Verónica Montúfar, coordenadora mundial para Questões de
Gênero e Equidade da ISP. (Foto: Leo Hyde/ISP)
Essa é a conclusão de Verónica Montúfar, da Internacional de
Serviços Públicos (ISP). “Quando não há serviços de saúde, são as mulheres que
cuidam dos doentes. Quando não há escolas, são elas que proveem educação aos
seus filhos. Na ausência de serviços públicos, são as mulheres que os
substituem.”
Por uma construção antes histórica do que natural, as
mulheres são as provedoras de serviços essenciais para as suas famílias,
explica a equatoriana Verónica Montúfar, coordenadora mundial para Questões de
Gênero e Equidade da Internacional de Serviços Públicos (ISP), federação global
de sindicatos do setor público. “Quando não há água potável, são as mulheres
que vão buscar água em lugares distantes. Quando não há serviços de saúde, são
elas que cuidam dos doentes. Quando não há escolas, são elas que proveem
educação aos seus filhos. Ou seja, na ausência de serviços públicos prestados
pelos Estados, são as mulheres que os substituem.”
Portanto, a precariedade e/ou mercantilização dos serviços
públicos, seja por parcerias público-privadas, seja por acordos comerciais,
afetam especialmente as mulheres, “já que o tempo e esforço que dedicam a essas
tarefas em função social de suas famílias e comunidades lhes tiram espaço para
sua autorrealização e autonomia”.
Nesta entrevista por e-mail, Montúfar fala sobre como as
mulheres são as mais afetadas pela intensificação do trabalho e hierarquização
do processo produtivo causadas pela extrema desigualdade na distribuição dos
frutos da terceira revolução científica-tecnológica, e explica as especificidades
da questão de gênero nos serviços públicos e as dificuldades enfrentadas pelas
trabalhadoras desse setor, entre outros assuntos. “A subvalorização social do
trabalho de cuidado e reprodução da vida é uma tendência. Como se as mulheres
trouxessem consigo o subvalor do espaço privado para o espaço público.”
Quais são os principais desafios que as mulheres enfrentam
hoje no mundo do trabalho?
Existem tensões gerais que afetam as mulheres e homens
trabalhadores. O avanço das forças produtivas, consolidada na terceira
revolução científica-tecnológica, pela primeira vez coloca a humanidade em
condição de ser sujeito de sua própria história, superar a escassez e construir
a equidade e igualdade universais. No entanto, essa potencialidade é
expropriada pela acumulação monopolista dos capitais transnacionais que agem
como Estados sem território, em aliança com os Estados nacionais e organismos
multilaterais, e que tem como consequência a tragédia da desigualdade e
exclusão de indivíduos, comunidades, países e continentes, que se tornam
descartáveis para a reprodução do capital, com novas formas de pobreza e
violência.
Da mesma forma, essa exorbitante capacidade de produzir,
acompanhada do paradoxo da apropriação privada da riqueza produzida e do
extremo aprofundamento da desigualdade na distribuição, tem provocado profundas
transformações na organização do processo produtivo, que colocam em maior relevo
a intensificação do trabalho e a hierarquização das relações trabalhistas. No
mesmo sentido, acarretaram a expulsão de grandes massas de trabalhadores e
trabalhadoras do trabalho formal e protegido, e sua inclusão em modalidades
mais precárias e no setor informal. A passagem da manufatura para a
“mentefatura” tem como consequência a incorporação do trabalhador e da
trabalhadora no processo de trabalho com toda sua capacidade não apenas física,
como também intelectual e emocional.
A passagem da manufatura para a “mentefatura” tem como
consequência a incorporação do trabalhador e da trabalhadora no processo de
trabalho com toda sua capacidade não apenas física, como também intelectual e
emocional
No entanto, por conta das desvantagens históricas de gênero,
essas condições afetam de maneira desigual as mulheres, que participam das
forças produtivas como mão de obra barata, ocupando os espaços condicionados
pela divisão sexual do trabalho e sem deixar de lado o trabalho de reprodução
social que elas realizam no âmbito privado. Esse fator duplica sua jornada de
trabalho e não mudou com os avanços nas legislações nem com o maior
desenvolvimento produtivo. As mulheres continuam conformando o setor
trabalhista mais afetado.
Claro que em alguns países essas condições estão mudando. Há
mulheres que conseguiram romper a segregação trabalhista de gênero, tanto em
relação a se incorporar em ocupações dominantemente masculinas e posições de
direção, como em relação a redistribuir seu trabalho reprodutivo no seio da família,
mas continuam sendo uma minoria e elas sozinhas não poderão alterar as relações
desiguais nem de gênero nem de classe que existem no mundo do trabalho e que
compõem estruturalmente a base de um sistema de dominação.
Quais são as especificidades da questão de gênero nos
serviços públicos e as dificuldades que as trabalhadoras enfrentam no setor?
