domingo, 3 de abril de 2016

Jesus visita um campo de refugiados


“Olhem para eles, são pedaços de nós, irmãos e filhos do Pai, e não têm para onde ir. Ajudem aqueles que estão perto de vocês, mas não se esqueçam daqueles que estão longe. Contemplem essas crianças mortas. Olhem a vida com a esperança que lhes dava estar vendo continuamente o rosto do meu Pai. Eles contam alguma coisa nos escritórios dos donos deste mundo, nas assembleias dos políticos, nas previsões de Wall Street? ‘Estou à porta e bato’, repetirei mil vezes. Quem recebe ou abriga a um destes refugiados é a mim que recebe.”


“Passaram-se 21 séculos desde que você veio, e é como se não tivesse vindo. Todos acreditam ter a verdade”, escreve o teólogo jesuíta espanhol Pedro Miguel Lamet, em artigo publicado por Religión Digital, 29-03-2016. A tradução é de André Langer. Eis o artigo.

O vento forte levantava a areia da praia de Lesbos. A uma milha de distância, diversos botes infláveis lutavam contra um mar embravecido, onde famílias de refugiados sírios se debatiam entre a vida e a morte. Um punhado de pescadores gregos lançou um cabo de sua barcaça a um dos botes a ponto de desinflar-se e ser engolido por uma gigantesca onda. Gritavam:

- Salvem-nos, senão vamos perecer!

O dono, de barba preta e olhos profundos, vestido com um chaleco cor butano e um gorro afundado até as sobrancelhas, exclamou:

– Vamos, remem mais forte!

A duras penas conseguiram arrastar a frágil embarcação até a praia. A imagem que encontraram não podia ser mais desoladora: jovens voluntários da organização Médicos do Mundo praticavam a respiração artificial em um náufrago, enquanto outros cobriam com mantas os cadáveres de várias crianças que não conseguiram sobreviver ao desembarque.

Exaustos, depois de uma esgotante jornada, os 12 pescadores acenderam uma fogueira junto a uma casa em ruínas. O dono disse:

– “Quebrado o timão, sem água e sem alimentos, vejo estas pessoas como navegantes sem rumo, nem norte nem porto. O que posso dizer sobre esta geração? Ai daqueles que os jogaram nesta situação! Ai de você, Europa, que lhes fecha as portas e lhes nega a vida! Eu enviei, há muito tempo, a estas praias os meus primeiros apóstolos para semear a Boa Nova de amor e de bem-aventurança. Vocês me construíram igrejas, sim, mas também fundaram nações para se enriquecerem, e depois de lutar entre vocês, acabaram entregues ao deus que chamam de ‘Estado de Bem-Estar’.”

“Vocês converteram o continente em um castelo invencível, um recinto fechado com muros e barreiras, um mercado dependente dos movimentos da bolsa e dos ‘prêmios’ de risco, em função de seu próprio egoísmo. Vocês criaram uma moeda única para engrossar as suas arcas, pois armazenam em bancos o dinheiro de todos, ou promover multinacionais que exploram os mais desfavoráveis dos países pobres. Mas, de que servem as suas polpudas contas bancárias quando se apresentar o implacável ladrão na noite?”

Um marinheiro chamado André perguntou:

– Mas, eles não têm o Papa e os bispos para recordar-lhes o que você ensinou na sua primeira vinda?

– “Ai, André, muitos se esqueceram do mar, da pesca e das noites de vigília. E ao atual sucessor de Pedro, que, fiel a mim, clama por estes desvalidos, não lhe fazem caso. É uma voz que grita no deserto do consumismo. Ou então chamam-no de ‘populista’ e ‘comunista’. Pediu que os refugiados fossem acolhidos, mas a Europa faz ouvidos moucos, limita-se a colocar remendos em tamanha tragédia.”

“O Papa criticou sem rodeios um sistema que ‘descentrou a pessoa’, colocando no centro o ‘deus dinheiro’ e defendeu para que a Igreja não se fechasse em si mesma. ‘Se uma igreja, uma paróquia, uma diocese, um instituto vive fechado em si mesmo, adoece’. Ele é contra transformar os mosteiros vazios em hotéis para obter recursos, quando estas pessoas não têm onde reclinar a cabeça ou morrem como cães nestas praias.”

Os discípulos cochichavam entre si sobre algumas críticas que faziam ao Papa: “Vive na residência de Santa Marta, em vez de morar no palácio vaticano”, “usa um carro simples”, “aproxima-se dos doentes e visita as prisões, fala com os mendigos da rua e diz que não é ninguém para julgar os homossexuais”. “Não é um teólogo brilhante, e, para o cúmulo, entende-se tudo o que diz”.

