A Bancada Ruralista passou a atuar para afrouxar o conceito de trabalho
escravo. Com a mudança no conceito, milhares de pessoas que, hoje, poderiam ser
chamadas de escravos modernos simplesmente vão se tornar invisíveis. Vamos
resolver o problema chamando-o por outro nome.
A Comissão de Agricultura,
Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados aprovou
uma proposta que altera o conceito de trabalho escravo contemporâneo,
facilitando a vida de quem se utiliza desse crime. O projeto de lei 3842/12, do
deputado federal Moreira Mendes (PSD-RO) exclui condições degradantes de
trabalho e jornada exaustiva do artigo 149 do Código Penal, que trata do tema.
O que isso significa? E em que
contexto se insere?
Movimentos e organizações
sociais, além de assessorias parlamentares, que acompanham as mudanças
legislativas com relação ao combate ao trabalho escravo já esperavam a
aprovação do projeto nessa comissão, que é dominada pela Bancada Ruralista,
desde o final do ano passado. Segurou-se o quanto foi possível, mas,
finalmente, passou.
O projeto ainda terá que ser
discutido nas comissões de Trabalho, de Administração e Serviço Público e de
Constituição, Justiça e Cidadania antes de ir a plenário. Ou seja, vai demorar
ainda.
Mas esse é mais um indício de que
a atual legislatura do Congresso Nacional serve mais aos patrões do que aos
trabalhadores.
Não é, contudo, o único
tramitando com o objetivo de reduzir o conceito de trabalho escravo. E nem o
único risco. O próprio projeto que amplia a terceirização legal é um duro golpe
no processo de erradicação desse crime. Se a mudança no conceito e a
terceirização passarem, podemos dar adeus à efetividade do sistema criado para
combater a escravidão no Brasil.
Trabalhador resgatado em oficina
de costura em São Paulo
Redução do conceito - Há, pelo
menos, três projetos semelhantes tramitando no Congresso Nacional para reduzir
o conceito de trabalho escravo. Um deles é o que foi aprovado na Comissão de
Agricultura e Pecuária, citado acima. Os outros são o projeto de atualização do
Código Penal, por sugestão dos senadores Blairo Maggi (PR-MT) e Luiz Henrique
da Silveira (PMDB-SC), e o projeto que regulamenta a emenda 81 (antiga PEC do
Trabalho Escravo, que prevê o confisco de propriedades em que trabalho escravo
for encontrado e sua destinação à reforma agrária ou ao uso habitacional
urbano), por sugestão do senador Romero Jucá (PMDB-RR).
Todos querem retirar condições
degradantes e jornada exaustiva do conceito.
Hoje, são quatro elementos que
podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado, servidão por
dívida, condições degradantes (trabalho sem dignidade alguma, que põe em risco
a saúde e a vida do trabalhador) e jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao
completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em
risco sua vida).
A bancada ruralista diz que é
difícil conceituar o que sejam esses dois últimos elementos, o que gera
“insegurança jurídica''. Querem que as condições em que se encontram os
trabalhadores, por mais indignas que sejam, não importem para a definição de
trabalho escravo, mas apenas se ele está em cárcere ou não.
Varas, tribunais e cortes
superiores utilizam a atual definição desse artigo. Em decisões da maioria dos
ministros do Supremo Tribunal Federal, fica clara a compreensão de que eles
entendem o que são esses elementos – tanto que já receberam denúncias de
deputados e senadores por esse crime. A Organização Internacional do Trabalho
apoia a aplicação desse conceito.
Contudo, vira e mexe, há
políticos que afirmam que fiscais do trabalho consideram como escravidão a
pequena distância entre beliches, a espessura de colchões, a falta de copos
descartáveis.
O que não é verdade. Afinal de
contas, qualquer fiscalização do governo é obrigada a aplicar multas por todos
os problemas encontrados. Mas não são essas as autuações que configuram
trabalho escravo.
Quando ouço esse bla-bla-blá,
faço uma rápida pesquisa junto ao Ministério do Trabalho e Emprego (o que está
disponível a qualquer cidadão) e descubro dezenas de outras autuações que o
empregador em questão recebeu e que mostram o total desrespeito que eles
tiveram com seres humanos: trabalhadores que bebiam a mesma água do gado, que
eram obrigados a caçar no mato para comer carne, que ficavam em casebres de
palha em meio às tempestades amazônicas, que pegavam doenças ou perdiam partes
do corpo no serviço e eram largados sós, entre tantas outras histórias que acompanhei
em mais de uma dezenas de operações de libertação de escravos que participei no
campo desde 2001.
O fato é que com o confisco de
propriedades tendo sido aprovado no ano passado após 19 anos de trâmite, a
Bancada Ruralista passou a atuar para afrouxar o conceito. É aquela coisa:
concordo que se puna assassinato…desde que sejam os cometidos entre 12h e 19h,
com arma branca e vestido de Bozo.