Continuando na linha da divisão sexual do trabalho, na
configuração dos serviços públicos existem setores com predominância de força
de trabalho masculina, e outros com predominância de força de trabalho
feminina. Os primeiros, vinculados aos setores produtivos do Estado, os
segundos, aos setores de cuidado e reprodução da vida. Essa é uma tendência em
todos os países do mundo, assim como também é uma tendência a subvalorização
social do trabalho de cuidado e reprodução da vida. Como se as mulheres
trouxessem consigo o subvalor do espaço privado para o espaço público. O
caráter de gênero da força de trabalho dentro dos serviços públicos não superou
tampouco a segregação vertical, já que nos setores onde as mulheres predominam
como trabalhadoras elas também predominam na base da pirâmide trabalhista,
significando ainda que nesses casos a diferença de remuneração se duplica.
Também é uma tendência a subvalorização social do trabalho
de cuidado e reprodução da vida. Como se as mulheres trouxessem consigo o
subvalor do espaço privado para o espaço público
Paralelamente, os processos de reforma do Estado,
modernização e tecnificação dos serviços públicos implicam também mudanças na
organização do trabalho no setor público, onde estão sendo implementados com
muita velocidade modelos empresariais de produção que intensificam os processos
em nome da eficiência e hierarquizam as relações trabalhistas.
Da mesma forma, a falta de financiamento dos serviços
públicos gera tensão nas relações com a comunidade usuária, o que causa
condições de violência, não apenas externa como também interna. Nos serviços de
saúde e cuidado, o trabalho implica colocar em jogo não apenas sua capacidade
física, como também sua subjetividade. Esse fenômeno é denominado de
feminização do trabalho, categoria que expressa que, independentemente de que
seja um homem ou uma mulher, agora o processo de trabalho precisa do
envolvimento do ser humano de maneira íntegra, que deve se entregar com todas
suas capacidades psíquicas e emocionais necessárias para o cuidado da vida e da
reprodução humana; características que são reconhecidas como fundamentalmente
femininas. Dessa maneira, os serviços públicos requerem cada vez mais
fortemente um “biotrabalho”, que age como um novo processo de exploração.
A Internacional de Serviços Públicos defende que os serviços
públicos essenciais devem ficar de fora das Parcerias Público-Privadas (PPPs),
do financiamento misto e dos tratados comerciais, pois tais iniciativas
repercutem de forma mais negativa sobre os direitos sociais da mulher. Por que
isso acontece?
A mercantilização dos serviços públicos aprofunda o paradoxo
entre a abundância e a escassez. Mais ainda agora, quando a acumulação
capitalista amplia sua fronteira em direção aos serviços públicos e bens comuns
da humanidade. Esse fenômeno de o capital continuar com a força com que se
erigiu nos últimos anos fará grandes quantidades de seres humanos serem excluídos
do bem-estar da humanidade. Por causa da fundamental responsabilidade das
mulheres em relação ao cuidado dos lares (situação não natural, mas sim
historicamente construída), são elas as provedoras dos serviços essenciais a
suas famílias. Quando não há água potável, são as mulheres que vão buscar água
em lugares distantes. Quando não há serviços de saúde, são elas que cuidam dos
doentes. Quando não há escolas, são elas que proveem educação aos seus filhos.
Ou seja, na ausência de serviços públicos prestados pelos Estados, são as
mulheres que os substituem. Isso determina o círculo de exclusão e
marginalização, já que o tempo e esforço que dedicam a essas tarefas em função
social de suas famílias e comunidades lhes tiram espaço para sua
autorrealização e autonomia. Por isso, entre os pobres as mulheres são as mais
pobres em todo o mundo.
Há também outro âmbito que nos permite fazer uma análise de
gênero nos serviços públicos, particularmente quando vemos como através deles é
cumprida a realização política, econômica, social e cultural dos seres humanos.
Esse âmbito está relacionado ao modo como esses serviços estão pensados,
construídos, edificados. Por exemplo, serviços públicos que não permitem o
exercício da saúde sexual e reprodutiva das mulheres. Serviços públicos
pensados a partir de ideologias autoritárias, conservadoras, excludentes, que
em vez de potencializar, limitam os seres humanos, situação que também afeta
mais as mulheres.
O tempo e esforço que dedicam a essas tarefas em função
social de suas famílias e comunidades lhes tiram espaço para sua
autorrealização e autonomia. Por isso, entre os pobres as mulheres são as mais
pobres em todo o mundo
Falando de saúde sexual e reprodutiva, é necessário pensar
em serviços públicos com enfoque de gênero que possibilitem a integridade do
corpo e a segurança emocional das mulheres, meninas e jovens. De igual maneira,
para conseguir baixar a carga trabalhista do trabalho de reprodução social da
família que está majoritariamente nas mãos das mulheres, são indispensáveis
serviços públicos de cuidado de crianças e idosos. Da mesma forma, para
possibilitar segurança corporal e de movimento às mulheres são necessários
serviços públicos de transporte, espaços públicos iluminados que permitam a
mobilidade e a ocupação segura dos espaços públicos. Serviços públicos
universais de qualidade e com enfoque de gênero são indispensáveis para a
realização da autonomia econômica e política das mulheres e dos setores sociais
mais pobres.