– “Vocês não me reconhecem nestas palavras de Francisco?”, perguntou o Mestre. “Cada vez com maior frequência, as vítimas da violência e da pobreza, abandonando suas terras de origem, sofrem o ultraje dos traficantes de pessoas humanas na viagem rumo ao sonho de um futuro melhor... Mais que em tempos passados, hoje o Evangelho da misericórdia interpela as consciências, impede que se habituem ao sofrimento do outro e indica caminhos de resposta fundados nas virtudes teologais da fé, da esperança e da caridade, desdobrando-se nas obras de misericórdia espirituais e corporais.”

Uma voluntária da ACNUR, uma daquelas que o seguiam habitualmente, perguntou:

– Mas, diga-nos, Jesus, por que devemos receber os imigrantes e refugiados? Também entre nós há muito desemprego e crianças que passam fome, falta de moradia digna e de direitos fundamentais?

Jesus estendeu sua mão em direção às tendas montadas pelos que cooperam para abrigar os refugiados, que continuavam desembarcando às centenas.

– “Olhem para eles, são pedaços de nós, irmãos e filhos do Pai, e não têm para onde ir. Ajudem aqueles que estão perto de vocês, mas não se esqueçam daqueles que estão longe. Contemplem essas crianças mortas. Olhem a vida com a esperança que lhes dava estar vendo continuamente o rosto do meu Pai. Eles contam alguma coisa nos escritórios dos donos deste mundo, nas assembleias dos políticos, nas previsões de Wall Street? ‘Estou à porta e bato’, repetirei mil vezes. Quem recebe ou abriga a um destes refugiados é a mim que recebe.”

– No entanto, alguns bispos dizem que devemos ter muito cuidado, porque isto traz riscos. Depois dos recentes atentados de Paris, há quem diga que se escondem entre eles terroristas, membros da jihad.

– “A erva daninha cresce em todas as partes. Mas, deve o dono da colheita cortar a cizânia junto com o trigo? Se vocês estiverem atrás de todos os riscos ao fazerem as suas boas obras, não sairão de casa, ficarão todo o dia vendo televisão e comendo pipoca. Se aquele que recebe uma esmola sua o saqueia, não se arrependa de tê-lo ajudado, pois seu Pai que vê no escondido conhece sua intenção e recompensará seus esforços.”

Aproximou-se então um bombeiro voluntário de Sevilha.

– Pois nos prenderam por ajudar essa gente.

– “Por terem estendido uma mão a estes irmãos que deixaram suas casas e a colocam em risco para fugir de uma guerra injusta para sua liberdade, os nomes de vocês estão escritos no livro da vida.”

Como cada vez mais pessoas se juntavam ao coro dos que queriam escutar Jesus, os discípulos tiraram algumas latas de conserva e um queijo com pão que traziam na geladeira de seu barco de pesca. Nisto se levantou um homem, de cerca de 28 anos, com calça jeans, óculos redondo e cabelos despenteados.

– Mestre, você viu alguma vez os programas da televisão? Você tem telefone celular? Você está no Twitter ou no Facebook? O que pensa do boom tecnológico?

Jesus sorriu. Depois tirou um smartphone do bolso de trás da calça e disse:

– “Na minha primeira vinda eu tinha que subir a uma montanha ou a um telhado, às vezes, afastar-me em um barco para que as multidões pudessem me ouvir. Não tinha outro veículo senão estas duas pernas, que me levaram pelos caminhos da Galileia e da Judeia, onde preguei a Boa Nova. Falava-lhes em parábolas de semeadores, vinhas, figueiras, casamento, pães e remendos. De que lhes falarei agora? Do chip e do disco rígido, do whatsapp e do skype?”

“Direi que esta geração vive colada ao telefone celular, gasta megas e gigas para se comunicar, mas anda sozinha e triste como abutres no deserto. Abarrota os grandes supermercados durante os fins de semana, mas são incapazes de satisfazer seu coração amontoando compras. Nos países do Norte desperdiçam e jogam fora a comida que sobra, ao passo que crianças do Sul perecem de fome. Empanturrados de sexualidade e pornografia barata, esqueceram-se do amor que se esconde em um lírio e de como meu Pai alimenta e veste um pardal.”

– Então – interrompeu o jovem universitário –, não são esses meios formidáveis púlpitos para proclamar a Palavra?

