Trabalhar com questões de gênero
é trabalhar o tempo todo: quando se escolhe como objeto de investigação a
estrutura das relações entre mulheres e homens, todo o nosso entorno se
transforma em um grande observatório no qual é possível perceber o quanto os
significados atribuídos ao feminino e ao masculino permeiam todas as relações
sociais e produzem os mais diferentes resultados.
Por Maíra Zapater, do
Justificando
Por isso vejo de forma positiva
esse aumento do interesse no tema para além do ambiente acadêmico de uns poucos
anos pra cá: os campos da militância se ampliaram e a discussão definitivamente
saiu das bancas de doutorado e salas de aula para as timelines das redes
sociais e programas de televisão. Enfim, o tema está em pauta!
Ainda assim, mesmo levando em
conta todo esse especial direcionamento do olhar, nas últimas duas semanas tive
a sensação de que a temática das relações de gênero contou com alguns episódios
que valem ser comentados, especialmente porque, no mesmo período, projetos de
lei importantes sobre a questão avançaram em sua tramitação. Entendo que todas
essas ocorrências tangenciam pontos comuns e valem uma reflexão. Então vamos
aos fatos!
No final do mês de março, virou
assunto nas redes sociais a página “Te vi no Mack”, dos alunos da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, e que funciona mais ou menos como uma versão
atualizada e tecnológica do bom e velho“correio elegante” (pra quem nunca
brincou na quermesse da escola, consistia em tradicional modalidade de flerte
por meio da troca de bilhetes anônimos levados por um terceiro, que era o
“carteiro” do “correio”). Pois lá foi feita uma postagem por um dos usuários,
que se queixava de um assédio sofrido dentro de um banheiro masculino praticado
pelos denominados “manja rola” (denominação digna de roteiro do Almodóvar,
cujos termos empregados dispensam maiores explicações). O que virou notícia
[1], contudo, não foi o assédio nem a postagem, mas a reação de muitas mulheres
nos comentários: “Não quisessem que olhassem não tivessem ido para o banheiro
fazer xixi. Tavam pedindo.” “”Rola bonita foi feita pra se olhar, larga desse
mimimi! Quanto homem por aí com a rolinha murcha, sonhando com uma olhadinha,
tsc tsc.” “Se estivesse batendo cimento pra fazer uma laje em vez de estar no
bar bebendo álcool isso não tinha acontecido”.
Corta a cena para a quarta-feira,
dia 30 de março. Tatiane Moreira Lima, magistrada titular do Juizado de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Fórum Regional do Butantã,
sofre grave ataque por parte de um réu, que havia sido acusado de agressões
contra sua mulher e estava sendo processado perante aquela vara. Alfredo José
dos Santos invadiu o prédio do fórum ateando fogo por onde passava, invadiu o
gabinete onde a juíza se preparava para a audiência daquele processo e a rendeu
violentamente, jogando-a sobre um líquido inflamável no chão e ameaçando-a de
morte com um isqueiro. Foi salva sem ferimentos pela ação da Polícia Militar –
e retornou poucos dias depois ao trabalho, declarando corajosamente que se
sente “mais forte e determinada a lutar pelos direitos das mulheres vítimas de
violência doméstica”. [2]
Em paralelo a esses episódios, o
Senado Federal aprovou e encaminhou para votação na Câmara os PLs nº 08 e 09 de
2016 [3] que preveem, respectivamente, a criação de sistema de coleta e sistematização
de dados sobre violência contra as mulheres, e a inclusão da participação da
pessoa acusada de agressão em grupos de educação e reabilitação como hipótese
de medida protetiva de urgência. Já a Câmara dos Deputados enviou para votação
no Senado seu PL nº 173/20154, que tipifica como crime a conduta de
descumprimento de medida protetiva de urgência.
Ambos os episódios aqui relatados
são sintomas de uma mentalidade sobre relações de gênero. O anedótico episódio
do assédio dos “manja rola” possibilitou constatarmos a força simbólica dos
comentários à postagem, em exercício espontâneo de inversão de papéis de
gênero, sempre útil para demonstrar que, se há estranhamento causado por essa
inversão, é por haver expectativas sociais diferentes para cada um dos atores
envolvidos. O caso ocorrido com a juíza Tatiane no fórum do Butantã, por outro
lado, mostra o extremo de violência a que pode evoluir a discriminação de
gênero – várias análises e a percepção da própria juíza reconhecem que houve no
atentado um forte componente neste sentido, a indicar uma provável insubmissão
do acusado a uma autoridade feminina.
As pontas dessa meada de
acontecimentos recentes podem ser unidas justamente por manifestarem abalos às
estruturas sociais construídas pelos valores culturais compartilhados a
respeito dos papéis de gênero esperados de mulheres e homens. Como já discorri
várias vezes aqui no Justificando, entendo que a assimetria de poder existente
entre homens e mulheres foi construída ao longo dos séculos e é estruturante de
nossa sociedade – e por isso mesmo as ações para seu desmantelamento devem
passar, necessariamente, por modificações das relações intersubjetivas em
diversos campos.
A alteração do universo jurídico
é apenas uma delas, e é aqui que retomo os projetos de lei acima mencionados,
pois se tratam justamente de propostas para transformação deste cenário pela
via legislativa: de um lado, se propõe que pessoas acusadas de agressão
frequentem grupos de educação e reabilitação de forma preventiva como medida de
proteção à mulher (e não somente como forma de execução da pena, possibilidade
atualmente prevista na Lei Maria da Penha e pela qual somente pode ser aplicada
se houver condenação), e também que se coletem e sistematizem dados sobre a
violência para elaboração de políticas públicas de prevenção. De outro, cria-se
mais um tipo penal, que, se por um lado, possibilita a prisão em flagrante do
acusado que descumpre medida protetiva – o que pode interromper uma situação
imediata de violência – , por outro continua apostando na via punitiva como
forma de prevenção.
De tudo isso, extraio que estamos
vivenciando mais um momento de transformação nas relações entre os gêneros.
Ainda que persista tanta violência e discriminação, estamos falando a respeito.
Estamos modificando a forma de analisar fatos que antes passariam despercebidos
sob este viés. São essas micro-transformações diárias que começam, aos poucos,
a se refletir na nossa produção legislativa. Que da anedota à tragédia
consigamos encontrar o fio da meada para tecer novas relações.
Maíra Zapater é graduada em
Direito pela PUC-SP e Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em
Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de
São Paulo e doutoranda em Direitos Humanos pela FADUSP. Professora e pesquisadora,
é autora do blog deunatv.
REFERÊNCIAS
1[1]
http://oglobo.globo.com/sociedade/mulheres-ironizam-reclamacao-de-assedio-em-banheiro-masculino-18990256
2[1]
http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,o-que-sofri-foi-violencia-de-genero–afirma-juiza-agredida-em-sp,10000024841
3[1]
http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/124674 e
http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/124675
4[1]
http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/505866-CAMARA-APROVA-PROJETO-QUE-TIPIFICA-O-CRIME-DE-DESCUMPRIMENTO-DE-MEDIDAS-PROTETIVAS.html
Fonte: Geledes
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