Ou seja, praticamente condenar só
quem usa pelourinho, chicote e grilhões, sendo que os tempos mudaram, a escravidão
é outra e os mecanismos modernos de escravização adotados são sutis. Promovem,
dessa forma, a “insegurança jurídica'' no campo e na cidade, criando caos junto
aos produtores que seguem a lei e sabem bem o que fazer e o que não fazer.
Com a mudança no conceito,
milhares de pessoas que, hoje, poderiam ser chamadas de escravos modernos
simplesmente vão se tornar invisíveis. Vamos resolver o problema chamando-o por
outro nome.
Fiscal toma depoimento de
resgatados do trabalho escravo no Pará (Foto: Leonardo Sakamoto)
Falta de transparência – Em meio
ao plantão do recesso do final do ano passado, o ministro Ricardo Lewandowski
garantiu uma liminar à Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias
(Abrainc) suspendendo a “lista suja'' do trabalho escravo. A entidade
questionou a constitucionalidade do cadastro, afirmando, entre outros
argumentos, que ele deveria ser organizado por uma lei específica e não uma
portaria interministerial, como é hoje.
Os nomes permaneciam na “lista
suja'' por, pelo menos, dois anos, período durante o qual o empregador deveria
fazer as correções necessárias para que o problema não voltasse a acontecer e
quitasse as pendências com o poder público. Com a suspensão, uma atualização da
relação que estava para ser divulgada no dia 30 de dezembro foi bloqueada.
Após a suspensão do cadastro, o
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Caixa
Econômica Federal, que usavam o cadastro antes de fechar novos negócios,
deixaram de checar casos de trabalho escravo.
Outros bancos privados e empresas
demonstraram sua preocupação ao Ministério do Trabalho e Emprego quanto à
necessidade de ter a “lista suja'' de volta para garantir análise de crédito e
para possibilitar a formalização de novos negócios sem riscos.
Informação livre é fundamental
para que as empresas e outras instituições desenvolvam suas políticas de
gerenciamento de riscos e de responsabilidade social corporativa. A portaria
que regulamentava a suspensa “lista suja'' não obrigava o setor empresarial a
tomar qualquer ação, apenas garantia transparência. Muito menos a relação aqui
anexa. São apenas fontes de informação a respeito de fiscalizações do poder
público.
Transparência é fundamental para
que o mercado funcione a contento. Se uma empresa não informa seus passivos
trabalhistas, sociais e ambientais, sonega informação relevante que pode ser
ponderada por um investidor, um financiador ou um parceiro comercial na hora de
fazer negócios.
Desde 2003, esse cadastro público
que reúne empregadores flagrados com esse crime pelo Ministério do Trabalho e
Emprego tem sido uma das maiores ferramentas para o combate à escravidão. Ele
garante ao mercado transparência e informações para que empresas nacionais e
internacionais possam gerenciar os riscos de seu negócio. E, consequentemente,
proteger o trabalhador.
E ao contrário dos que o
pensamento limitado acredita, a “lista suja'' é uma forma de proteção à nossa
economia. Sem ela, governos estrangeiros interessados em erguer barreiras
comerciais não tarifárias sob pretensas justificativas sociais vão ter sucesso
em seu intento. No passado, vendas brasileiras já foram salvas pela “lista
suja'', quando provou-se que as mercadorias não eram feitas com esse tipo de
mão de obra. Sem ela, cuidem-se exportadores.
No dia 31 de março, o governo
federal anunciou a edição de uma nova portaria interministerial, recriando o
cadastro de empregadores flagrados com mão de obra análoga à de escravo,
utilizando a Lei de Acesso à Informação como amparo legal. Em março, este blog
conseguiu e publicou aqui uma cópia do que seria a “lista suja'' caso ela não
estivesse suspensa usando um pedido via Lei de Acesso à Informação, mostrando
que esse era um caminho possível para que os dados fossem tornados públicos.
O retorno da lista suja foi
celebrado por quem acompanhou a cerimônia pública de lançamento da nova
portaria, que envolve o Ministério do Trabalho Emprego e a Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República.
Contudo, ela não ainda não foi
divulgada, apesar da promessa que isso ocorreria na semana seguinte à nova
portaria. Apesar deste blog ter apurado que uma nova lista já estar pronta para
divulgação, o gabinete do ministro do Trabalho e Emprego Manoel Dias informou
que não há prazo para que isso aconteça.
O golpe da terceirização – O
projeto que amplia a terceirização e foi aprovado pela Câmara dos Deputados,
caso aprovado pelo Senado e sancionado por Dilma Rousseff, será um gigantesco
revés para o combate ao trabalho escravo.
Casos famosos de flagrantes de
trabalho escravo surgiram por problemas em terceirizações ilegais em que o
governo federal e o Ministério Público do Trabalho puderam responsabilizar
grandes empresas pela exploração. Consideraram que havia responsabilidade
solidária por se constatar terceirização de atividade-fim.
A aprovação dessa proposta ajuda
muito empresário picareta que monta uma empresa de fachada para o seu
contratador de mão de obra empregar trabalhadores rurais safristas, por
exemplos. Os chamados “coopergatos'' (cooperativas de fachada montadas para
burlar impostos) devem se multiplicar e o nível de proteção do trabalhador
cair.