– “Esta geração embotou os ouvidos e cegou seus olhos de tanto ouvir e olhar. Se desde que se levanta liga a televisão e não a desliga até ir dormir; se fica o dia inteiro com os fones de ouvido e não para de teclar no celular, é porque não sabe estar sozinho e é incapaz de escutar o silêncio. Você, quando quiser atingir o melhor eu, fecha a porta e seu Pai que vê o que está escondido lhe falará e o transformará por dentro até encontrar o caminho que leva à vida eterna.”

“O homem planta e rega, constrói belos edifícios, cria máquinas admiráveis, computadores, carros, aviões, naves espaciais, vacinas, robôs e até espaços virtuais, mas não pode acrescentar um palmo à sua estatura, nem prolongar indefinidamente sua vida. E nada do que faz pode ser feito sem o concurso do Pai. Mas, ai daqueles que idolatram todas estas criaturas convertendo-as em absoluto! Transformam-se nos artefatos que adoram, que em pouco tempo saem de moda e vão direto para cemitérios de lixo que contaminam o planeta.”

Jesus tirou seu gorro de marinheiro e o vento da noite agitava seu cabelo. Com tom solene acrescentou:

– “No entanto, todo aquele que encarna a Palavra brilhará com luz própria e iluminará os seus irmãos. Desse modo, não escondam a luz na sombra de seus apartamentos ou escritórios, mas coloquem-na alto sobre as cadeias de comunicação deste mundo, para que todos possam vê-la e escutá-la e louvem o Pai de vocês que está nos céus. Não encontrarão melhor crivo que os próprios destinatários da verdade de vocês, que, ao final, saberão distinguir a moeda verdadeira da falsa, aquele que vive verdadeiramente a Palavra, e aquele que não passa de um sino que retine ou um alto-falante barulhento. Porque a luz brilha também nas trevas, repletas de negatividade, de seus informativos, redes sociais, filmes ou telejornais.”

Felipe, um dos seus discípulos, que era pastor protestante, tomou a palavra. Todos aguçaram sua atenção, à espera do que diria:

– Senhor: você não sabe o quanto nos alegra o fato de que tenha retornado ao mundo. Mas, já vê, estamos confusos: estas vítimas que estamos resgatando do mar são refugiados sírios de religião muçulmana. Aqui há voluntários católicos, ortodoxos, protestantes, judeus e inclusive agnósticos ou gente que duvida de tudo. Passaram-se 21 séculos desde que você veio e é como se não tivesse vindo. Todos acreditam ter a verdade. E olha, há inclusive crentes que se convertem em homens-bomba em nome de Deus. Outros que insistem que a salvação se encontra apenas na Igreja católica. A fé em você, depois de todos esses séculos, em vez de nos unir, não nos colocou em inimizades por conta de atitudes dogmáticas que excluem e de redis religiosos em conflito?

O Mestre refletiu em silêncio e indicou aos seus pescadores para que repartissem os restos de pão e as poucas latas de cavala e berbigões que ainda restavam na geladeira.

– “Passem também a bota de vinho” – sugeriu.

Depois, aproximou-se da multidão e alimentou o fogo com pedaços de madeira de restos de embarcações naufragadas. Seu rosto cobrou tons avermelhados à luz da fogueira, envolto pela coluna de fumaça que se perdia entre nuvens desfiadas com fulgores de lua.

– “Filhos meus, resguardem-se de alguns líderes que converteram a religião em um monte de normas, um catálogo de proibições, um inexpugnável redil de fanáticos. Eles deformaram o rosto do meu Pai, transformando-o no rosto de um ogro, em um mestre de escola que surra os seus alunos, ou em um ditador sem entranhas de qualquer república bananeira que exclui e condena. Carregam fardos insuportáveis sobre as costas de vocês e enchem a boca com palavras bonitas.”

“Eles se fazem chamar de pais, mas só há um Pai, que está nos céus e naqueles que cumprem sua vontade. Destroem as obras de arte ou torturam o conhecimento científico, a investigação e outras criações humanas castrando o pedaço de infinito que Deus colocou no coração do homem. Não. Eu vim para colocar o amor acima da lei e arremetia contra os fariseus porque eles se fecharam na letra para apagar o espírito e conservar seu barraco, que também era seu negócio. Como é possível que muitos continuem a transformar a fé em creches para adultos, fortins de defesa ou se protejam com ritos, roupagens e códigos?”

O pastor protestante levantou-se e insistiu.

– Você não respondeu à minha pergunta. Vivemos em um mundo onde todos expõem suas ideias livremente, enquanto reina a confusão. Diga-nos de uma vez por todas: qual é a religião verdadeira? Defina-se: com quem você está? Com o Vaticano dos católicos, com os ortodoxos, a comunidade anglicana, os protestantes, a Nova Era?

