falsos palhaços e acrobatas, os mágicos e dançarinos
desconheciam a arte do serviço público!
Sim, agora “o que estava
escondido se tornara manifesto”... Mas não apenas está manifesta a ignorância
dos meninos no circo, mas a nossa. Pois é contra nós que usando o voto,
permitimos que os meninos fizessem da política um jogo em benefício próprio.
Somos nós que por nosso silêncio de anos, ignorância, preguiça ou outras razões
permitimos que eles vivessem sua “vida oculta” de desserviços à nação como se
ninguém os visse e ninguém cobrasse deles o serviço que deveriam fazer. Somos
nós que talvez até sem querer não levantamos a nossa voz e nem prestamos
atenção para o que acontece no picadeiro do circo e com os funcionários pagos
com nosso suor e sangue. Somos nós que estamos nus, nós que até nos esquecemos
do nome de quem demos nosso voto! Nudez que mostra mais uma vez nossa
ignorância e alienação política!
Sim agora “o que estava em
segredo está descoberto”... Fica clara nossa responsabilidade comum no
apedrejamento da mulher. Fica claro que permitimos que se acumulassem pedras e
ódios dentro de nós. Fica evidente que não nos convocamos mutuamente para
repensar a vida comum e nem propor entre nós, novas “políticas públicas” que
comecem nos pequenos grupos de bairro e que atuem primeiro localmente.
E então, o espetáculo dominical
chegou ao final... Os meninos de uma das torcidas apedrejaram a mulher embora
muitos tivessem tentado impedir... Seus corações já estavam endurecidos com as
palavras de ordem, com os interesses pessoais, com alguns escusos tesouros
escondidos que não foram ainda revelados. Suas mentes estavam embriagadas pelo
minuto da fama que buscavam...
E no final do espetáculo todos
voltaram para casa...
Mas, alguns perdidos na noite
escura choraram quando tomaram consciência das “revelações” a respeito de si
mesmos. Que fazer agora?
É hora de voltar às muitas
Jerusalém do país, é hora de voltar a encontrar o povo, de rever, conversar,
estudar, pensar, programar, ajudar...
Antes que seja tarde demais é
preciso voltar a acreditar que a vida está aí, está em nós e nos convocando a
um hoje e um amanhã mais atento ao coração comum que deve ser ouvido e sentido
por todas e todos nós. Afinal não somos todas, todos e tudo do mesmo pó de
estrelas? Não somos nós filhas e filhos do mesmo barro?
Fonte: Ihu
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