Tenho pensado muito sobre o
significado de ser passista. Por algum motivo extraordinário as pessoas ficam
extremamente surpresas quando descobrem que sou passista de escola de samba.
Mas apenas as pessoas que me conhecem nos espaços acadêmicos, de trabalho ou de
militância, ou seja, as pessoas que me vêem expressar minhas opiniões e
posicionamentos políticos. Para essas pessoas, por mais que elas não digam, ser
passista contraria todos esses posicionamentos. Para essas pessoas ser passista
é muito pouco ou é inapropriado para quem “tem consciência”.
por Monique Britto Eleotério
Ser
passista no pensamento dessas pessoas é corresponder a um estereótipo
sexualizado da mulher negra, é incentivar o pensamento sexual dos turistas
estrangeiros, é se exibir e se vender. E isso é um grande e grave equívoco.
As passistas surgem dentro da
cultura das escolas de samba como o reconhecimento das mulheres da comunidade
que melhor representam a dança do samba. Essas mulheres têm basicamente a
função de defender o pavilhão de sua escola e conquistar a simpatia e admiração
do público. Representar o pavilhão de uma escola significa representar toda uma
comunidade, uma região e o trabalho de muitas, mas muitas pessoas. E fazemos
isso através da nossa dança e dos nossos corpos. É preciso lembrar que no
Brasil as concepções que temos de corpo e vestuário são embasadas por valores
predominantemente europeus. Ou seja, nossos hábitos e costumes foram sim
resultado de “mistura” da cultura de negros, indígenas e brancos, mas foram os
valores brancos que moralizaram essa construção, por uma questão óbvia de
dominação. Então, se hoje, mesmo em um calor de 40° usamos calça comprida e
blusa de manga para estarmos “sociais” é pela moralidade européia que nos é
imposta. Se hoje temos danças como o balé consideradas como clássicas e o funk
e seus movimentos discriminados, agradeçamos a essa moralidade que hierarquiza
como clássico e culto o que vem da cultura branca e como inapropriado e
inferior o que vem da cultura negra.
A criminalização e a
inferiorização da cultura negra sempre estiveram presentes: o próprio samba que
hoje é exaltado, já foi marginalizado e criminalizado. A questão é que a
resistência das manifestações culturais populares faz com a classe dominante,
vendo que não pode destruí-las, passe a querer se apropriar delas. E isso
aconteceu com o samba e com seus símbolos. E quando há essa apropriação outra
estratégia também usada é o esvaziamento dos significados dos elementos das
culturas. Ou seja, tenta-se distorcer as reais representações que aqueles
elementos têm para aquela comunidade, buscando dessa forma tirar seu potencial
revolucionário.
As passistas de escola de samba
têm um potencial revolucionário: contra o racismo e contra o machismo também.
Ser passista é o ponto alto na autoestima de muitas meninas e mulheres negras,
muitas vezes o único. É o momento em que nós mulheres negras assumimos nosso
posto (de direito) de referência e orgulho para nossa comunidade. É o momento
em que nossas meninas mais novas nos olham e se espelham para construir sua
feminilidade. É o momento em que nossos homens reconhecem a nossa beleza. Ser
passista é um espaço de resistência da mulher negra.
Entendo e concordo quando Lélia
Gonzalez diz que os desfiles das escolas de samba são um momento de atualização
do mito da democracia racial, pois viramos princesas durante quatro dias e
depois voltamos ao estereótipo de doméstica. Eles funcionariam como uma válvula
de escape das tensões sociais. Mas sabemos que não fomos nós negras/os, nossos
hábitos e tradições que criaram esse mito. O racismo através do mito da
democracia racial se apropria de determinados aspectos culturais para dizer que
há uma igualdade. Além disso, o que é preciso entender também é que não se é
passista durante quatro dias e nem de dezembro a fevereiro. Quem é passista, é
passista 365 dias do ano. Ser passista não é uma simples atividade que se
desenvolve, é uma realidade de vida. O corpo, a mente e os sentimentos de uma
passista são peculiares de uma passista. A dedicação, os relacionamentos, o
trabalho, o estudo, tudo da nossa vida em algum momento e de alguma forma está
ligado a essa arte que carregamos. E é orgulho dessa arte que muitas vezes nos
sustenta e fortalece para enfrentarmos as violências de uma sociedade desigual.