Jesus se levantou e foi em direção ao mar.

– “Diga-me: de quem é o mar? Você viu os documentos sobre a riqueza zoológica submarina? Após tantos séculos de história, o homem não conhece nem a décima parte de sua fauna e flora. Olhem o firmamento: os astrônomos, com seu potentes telescópios, ainda são incapazes de adivinhar os milhares de astros e estrelas que povoam os espaços siderais, e russos e americanos fizeram apenas curtas viagens interplanetárias. E vocês querem encerrar Deus em um matraz para analisá-lo?”

“Somente rompendo os seus ridículos copos de compreensão poderão enchê-los do verdadeiro Deus. A verdade não é algo estático, como um quadro ou um diapositivo. Nem cabe em um só livro. A verdade é como um manancial que está escrito no coração do homem e que vai crescendo até converter-se em rio e em mar. O que vocês querem? Encapsular a realidade em uma garrafa de Coca-cola e vendê-la por um dólar ou um euro? Eu sou o caminho, a verdade e a vida.”

“Mas eu nunca disse que me seguir equivaleria a cumprir um catálogo de prescrições, como contentar-se em ir à missa, comungar aos domingos ou colocar a cruzinha na declaração de renda. Falei de uma água que salta para a vida eterna, mas não de tanques exclusivos para alguns poucos privilegiados que luzem as cores de uma camiseta. Sabem com o que se parecem? A equipes de futebol enfrentadas, a míopes partidos políticos para quem não interessa o bem da população, mas a vitória de suas siglas e o auto-enriquecimento.”

Então chamou um menino sírio tremia de frio sob uma manta. Sentou-se ao seu lado e esfregou-lhe os ombros para aquecê-lo.

– “Qual é o seu nome?” – perguntou-lhe.

– Sibel – respondeu.

– “Em verdade lhes digo, minha verdade chama-se Sibel, e qualquer um destes pequeninos que mendigam nas ruas de Cabul ou do Rio de Janeiro. A verdade é receber Sibel como a mim mesmo e a quantos sofrem marginalização e fome, são maltratados pela injustiça de um mundo dominado pelo pensamento único de cerca de 20 bilionários, suas multinacionais e alguns políticos. Os meninos-soldados, as mulheres espancadas e maltratadas pelo machismo, as criaturas destroçadas pela pederastia e as adolescentes exploradas pelo turismo sexual. Dei a minha vida por eles e a darei novamente diante de um pelotão de fuzilamento ou metralhado por seus sicários em qualquer rodovia, se for preciso.”

Uma mulher muçulmana com véu levantou-se trêmula:

– E aqueles que nos fizeram fugir das nossas aldeias? E aqueles que nos matam em nome de Alá? Você disse para amar os nossos inimigos? Maomé nos convocou para a jihad.

– “Em verdade vos digo que aqueles que com ferro ou tiros matam, com ferro e rajadas de metralhadoras serão mortos. Estão no erro e pagarão com a mesma moeda. Mas, asseguro a vocês que mesmo os terroristas e assassinos são filhos do Pai. Também dei meu sangue por eles. Perdoei-os na árvore da cruz. Também vocês devem perdoá-los para que se convertam e vivam. Não há outra jihad que lutar para crescer interiormente e não ser como eles, que fazer um mundo mais justo no qual caibam os empobrecidos filhos do Islã. Amem-se uns aos outros como eu amei vocês. Porque aquele que ama os seus amigos, que mérito tem? Não é tão difícil aproximar-se da minha verdade. Se não aprenderem isto, sobram todas as disquisições teológicas e as cátedras dos sábios.”

Um idoso de barba branca apresentou-se como padre, capelão de um grupo de voluntários, e dirigiu-se a Jesus emocionado:

– Senhor, meu nome é Manolo. Eu dediquei a você toda a minha vida, a proclamar o seu Evangelho. Durante muitos anos fui pároco em um povoado e depois em uma grande cidade. Esforcei-me por sua causa. Mas meu grande inimigo foi a rotina. Preparava com muito estudo e dedicação as minhas homilias; levava com grande cuidado a Cáritas Paroquial, organizava a catequese, os grupos de crisma e os movimentos de ação católica. Tentava orientar com misericórdia no confessionário e despertar aqueles que acodem aos batizados, casamentos e funerais.

– Mas, sabe, Senhor? – prosseguiu Manolo –, consegui pastorear apenas algumas ovelhas do redil, católicos de toda a vida. Sentia que minha igreja não passava de algo mais que um escritório de sacramentos e um refúgio de beatas. Não conseguia muito mais. A maioria dos habitantes do meu bairro não ia à Igreja. Estavam preocupados apenas em conservar o seu trabalho, em ir às compras e fazer excursões nos finais de semana. O que aconteceu conosco? Por que o seu Evangelho não interessa? Por que tudo parece cinzento, e já quase ninguém acredita que a felicidade se encontra em você?