Dessa forma, ele se livra dos
direitos trabalhistas, que também nunca serão pagos pelo “gato”, o contratador
– boa parte das vezes tão pobre quanto os peões. Ele vai dizer que fiscaliza a
situação da empresa do gato, sabendo que ela não consegue cumprir o
recolhimento de impostos. Daí, é só “sugerir'' ao trabalhador que seria uma
péssima ideia ele reclamar – isso quando ele tem consciência de seus direitos.
Assim, o produtor rural consegue
melhorar sua competitividade e concorrer aqui dentro e lá fora com boa margem
de lucro. Que em nosso país é mais sagrado que todos os santos e orixás.
Nas cidades, isso facilita e
muito a manutenção de oficinas de costura que contratam trabalhadores de forma
precária ou os submetem a condições análogas às de escravo, muitos dos quais
imigrantes latino-americanos pobres que vêm produzir para os cidadãos
brasileiros. Oficinas que, não raro, surgem apenas para que a responsabilidade
dos custos trabalhistas saiam das costas de confecções maiores e de grandes
magazines. Você não vê o escravo em sua roupa, mas ele está lá.
Trabalhador libertado mostra água
que bebia, a mão machucada por falta de luvas na aplicação de pesticida e o
dedo que perdeu na produção (arquivo pessoal)
Responsabilidade do Poder Público
– A política brasileira de combate ao trabalho escravo completa duas décadas em
maio deste ano. Criada por Fernando Henrique (que teve a coragem de reconhecer
diante das Nações Unidas a persistência de formas contemporâneas de escravidão
em nosso território), elevada à condição de exemplo internacional por Lula (que
ampliou os mecanismos de combate a esse crime) e mantida (até agora) por Dilma,
ela tem sido uma ação de Estado e não de governo – o que é raro no Brasil. Há
pessoas competentes em partidos como PT e PSDB que dedicam ao tema.
Quase 50 mil pessoas foram
resgatadas desde 1995. Milhões de reais em condenações e acordos trabalhistas
foram pagos. Centenas de empresas aderiram ao Pacto Nacional pela Erradicação
do Trabalho Escravo, comprometendo-se a cortar negócios com que utiliza esse
tipo de crime. Temos um Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo,
além de estados e municípios engajados em planos regionais. O problema deixou
de ser visto apenas como algo do interior da Amazônia e ações de resgate
começarem a ser realizadas em oficinas de costura e canteiros de obra no centro
de grandes cidades. Programas de prevenção passaram a ser implementados
envolvendo de jovens que ainda não estão em idade laboral até adultos
resgatados.
Libertações de trabalhadores
continuam acontecendo, ações civis públicas e coletivas, bem como ações
criminais também.
O Brasil é visto como referência
nos fóruns internacionais e no sistema das Nações Unidas por conta disso.
Mas tudo isso pode perder a
efetividade. E, ainda por cima, com a anuência de setores do governo.
Entidades patronais vêm
intensificando a resistência aos avanços sociais em diversos fóruns. No âmbito
da Organização Internacional do Trabalho, vêm se tornando cada vez mais
frequentes as ameaças de boicote aos debates tripartites sobre temas tão
diversos quanto a responsabilidade das empresas sobre as condições de trabalho
em cadeias produtivas globais, o direito fundamental dos trabalhadores à greve
e a definição de trabalho forçado e o alcance dos dispositivos do Protocolo
Adicional à Convenção 29, recentemente publicado, que trata do tema. Tentam, não
raro, interditar o debate democrático e a reafirmação dos direitos humanos,
caminhos para garantir um modelo sustentável. Sem isso, a tão proclamada paz
social que consta da Constituição da maioria dos Estados modernos corre o risco
de se tornar letra morta.
Nos corredores do Palácio do
Planalto e da Esplanada dos Ministérios, por exemplo, há quem defenda
reservadamente que melhor seria deixar o conceito de trabalho escravo
retroceder, a “lista suja'' ser derrubada de vez e a terceirização de todas as
atividades de uma empresa passar porque a situação atual cria problemas para
setores econômicos. Para os bem de empresas envolvidas nas execuções de
políticas públicas e para os doadores de campanha.
Isso derruba por terra uma
desculpa que tem sido muito ouvida em Brasília: “ah, mas com esse Congresso, é
difícil''. O problema, ao contrário do que defendem muitos petistas de
carteirinha, não está só no parlamento, mas sim no que a chefia do Poder
Executivo está fazendo ou deixando de fazer para garantir que o Brasil continue
referência no combate a esse crime.
Dilma assinou a Carta Compromisso
contra o Trabalho Escravo, documento da Comissão Nacional para a Erradicação do
Trabalho Escravo, prometendo manter e aprimorar essa política. Mas se não atuar
mais firme na articulação no Congresso Nacional (estou falando de, ao menos,
tentar com vigor) e frear membros de sua equipe que fazem o jogo contrário em
seu próprio quintal, vai poder acrescentar mais um item na sua lista de
estelionato eleitoral.
Blog de Sakamoto
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