Todos os anos, centenas de
mulheres sofrem violência de todos os tipos, dentro ou fora de casa, no Brasil.
Os casos mais extremos levam o país a ocupar a quinta posição no ranking
mundial de assassinatos de mulheres, segundo demonstra o Mapa da Violência
2015: Homicídio de mulheres no Brasil. Apesar de ser uma realidade que vem
desde a Antiguidade e atinge vários países, é curioso perceber que muitas
dessas mulheres são religiosas e vítimas de parceiros igualmente religiosos.
Neste sentido, como um país onde
cerca de 80% da população é cristã pode praticar tanta violência contra suas
mulheres? Para responder a esta e outras perguntas, a Adital conversou com
Ester Lisboa, coordenadora da Rede Religiosa de Proteção à Mulher Vítima de
Violência e assessora da Koinonia – Presença Ecumênica e Serviço. Assistente
social por formação, Ester afirma que a maioria das mulheres atendidas por
situações de humilhação ou violência física é evangélica, "vitimas de seus
parceiros, que ocupavam cargos de liderança em suas igrejas”, o que contradiz
ao princípio da misericórdia e do amor pregado pelas religiões. "Então,
somos um país religioso, mas absurdamente machista, impiedoso e conservador”,
analisa.
Ester Lisboa tem uma larga experiência
com mulheres vítimas de violência em lares religiosos.
Segundo ela, parte do problema é
provocado pelo conservadorismo de algumas denominações, que ainda seguem o
conceito de que a mulher deve apenas obedecer ao marido e não se expressar. E,
apesar de ter um caráter moralista, a religião, muitas vezes, não regula a
moral, "muito pelo contrario, legitima e silencia os atos de violência”.
No entanto, embora ainda se enfrentem muitos obstáculos, as mulheres vêm
conquistando espaços dentro das comunidades religiosas, nas últimas décadas.
"O mundo gira, comportamentos surgem, novas regras se impõem. O novo é
inevitável, as mudanças virão”, prevê. Confira a entrevista completa, a seguir:
Adital: O Brasil é um país onde
mais de 80% da população se declara cristã. Entretanto, amargamos a
desagradável posição de ser o quinto país no ranking mundial de homicídios de
mulheres (Segundo dados do Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no
Brasil). Esta não é uma constatação contraditória? A religiosidade brasileira,
ao contrário de contribuir para o empoderamento das mulheres, estaria servindo
para justificar ou mesmo encobrir as agressões sofridas?
Ester Lisboa: Por mais incrível
que possa parecer, a religiosidade brasileira legitima e silencia as situações
de violência sofrida pelas mulheres. É intrigante ver como homens de Deus, como
São Paulo, por exemplo, dizia: "Que as mulheres estejam caladas nas
igrejas, porque não lhes é permitido falar. Se quiserem ser instruídas sobre
algum ponto, interroguem em casa os seus maridos”. Esse comportamento tão
longínquo transparece nos comportamentos até os dias de hoje. Quando coordenei
o Centro de Referência da Mulher, em São Paulo, notei que a maioria das
atendidas por situações de humilhação e violência física eram mulheres
evangélicas, vítimas de seus parceiros, que ocupavam cargos de liderança em
suas igrejas. A principal pergunta era: Como um homem que prega o amor pela
família e fala de misericórdia pode ser rude dentro do seu lar? A resposta,
talvez, seja: aprendeu assim, a vida vem lhe mostrando que a mulher é um ser
inferior, como já dizia Paulo. Então, somos um país religioso, mas absurdamente
machista, impiedoso e conservador.
Adital: Seguindo o raciocínio
anterior, apesar das revoluções vividas durante o século XX, como a
independência feminina e sexual, por que os tabus religiosos ainda são tão
fortes na sociedade? Esta é uma realidade em evolução ou o fundamentalismo
religioso, adotado por alguns líderes cristãos, vem alterando o rumo dessas
mudanças?
Ester Lisboa: Uma das funções da
religião é regular a moral. Decodificar religiosidade como santidade e o que
for contrário disto é pecado, é uma das maiores crueldades das religiões. O
fundamentalismo gosta de lembrar que, nas sagradas escrituras, está escrito que
o salário do pecado é a morte, mas não diz que o amor é mais forte do que a
morte. Portanto, os discursos fundamentalistas estão fadados a perderem a
credibilidade porque a religião não regula a moral, pelo contrário, legitima e
silencia os atos de violência.
Adital: Como coordenadora da Rede
Religiosa de Proteção à Mulher Vítima de Violência, através de rodas de
conversa com mulheres de diferentes religiões e idades, vocês procuram conhecer
e orientar sobre casos de abusos e/ou violência. Quais histórias você observa
que mais se repetem? Você poderia exemplificar com um caso que lhe chamou a
atenção?