Qual o papel dos sindicatos nesse contexto?
O papel dos sindicatos é transformar essa realidade, apesar
do fato de que atualmente as políticas regressivas de direitos no setor público
têm afetado o poder dos sindicatos, afetando ao mesmo tempo sua capacidade de
negociação coletiva. Por isso, hoje é um momento de recuperar força, mais além
das limitações jurídicas. É momento de reconquistar espaços de cogestão no
mundo do trabalho e na organização e planejamento dos serviços públicos a
partir dos níveis de governo central até os governos locais. A cogestão é um
espaço de cogoverno, que possibilita a incidência dos trabalhadores e
trabalhadoras organizados tanto em seus locais de trabalho quanto nos espaços
onde as políticas públicas em todos os níveis são definidas, chegando inclusive
aos níveis da macro política mundial.
Os sindicatos estão sobre determinados por essas condições
sociais e históricas. Sua transformação implicará um trabalho de homens e
mulheres
De igual maneira, outro elemento de força são as alianças
com outros setores sociais na defesa dos serviços públicos, na proposta de
alternativas à privatização; aqui é fundamental a articulação com o movimento
social e o movimento de mulheres em resistência e em luta transformadora. A
ISP, como sindicato global, está trabalhando com um alto perfil e incidência
nessa direção.
A tarefa de despatriarcalizar as relações humanas e as
estruturas implica um profundo processo de mudança. Os sindicatos estão
sobredeterminados por essas condições sociais e históricas. Sua transformação
implicará um trabalho de homens e mulheres. Nessa tarefa estamos.
Entre os dias 14 e 24 de março será realizada a 60ª reunião
da Comissão da Condição Jurídica e Social da Mulher das Nações Unidas
(UNCSW60). O que a ISP levará para discussão no encontro? O tema prioritário da
reunião será “o empoderamento da mulher e seu vínculo com o desenvolvimento
sustentável”. Quais são os caminhos defendidos pela ISP sobre o tema?
Nosso trabalho como ISP no interior da Comissão da ONU é em
conjunto com uma forte coalizão sindical composta pela CSI [Confederação
Sindical Internacional], IE [Internacional da Educação] e ITF [Federação
Internacional dos Trabalhadores do Transporte]. Temos o interesse de aumentar o
nível de legitimidade dos sindicatos como defensores dos direitos das mulheres,
tanto no mundo do trabalho como na sociedade, assim como também elevar nossa
incidência junto com o movimento social de mulheres e ONGs com as quais
compartilhamos os mesmos princípios nas decisões dos atores governamentais nas
políticas pela igualdade e equidade de gênero a nível global.
Através de uma declaração conjunta, demarcamos nossa
posição, que enfatiza que uma das principais razões pelas quais as mulheres se
filiam a sindicatos é para se encarregarem de seu próprio empoderamento
econômico, por meio da organização e da negociação coletiva de condições
trabalhistas decentes. Setenta milhões de mulheres estão representadas por
sindicatos em todo o mundo. Por isso os sindicatos são parte integrante e
atores que garantem o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
até 2030.
Uma das principais razões pelas quais as mulheres se filiam
a sindicatos é para se encarregarem de seu próprio empoderamento econômico, por
meio da organização e da negociação coletiva de condições trabalhistas decentes
Da mesma forma, manifestamos que os serviços públicos
essenciais, como água e saneamento, saúde e educação, devem ser excluídos das
Parcerias Público-Privadas, acordos comerciais e financeiros combinados e
iniciativas que mais negativamente repercutem sobre os direitos sociais das
mulheres. Os modelos de justiça fiscal e tributação progressiva podem servir de
sólida base alternativa para as políticas públicas necessárias em favor da
igualdade de gênero.
Este ano participarão em torno de 180 representantes de uma
diversidade de sindicatos de todo o mundo e particularmente da América do
Norte. A ISP contará com uma delegação de 20 pessoas, procedentes de suas
filiadas de África, Ásia, Europa e Américas. Juneia Batista, presidenta do WOC
[Comitê Mundial de Mulheres da ISP, por sua sigla em inglês], estará
credenciada como parte da delegação do governo brasileiro, os que nos abre a
oportunidade como movimento sindical de participar das reuniões oficiais e ter
também aí visibilidade e incidência.
Em 3 de março, a líder indígena de Honduras Berta Cáceres
foi assassinada em sua casa. Além de opositora ao golpe de 2009 que derrubou
Manuel Zelaya, ela se opunha fortemente aos tratados de livre comércio e à ação
de corporações transnacionais. O que pensa do seu assassinato? Ele pode ser
analisado também no contexto da violência contra as mulheres?
Sim. Para a ISP está claro que Berta Cáceres é mais uma vítima
da voracidade do poder corporativo transnacional pela apropriação dos bens
comuns da humanidade e do alarmante avanço dos índices de feminicídio que
tentam calar as mulheres nos espaços do público e do privado.
Fonte: Ponte
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