É o orgulho dessa arte que faz com que por mais que tentem fazer com que
olhemos para o chão e que sejamos subalternos, continuemos olhando para cima,
enfrentando preconceitos e cultivando a nossa realeza interior.
É muito difícil uma passista
viver de seu samba financeiramente. Mas mesmo que em escala pequena ser
passista promove mudanças nas vidas das meninas e mulheres negras. Uma simples
apresentação pode fazer com que uma menina negra de comunidade circule por
novos espaços da cidade e sabemos que vencer essas limitações que a
precariedade de transporte e de segurança nos impõem é um passo muitíssimo
importante. Pertencer a um grupo também promove grandes mudanças, visto que
comprovadamente na adolescência mulheres negras sofrem muito com a dificuldade
de inserção e aceitação nos grupos sociais e têm mais problemas de autoestima.
Participar de um ambiente seguro, coletivo e de troca de saberes numa
experiência prazerosa é também uma oportunidade diferenciada para jovens e
mulheres negras que, sabemos bem, em geral não tem acesso à grande maioria das
atividades culturais da cidade. Ou seja, ser passista traz oportunidades e
vivências fortalecedoras para a mulher negra.
Sobre a sensualidade, bom,
precisamos entender que uma das características dessa sociedade patriarcal é
punir e julgar as mulheres que dispõem de seus corpos e de suas belezas como
querem. O uso da sensualidade é condenado, a liberdade de expressá-la é punida
violentamente. O pensamento moralista/cristão que permeia as bases do
imaginário social demoniza a sensualidade e sexualidade. As mulheres negras
foram sexualizadas, seus corpos animalizados, suas posturas e características
gestuais ridicularizadas. Mas esse é um processo externo a nós e também é parte
daquela história lá de cima de se apropriar de determinada cultura e esvaziar
seus símbolos. Nesse ponto uma estratégia importantíssima de resistência é não
pensar nossos corpos, nossa sensualidade e nossa sexualidade a partir dos
princípios moralistas eurocêntricos. Criminalizadas e demonizadas,
principalmente pela fé cristã, a beleza, a sensualidade e a sexualidade nessa
sociedade patriarcal só deveriam ser usadas para a satisfação dos homens ou no
processo de construção das instituições sociais aceitas (casamento, geração de
filhos). Porém usar a beleza e a sensualidade sempre foi nos ensinado através
do Itans da Yabás como uma estratégia memorável e eficiente de luta, além de
serem características respeitadas, consideradas bênçãos fundamentais para a
construção e o equilíbrio do mundo.
Repito: ser passista é um ato de
resistência da mulher negra. É uma forma de nos mantermos nos espaços da nossa
cultura e de nos apropriarmos das oportunidades que hoje eles oferecem. É uma
forma de lutarmos para que o real significado de ser passista não se perca. É
uma forma de irmos contra tudo e todos que dizem que não temos direito sobre
nosso corpo, que nossa arte não é clássica e que nossa cultura não é
apropriada. É uma forma de pensar nas nossas meninas pretas e seus olhares de
admiração e nas nossas pretas mais velhas e seus olhares de saudade e
realização.
Peço sinceramente e de coração
que nunca desistamos de passar a nossa mensagem, da forma como NÓS sentimos,
como NÓS aprendemos, como NÓS vivemos. Da forma como NÓS herdamos. Por mais que
TVs e jornais interpretem e desconstruam. Por mais que estrangeiros
“confundam”, por mais que nossos próprios homens reprovem. Peço que mantenhamos
o nosso orgulho de sermos mulheres negras, representando a cultura negra,
levando a bandeira de negros e pobres.
O mito da democracia racial faz
com que, para a sociedade, tenhamos “quatro dias” como rainhas. E não precisamos
abrir mão deles. O que precisamos é enfiar goela abaixo da sociedade nossas
coroas e mantos nos outros 361 dias do ano, sem nenhum passo atrás.
Fonte: Geledes
Nenhum comentário:
Postar um comentário