Jesus se levantou e, aproximando-se, colocou suas mãos sobre os ombros do padre idoso.

– “Obrigado, Manolo. Talvez você não soubesse, talvez às noites tinha dúvidas de fé ou se sentia inútil e terrivelmente sozinho. Mas eu estava ao seu lado. Mais, quando partia o pão e a palavra, era eu mesmo que o fazia por seu intermédio. Eu, melhor do que ninguém, sei que sua semente caiu muitas vezes em boa terra e deu seu fruto, embora não soubesse disso.”

“É verdade também que vocês vivem agora em um mundo muito secularizado, que valoriza apenas a matéria, o que é palpável, e não é capaz de apreciar o que tantas vezes repeti para vocês: que o reino é como um grão de mostarda ou de trigo, ou como uma pitada de fermento. O marketing e as estatísticas entraram na minha Igreja como um demônio revoltoso que quantifica tudo em números, edifícios, fundações e resultados. Eu amo o pequeno, a moeda da viúva, uma só ovelha perdida, um frasco de perfume derramado com amor, uma oração escondida na penumbra do templo. Chamei aos demais de servos, a você, Manolo, chamei de amigo.”

Manolo enxugou com o reverso da mão uma lágrima que lhe corria por sua face. Quando se repôs, replicou:

– No entanto, Mestre, devo confessar-lhe algo. De mil maneiras preguei suas bem-aventuranças, mas depois de tantos anos de vida pastoral eu mesmo não sei o que é a felicidade. Mais, vejo que todo o mundo a busca de mil maneiras e não a encontra.

– “Quantas vezes devo repetir que falta fé a vocês? Pedi e recebereis, batei e as portas se abrirão. O mundo de hoje se afunda porque, como meu apóstolo Pedro, não se atreve a caminhar sobre as águas. Pensa que me seguir é apertar os punhos e cumprir certas práticas para tranquilizar sua consciência. Disse naquela vez e repito agora: aquele que não se negar a si mesmo, tomar sua cruz e me seguir não é digno de mim. Esta frase horroriza uma sociedade centrada no bem-estar do homem e na “’autorrealização’.”

“E poucos a entenderam bem. Alguns dos seus pensadores e filósofos escreveram que eu preguei a autodestruição do homem. Nada mais distante de mim. Confundem seu eu mesquinho, fixado em quatro coisas desta vida, como o êxito, o dinheiro, o poder, com seu verdadeiro eu mais profundo. Centrar-se em conquistas mundanas nos tira a paz, que é a felicidade possível do homem. Quase sempre vocês falam da minha cruz e muito pouco da minha ressurreição. Ressuscitar é dar-se conta de que ‘o Reino de Deus está dentro de vocês’, de que já têm tudo o que conforta, como disse o meu apóstolo Paulo.”

“Querido Manolo, não busque resultados, não se deixe contagiar pelos balanços empresariais e seu medo do déficit. Seja você mesmo, aquele que saiu bem feito das mãos de Deus, entra no seu interior e ressuscitará comigo, embora enquanto viaja e se encontra em vaso de barro, continuará sofrendo alguns medos, sombras e incertezas, pois não posso poupá-los da cruz. Mas regozijem-se, porque preparei um lugar para vocês, e aquele que crê em mim terá a vida eterna.”

Sem se dar conta, todos os presentes notaram que a noite já tinha passado e um rosáceo resplendor despontava no horizonte anunciando o amanhecer. Das barracas saíram os primeiros responsáveis de algumas ONGs para organizar as comitivas de refugiados, que iniciavam sua caminhada rumo aos Bálcãs, Alemanha, Suécia e outros países europeus com seus exíguos apetrechos. Fazia frio, mas aqueles que se alimentaram da Palavra, sentiam uma brasa em seus corações e uma renascida esperança brilhava como uma leve centelha em suas pupilas.

Alguns pescadores e outros voluntários voltaram ao mar para resgatar novos refugiados. Jesus se pôs a caminho rodeado de crianças e seus pais, que acabavam de ouvir na rádio tristes notícias, como as que em sua marcha se encontrariam com novas barreiras de arame farpado, soldados, trens abarrotados e fronteiras fechadas. Ao longe despontavam silhuetas de múltiplos frágeis botes em sua incessante luta para desembarcar e salvar suas vidas. E era de dia.



Fonte: Ihu

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