Ester Lisboa: Temos realizado
rodas de conversa em várias comunidades religiosas, cristãs e não cristãs, e,
infelizmente, em todas, ouvimos pelo menos uma história de violência sofrida
por mulheres engajadas e companheiras de líderes religiosos. Lembro do caso de
uma senhora, já com seus 72 anos, casada há 55 anos com um homem truculento,
pastor e líder renomado na denominação, com três filhos. Essa senhora, cansada
de ser maltratada psicológica, física e patrimonialmente, começou a desenvolver
doenças psicossomáticas e resolveu se separar. Qual a surpresa: o marido não
permitiu e os três filhos também não a apoiam. Ou seja, a violência doméstica
já ultrapassara as gerações, os filhos a violentaram emocionalmente. Essa
senhora, hoje, está internada, com quadro clínico grave. Talvez, tenha um culto
em sua memória quando ela morrer.
Adital: Ainda em relação ao
projeto citado, como se dá o processo de retorno dessas mulheres às suas casas
e companheiros? Há uma modificação, sob o ponto de vista religioso, da
percepção sobre a violência sofrida? Ou seja, como as mulheres reagem após
participarem das conversas?
Ester Lisboa: Esta é a nossa
grande preocupação. Algumas comunidades prestam assistência a essas mulheres,
criando ações específicas de acolhimento e orientação. Geralmente, após as
rodas de conversa, algumas vêm me procurar e a nossa postura é ouvir tudo que
têm para contar, e encaminhamos para a rede de enfrentamento do município.
Algumas mulheres reagem positivamente e, após a superação da violência, se
dedicam a ajudar outras mulheres. Algumas pastoras têm assumido o tema como
ministério profético e de proclamação.
Adital: As grandes religiões do
mundo ocidental são, predominantemente, patriarcais, nas quais as mulheres
sequer podem ser sacerdotisas. Esse ‘poderio’ masculino na hierarquia religiosa
parece referir-se a uma interpretação de que Jesus teria escolhido como
discípulos apenas homens, e teria elegido um homem, Pedro, como primeiro Pai
(Papa) da Igreja Cristã. O que a Teologia e as demais Ciências Humanas têm a
dizer, hoje, sobre quem é a mulher e qual seu papel na Igreja?
Ester Lisboa: Faço parte das
militantes feministas ecumênicas, das antigas. (risos) Atuei na primeira década
ecumênica das mulheres, promovida pelo Conselho Mundial de Igrejas, e continuei
na segunda. Atuo na Pastoral de Mulheres e Justiça de Gênero do Clai – Conselho
Latino-Americano de Igrejas, desde 1999. No início, foi como abrir uma trilha
dentro das normas e dogmas das igrejas. Nos últimos 30 anos, as mulheres vêm
assumindo cargos de poder e colaborando nas decisões de algumas comunidades
religiosas. Não sou pastora, não sou teóloga, mas sou uma mulher indignada com
as injustiças sociais, e uma delas sempre foi em relação ao papel da mulher na
sociedade e nas igrejas. As comunidades religiosas cristãs e não cristãs terão
que aprender a respeitarem todas as pessoas e aqui acrescento as mulheres
transexuais, travestis, lésbicas e cisgêneras.
Adital: Na Igreja Católica, por
exemplo, o papado de Francisco vem tentando abrir algumas portas, como aos
homossexuais e a uma participação mais central das mulheres. Entretanto, a
resistência encontrada por Francisco demonstra que uma boa parte da Igreja não
está disposta a mudanças. Nesse início de século XXI, como está sendo a busca
das mulheres por mais participação nas religiões do mundo? E por que há tanta
resistência?
Ester Lisboa: Sempre entendi
resistência como o ato de não abrir mão dos meus conceitos. Não repensar, não
permitir que alguém, ao pensar diferente, se sobressaia. Entendo tudo isso como
uma grande ilusão. No passado, os filhos jamais viam os pais nus, hoje, tomam
banho juntos. Antigamente, a família expulsava e negava a existência de um
filho efeminado, hoje, começam a entender as diferentes identidades sexuais. No
passado, um gay não podia frequentar uma comunidade religiosa cristã, hoje,
temos igrejas inclusivas, dirigidas por homens e mulheres trans. Ou seja,
querendo ou não, as relações mudam. As crianças começam a enxergar o mundo de
forma diferente. O mundo gira, novos conceitos e comportamentos surgem, novas
regras se impõem, novos modelos de família se configuram. O novo é inevitável,
as mudanças virão, com certeza. Graças a Deus!
Adital: Para finalizar, gostaria
que você deixasse uma mensagem de incentivo às mulheres que constroem a
Comunidade Cristã leiga no mundo, a chamada "Igreja de base”, enfatizando
quais atitudes, hoje, contribuirão para uma Igreja mais aberta no amanhã.
Ester Lisboa: Que
responsabilidade! Aprendi, nesses meus 53 anos de vida, que a convivência com o
outro e a outra são as maiores riquezas. Tenho contribuído na execução de um
programa voltado a atender a 200 mulheres e homens trans. Que aprendizado diário!
Que histórias de vida exuberantes! Que fé e esperança!Então, minha mensagem é:
se permitam viverem diferentes experiências, se permitam conviverem com todas
as pessoas, por mais estranhas que possam parecer, você sempre achará a chama
Divina dentro delas, e assim a sua chama Divina nunca se apagará.
Fonte: (Tatiana Félix) Adital
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